Andamos
cerca de duas léguas a cavalo: minha mãe posta de meia esguelha,
envolta na saia comprida e larga, uma perna presa no gancho A do
silhão; meu pai todo pachola, boa lança nas cavalhadas, viajando no
preceito, como quem executa um dever; eu seguro por ele, na maçaneta
da sela, porque era pequeno demais e não me aguentava na garupa do
animal.
Íamos
visitar um fazendeiro vizinho, homem considerável, de hábitos que
mereciam a reprovação da gente cautelosa. Nesse dia não o percebi
direito.
Avistei-o
alguns anos depois, na vila próxima, de calça branca, paletó de
casimira, chapéu do Chile, botinas lustrosas, guarda-chuva caro, uma
libra esterlina pendurada no correntão de ouro, escandalosamente
próspero. E, ao cabo de longo intervalo, encontrei-o de novo, muito
por baixo, carregando na aguardente, jogando baralho com polícias em
balcões de bodegas e em calçadas.
Meus
parentes, econômicos em excesso, atribuíam esse desmantelo ao
guarda-chuva e à libra esterlina. E também às superfluidades que
nos exibiu naquela manhã de verão: móveis esquisitos; redes alvas,
de varanda, grossas e macias, trabalhadas como rendas; panos limpos,
cheirosos; a garrafinha vermelha, na salva, rodeada de cálices,
objetos que me provocaram admiração.
No
meio estranho encabulei — e isto me atenazava. Ainda isento de
compromissos, murchava diante de pessoas desconhecidas. Com certeza
já me haviam habituado a julgar-me um ente mesquinho. A minha roupa
curta era chinfrim. Tentei esconder-me, arrastei-me sob os punhos das
redes, coxeando, tropeçando, que os sapatos me aperreavam. Em casa
eu usava alpercatas — dois pedaços de sola e correias. Quando me
impunham sapatos, era uma dificuldade: os pés formavam bolos,
recalcitravam, não queriam meter-se nas prisões duras e estreitas.
Arrumavam-se à força, e durante a resistência eu ouvia berros,
suportava tabefes e chorava. Um par de borzeguins amarelos, um par de
infernos, marcou-me para toda a vida.
Ignoro
como chegamos à fazenda: as minhas recordações datam da hora em
que entramos na sala. Meu pai e o proprietário sumiram-se, foram
cuidar de negócios, numa daquelas conversas cheias de gritos. Minha
mãe e eu ficamos cercados de saias.
As
paredes eram brancas e talvez tenham concorrido para me agravar o
embaraço. Defronte da casa um carro de bois descansava sob a ramagem
quase sem folhas de uma árvore alta. Desinteressei-me do carro de
bois, igual a outros já vistos, mas desejei que me explicassem a
árvore pelada, muito diferente do pé-de-turco do meu quintal.
Guardei silêncio, temeroso, aluí num canto da parede, longe das
saias. Minha mãe, entre elas, estava importante. Não reparei na
importância: os sapatos faziam-me esquecer o carro de bois, as
redes, as mulheres que adulavam minha mãe, desprezando-a. Julgo que
ela se chateava com as gentilezas. Não as entendia e bocejava de
leve, sisuda, ausente dos que se esforçavam por obsequiá-la. Havia,
uma senhora idosa e várias moças: uma grande, morena, bulhenta,
outras que se escondiam por detrás dela, secundárias, hoje
obliteradas. Riam, mexiam, animavam-se.
Não
sei como de repente me vi no meio do bando rumoroso: sei que me
afastaram da parede e os sapatos deixaram de magoar-me os dedos e os
calcanhares. Escancharam-me numa das redes, perto da senhora velha, e
penso que me consideraram digno de interesse. Aí trouxeram a
bandeja, a garrafinha de licor e os cálices. Minha mãe tocou a
linha esquiva dos beiços naquela surpresa que tingia a substância
rara, cruzou as mãos, franziu a boca numa tentativa de
agradecimento. Com rigor, não me seria possível afirmar que tais
gestos se realizaram. Surpreendi-os, contudo, em visitas posteriores
e arrisco-me a referi-los. Os dedos finos e nodosos juntavam-se,
inofensivos; os lábios duros contraíam-se, mudos; os olhos se
esbugalhavam, parados, frios, indecisos.
O
que nessa figura me espantava era a falta de sorriso. Não ia além
daquilo: duas pregas que se fixavam numa careta, os beiços quase
inexistentes repuxando-se, semelhantes às bordas de um caneco
amassado. Assim permanecia, contendo bocejos indiscretos. Miúda e
feia, devia inquietar-se, desconfiar das amabilidades, recear
mistificações. Quando cresci e tentei agradá-la, recebeu-me
suspeitosa e hostil; se me acontecia concordar com ela, mudava de
opinião e largava muxoxos desesperadores.
