A
história provê ampla evidência para a importância crucial de uma
cooperação em larga escala. Quase invariavelmente a vitória vai
para aqueles que cooperam melhor — não só nas lutas entre Homo
sapiens e outros animais, como também em conflitos entre
diferentes grupos humanos. Assim, Roma conquistou a Grécia não
porque os romanos tivessem cérebros maiores ou técnicas mais
efetivas na fabricação de ferramentas, e sim porque eram capazes de
cooperar mais eficazmente. Em meio à história, exércitos
disciplinados derrotaram com facilidade hordas desorganizadas, e
elites unificadas dominaram massas desordenadas. Em 1914, por
exemplo, 3 milhões de nobres, oficiais e homens de negócios russos
agiam como senhores de 180 milhões de camponeses e trabalhadores. A
elite russa sabia como cooperar em defesa de seus interesses comuns,
enquanto os 180 milhões de trabalhadores eram incapazes de se
mobilizar com eficácia. De fato, grande parte dos esforços da elite
concentrava-se em assegurar que aquelas pessoas no fundo da pirâmide
jamais aprendessem a cooperar.
Para
poder montar uma revolução, números nunca são suficientes.
Revoluções comumente são feitas por pequenas redes de agitadores,
e não pelas massas. Se você quiser desencadear uma revolução não
se pergunte: “Quantas pessoas apoiam minha ideia?”. A pergunta
correta a fazer é: “Entre os que me apoiam, quantos são capazes
de prestar uma colaboração eficaz?”. A Revolução Russa eclodiu
não quando 180 milhões de camponeses se ergueram contra o tsar, e
sim quando um punhado de comunistas se pôs no lugar certo na hora
certa. Em 1917, numa época em que as classes alta e média russas
contavam com pelo menos 3 milhões de pessoas, o Partido Comunista
era composto de 23 mil membros. 19 Assim mesmo os comunistas
assumiram o controle do vasto Império Russo porque se organizaram
bem. Quando a autoridade na Rússia escapou das mãos decrépitas do
tsar e das igualmente trêmulas mãos do governo provisório de
Kerensky, os comunistas a agarraram com diligência, empunhando as
rédeas do poder como um buldogue cerrando suas mandíbulas num osso.
Os
comunistas não largaram o osso até o final da década de 1980. Uma
organização eficaz os manteve no poder durante oito longas décadas,
e eles só caíram em razão de uma organização deficiente. Em 21
de dezembro de 1989, Nicolae Ceauşescu, o ditador comunista da
Romênia, organizou uma demonstração gigantesca de apoio no centro
de Bucareste. Durante os meses anteriores, a União Soviética havia
retirado seu apoio aos regimes comunistas do Leste europeu, o Muro de
Berlim tinha caído, e revoluções varriam a Polônia, a Alemanha
Oriental, a Hungria, a Bulgária e a Tchecoslováquia. Ceauşescu,
que governava a Romênia desde 1965, acreditou que poderia deter o
tsunami, apesar dos tumultos contra seu governo que irromperam
na cidade romena de Timişoara, em 17 de dezembro. Como uma de suas
contramedidas, ele organizou aquela manifestação massiva em
Bucareste para provar aos romenos e ao resto do mundo que a maioria
da população ainda o amava — ou pelo menos o temia. O já
enfraquecido aparelho do partido mobilizou 80 mil pessoas para encher
a praça central da cidade, e os cidadãos por todo o país foram
instruídos a interromper suas atividades e sintonizar seus rádios e
televisões no evento.
Sob
os aplausos da supostamente entusiástica multidão, Ceauşescu subiu
ao balcão que dava para a praça, como fizera repetidas vezes
durante as décadas anteriores. Ladeado por sua mulher Elena,
funcionários graduados do partido e um bando de guarda-costas, ele
começou a proferir um dos discursos sombrios que eram sua marca
registrada. Durante oito minutos ele louvou as glórias do socialismo
romeno, mostrando-se muito satisfeito consigo mesmo enquanto a
multidão batia palmas mecanicamente. Então, alguma coisa deu
errado. Você pode ver por si mesmo no YouTube. Basta fazer a busca
por “Ceauşescu’s last speech” e assistir à história em plena
ação.