Quem
me deu o primeiro cálice de licor foi a morena vistosa, mas não sei
quem deu o segundo. Bebi vários, bebi o resto da garrafa.
Comportei-me indecentemente, perdi a vergonha, achei-me à vontade,
falando muito, desvariando e exigindo licor. Uma das moças trouxe-me
um copo de vinho com mel. Minha mãe enferrujou a cara, estirou o
braço enérgico, mas naquele momento eu desafiava as oposições.
Através de uma neblina, distinguia formas vagas e inconsistentes.
Repeli a mão que avançava para mim, tomei o copo. Daí em diante,
até que adormeci, o tempo desapareceu. Certos pormenores avultaram,
com certeza se dissiparam casos apreciáveis. Ganhei coragem de
supetão, os perigos se esvaíram. Fortaleci-me, percebi aliados nas
criaturas que me rodeavam.
Uma
se distinguia, morena, grande, vermelha, risonha, barulhenta.
Senhorinha.
Vinte anos depois, ao saber que ela havia dado com os burros na água,
afligi-me. Arruinou, provavelmente acabou depressa. A honra sertaneja
encolheu-se, uma tradição reduziu-se a cacos. Todavia continuarão
a espalhar mentiras na cidade. A literatura popular e os cancioneiros
matutos gastar-se-ão repisando camponeses brabos e vingativos,
donzelas ingênuas, puras demais.
Engano.
Senhorinha, educada perto do curral, conhecia os mistérios da
procriação e era simples. Filha de proprietário, submeteu-se à
honestidade e aguardou casamento. Mas as dívidas se avolumaram, a
fazenda se despovoou, tombaram as cercas, o coronel, sem correntão
nem guarda-chuva, aderiu à canalha — e Senhorinha renunciou à
virtude, infringiu a moral, curvou-se à lei do instinto.
Bonitona.
Avizinhei-me dela com impudência camarada, esfreguei-me.
Essa
precisão de receber carícias de uma pessoa do outro sexo surgiu-me
de golpe, estimulada pelo álcool.
Suponho
que não foi a primeira vez que me embriagaram. As sertanejas do
Nordeste entorpecem os filhos à noite com uma garrafa de vinho
forte. Meus irmãos ingeriram isso e procederam bem: não choraram,
não gritaram, não manifestaram nenhuma exigência. Acordavam
quietinhos, moles, bestas, bons como uns santos. Umedeciam as
cobertas, mais isto não os incomodava: dormiam no líquido. E, longe
deles, D. Maria sossegava. Quando apurei o olfato e a vista, percebi
que os lençóis de meus irmãos eram fétidos, horríveis. Os meus
deviam ter sido assim.
Vendo-me
o desembaraço, minha mãe tentou agarrar-me. Não me considerando
bastante seguro na rede, ergui-me trôpego, arrastei a senhora velha,
desejei exprimir-lhe simpatia. Chegamos a um marquesão, sentamo-nos,
deitei familiarmente a cabeça nas pernas da mulher. Os objetos
esfumavam-se, entre eles, remota, quase imperceptível, a árvore que
se despojava no pátio, junto ao carro de bois. Voltou-me a
curiosidade, apontei com desânimo a planta calva, gaguejei:
— Minha
filha, que pau é aquele?
Obtive
a informação e ao cabo de minutos tornei a perguntar:
— Minha
filha, que pau é aquele?
Veio
novamente a resposta, mas a necessidade de instruir-me acendia-se e
apagava-se, faiscava-me no interior como um vaga-lume. Estranha
loquacidade inutilizava o silêncio obtuso que me haviam imposto. O
animalzinho bisonho papagueava, e gargalhadas estrugiam na sala,
abafando a quizilia de minha mãe. Essa potência baqueava. Não me
ocorria que ela se restabelecesse, voltasse comigo à casa triste, me
fustigasse e puxasse as orelhas.
Parecia-me
que as moças ruidosas e a senhora encanecida iriam, no futuro,
trazer-me a garrafinha, os cálices e a bandeja, escutar-me os
devaneios.
Quando
meu pai regressou, eu me achava num momento de evasão, indiferente
às censuras, nos joelhos de uma desconhecida, tagarelando com outras
desconhecidas encantadoras, meio invisíveis no espesso nevoeiro que
me envolvia.
Graciliano
Ramos, in Infância
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