O
clip do YouTube mostra o ditador começando outra longa sentença,
dizendo “Quero agradecer aos que tiveram a iniciativa e aos
organizadores deste grande evento em Bucareste, considerando-o um...”
— então ele fica em silêncio, os olhos arregalados, congelado em
sua estupefação. Ele nunca terminou a sentença. Pode-se ver como
um mundo inteiro desmorona numa fração de segundo. Alguém no
público vaiou. Hoje ainda se pergunta quem foi a primeira pessoa que
ousou vaiar. Depois uma segunda vaiou, e mais uma, e mais uma, e em
poucos segundos as massas estavam assobiando, gritando insultos e
clamando: “Ti-mi-şoa-ra! Ti-mi-şoa-ra!”.
Tudo
isso aconteceu ao vivo na televisão romena, quando três quartos da
população estavam grudados nas telas, os corações pulsando
desenfreadamente. A famigerada polícia secreta — a Securiate —
ordenou que a transmissão fosse imediatamente interrompida, mas as
equipes de televisão desobedeceram. O cinegrafista apontou a câmera
para o céu para que os telespectadores não pudessem ver o pânico
dos líderes do partido no balcão, porém o encarregado do som
continuou a gravar e os técnicos continuaram a transmitir. A Romênia
inteira ouviu a multidão vaiar, enquanto Ceauşescu gritava “Alô!”
Alô! Alô!”, como se o problema fosse com o microfone. Sua mulher,
Elena, começou a repreender o público “Façam silêncio! Façam
silêncio!”, até que Ceauşescu virou-se para ela e gritou —
ainda ao vivo na televisão — “Faça silêncio você!”. O
ditador fez um apelo à excitada multidão na praça, implorando:
“Camaradas! Camaradas! Façam silêncio, camaradas!”.
Mas
os camaradas não queriam ficar em silêncio. A Romênia comunista
ruiu quando 80 mil pessoas na praça central de Bucareste se deram
conta de que eram muito mais fortes do que o velho com chapéu de
pele no balcão. Contudo, o que é realmente espantoso não é o
momento em que o sistema desabou, mas o fato de ter conseguido
sobreviver durante décadas. Por que as revoluções são tão raras?
Por que as massas às vezes batem palmas e aplaudem por séculos,
obedecendo a tudo o que o homem no balcão ordena, mesmo quando em
teoria poderiam avançar a qualquer momento e fazê-lo em pedaços?
Ceauşescu
e seus asseclas dominaram 20 milhões de romenos durante quatro
décadas porque garantiram três condições vitais. Primeiro,
puseram aparatchniks comunistas leais no controle de todas as
redes de cooperação, como o Exército, os sindicatos e até em
associações esportivas. Segundo, impediram a criação de quaisquer
organizações rivais — fossem políticas, econômicas ou sociais —
que pudessem servir de base para uma cooperação anticomunista.
Terceiro, contaram com o apoio de partidos comunistas irmãos na
União Soviética e na Europa Oriental. Descontando tensões
ocasionais, esses partidos ajudavam-se mutuamente quando necessário,
ou ao menos garantiam que nenhum estranho metesse o nariz no paraíso
socialista. Sob tais condições, apesar de todas as dificuldades e
todo o sofrimento que a elite governante lhes infligia, os 20 milhões
de romenos não se mostraram capazes de organizar uma oposição
eficaz.
Ceauşescu
perdeu o poder somente quando essas três condições deixaram de se
sustentar. No final de década de 1980, a União Soviética retirou
sua proteção e os regimes comunistas começaram a cair como peças
de dominó. Em dezembro de 1989, Ceauşescu não podia contar com
nenhuma assistência de fora. Aconteceu exatamente o contrário —
revoluções nos países vizinhos deram alento à oposição local.
Segundo, o próprio Partido Comunista cindiu-se em facções rivais.
Os moderados queriam se livrar de Ceauşescu e dar início a reformas
antes que fosse tarde demais. Terceiro, ao organizar a demonstração
em Bucareste e transmiti-la ao vivo, o próprio Ceauşescu proveu os
revolucionários de uma oportunidade perfeita para revelar seu poder
e fazer uma demonstração contra ele. Que caminho para disseminar
uma revolução seria mais rápido do que mostrá-la na televisão?
Mas,
quando escorregou das mãos do desastrado organizador que estava no
balcão, o poder não passou às massas que se encontravam na praça.
Ainda que numerosas e entusiásticas, as multidões não souberam se
organizar. Daí que, assim como na Rússia em 1917, o poder passou
para um pequeno grupo de agentes políticos cujo único ativo era uma
boa organização. A Revolução Romena foi sequestrada pela
autoproclamada Frente de Salvação Nacional, que era na verdade uma
cortina de fumaça para a ala moderada do Partido Comunista. A Frente
não tinha laços verdadeiros com as multidões em suas
demonstrações. Integrada por funcionários de hierarquia média do
partido, era chefiada por Ion Iliescu, ex-membro da comitê central
do Partido Comunista e ex-chefe do departamento de propaganda.
Iliescu e seus camaradas na Frente de Salvação Nacional se
reinventaram como políticos democratas; em todo microfone que
estivesse disponível proclamavam que eles eram os líderes da
revolução e depois usaram toda a sua experiência e sua rede de
asseclas para assumir o controle do país e embolsar seus recursos.
Na
Romênia comunista, quase tudo pertencia ao Estado. A Romênia
democrática privatizou rapidamente seus ativos, vendendo-os a preços
de banana a ex-comunistas, que foram os únicos a perceber o que
estava acontecendo e colaboraram entre si para acumular riqueza de
maneira escusa. Companhias governamentais que controlavam a
infraestrutura nacional e recursos naturais foram vendidas a
ex-funcionários comunistas a preços de fim de feira, enquanto os
soldados de infantaria do partido compravam casas e apartamentos por
centavos.
Ion
Iliescu foi eleito presidente da Romênia, e seus colegas tornaram-se
ministros, diretores de bancos e multimilionários. A nova elite
romena que controla o país até hoje é composta na maioria por
ex-comunistas e suas famílias. As massas que arriscaram o pescoço
em Timişoara e em Bucareste ficaram com as migalhas, porque não
souberam como cooperar e como criar uma organização eficaz que
olhasse por seus interesses.
Destino
semelhante teve a Revolução Egípcia de 2011. O que a televisão
fez em 1989, o Facebook e o Twitter fizeram em 2011. As novas mídias
ajudaram as massas a coordenar suas atividades, de modo que milhares
de pessoas inundaram as ruas e as praças no momento certo para
derrubar o regime de Hosni Mubarak. Contudo, uma coisa é levar 100
mil pessoas à praça Tahrir, e outra, muito diferente, é ter o
controle da máquina política, apertar as mãos certas nos
bastidores certos e tocar um país com eficácia. Consequentemente,
quando Mubarak foi deposto, os manifestantes não conseguiram
preencher a lacuna. O Egito contava somente com duas instituições
suficientemente organizadas para governar o país: o Exército e a
Irmandade Muçulmana. Daí, a revolução foi indevidamente
apropriada primeiro pela Irmandade e depois pelo Exército.
Os
ex-comunistas romenos e os generais egípcios não foram mais
inteligentes ou ágeis que os antigos ditadores ou os manifestantes
em Bucareste e no Cairo. Sua vantagem consistiu numa cooperação
flexível. Eles cooperavam entre si melhor do que as multidões e
estavam dispostos e demonstrar muito mais flexibilidade do que os
tacanhos Ceauşescu e Mubarak.
Yuval
Noah Harari, in Homo Deus: uma breve história
do amanhã
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