domingo, 1 de dezembro de 2019

Uma bebedeira

Andamos cerca de duas léguas a cavalo: minha mãe posta de meia esguelha, envolta na saia comprida e larga, uma perna presa no gancho A do silhão; meu pai todo pachola, boa lança nas cavalhadas, viajando no preceito, como quem executa um dever; eu seguro por ele, na maçaneta da sela, porque era pequeno demais e não me aguentava na garupa do animal.
Íamos visitar um fazendeiro vizinho, homem considerável, de hábitos que mereciam a reprovação da gente cautelosa. Nesse dia não o percebi direito.
Avistei-o alguns anos depois, na vila próxima, de calça branca, paletó de casimira, chapéu do Chile, botinas lustrosas, guarda-chuva caro, uma libra esterlina pendurada no correntão de ouro, escandalosamente próspero. E, ao cabo de longo intervalo, encontrei-o de novo, muito por baixo, carregando na aguardente, jogando baralho com polícias em balcões de bodegas e em calçadas.
Meus parentes, econômicos em excesso, atribuíam esse desmantelo ao guarda-chuva e à libra esterlina. E também às superfluidades que nos exibiu naquela manhã de verão: móveis esquisitos; redes alvas, de varanda, grossas e macias, trabalhadas como rendas; panos limpos, cheirosos; a garrafinha vermelha, na salva, rodeada de cálices, objetos que me provocaram admiração.
No meio estranho encabulei — e isto me atenazava. Ainda isento de compromissos, murchava diante de pessoas desconhecidas. Com certeza já me haviam habituado a julgar-me um ente mesquinho. A minha roupa curta era chinfrim. Tentei esconder-me, arrastei-me sob os punhos das redes, coxeando, tropeçando, que os sapatos me aperreavam. Em casa eu usava alpercatas — dois pedaços de sola e correias. Quando me impunham sapatos, era uma dificuldade: os pés formavam bolos, recalcitravam, não queriam meter-se nas prisões duras e estreitas. Arrumavam-se à força, e durante a resistência eu ouvia berros, suportava tabefes e chorava. Um par de borzeguins amarelos, um par de infernos, marcou-me para toda a vida.
Ignoro como chegamos à fazenda: as minhas recordações datam da hora em que entramos na sala. Meu pai e o proprietário sumiram-se, foram cuidar de negócios, numa daquelas conversas cheias de gritos. Minha mãe e eu ficamos cercados de saias.
As paredes eram brancas e talvez tenham concorrido para me agravar o embaraço. Defronte da casa um carro de bois descansava sob a ramagem quase sem folhas de uma árvore alta. Desinteressei-me do carro de bois, igual a outros já vistos, mas desejei que me explicassem a árvore pelada, muito diferente do pé-de-turco do meu quintal. Guardei silêncio, temeroso, aluí num canto da parede, longe das saias. Minha mãe, entre elas, estava importante. Não reparei na importância: os sapatos faziam-me esquecer o carro de bois, as redes, as mulheres que adulavam minha mãe, desprezando-a. Julgo que ela se chateava com as gentilezas. Não as entendia e bocejava de leve, sisuda, ausente dos que se esforçavam por obsequiá-la. Havia, uma senhora idosa e várias moças: uma grande, morena, bulhenta, outras que se escondiam por detrás dela, secundárias, hoje obliteradas. Riam, mexiam, animavam-se.
Não sei como de repente me vi no meio do bando rumoroso: sei que me afastaram da parede e os sapatos deixaram de magoar-me os dedos e os calcanhares. Escancharam-me numa das redes, perto da senhora velha, e penso que me consideraram digno de interesse. Aí trouxeram a bandeja, a garrafinha de licor e os cálices. Minha mãe tocou a linha esquiva dos beiços naquela surpresa que tingia a substância rara, cruzou as mãos, franziu a boca numa tentativa de agradecimento. Com rigor, não me seria possível afirmar que tais gestos se realizaram. Surpreendi-os, contudo, em visitas posteriores e arrisco-me a referi-los. Os dedos finos e nodosos juntavam-se, inofensivos; os lábios duros contraíam-se, mudos; os olhos se esbugalhavam, parados, frios, indecisos.
O que nessa figura me espantava era a falta de sorriso. Não ia além daquilo: duas pregas que se fixavam numa careta, os beiços quase inexistentes repuxando-se, semelhantes às bordas de um caneco amassado. Assim permanecia, contendo bocejos indiscretos. Miúda e feia, devia inquietar-se, desconfiar das amabilidades, recear mistificações. Quando cresci e tentei agradá-la, recebeu-me suspeitosa e hostil; se me acontecia concordar com ela, mudava de opinião e largava muxoxos desesperadores.
Quem me deu o primeiro cálice de licor foi a morena vistosa, mas não sei quem deu o segundo. Bebi vários, bebi o resto da garrafa. Comportei-me indecentemente, perdi a vergonha, achei-me à vontade, falando muito, desvariando e exigindo licor. Uma das moças trouxe-me um copo de vinho com mel. Minha mãe enferrujou a cara, estirou o braço enérgico, mas naquele momento eu desafiava as oposições. Através de uma neblina, distinguia formas vagas e inconsistentes. Repeli a mão que avançava para mim, tomei o copo. Daí em diante, até que adormeci, o tempo desapareceu. Certos pormenores avultaram, com certeza se dissiparam casos apreciáveis. Ganhei coragem de supetão, os perigos se esvaíram. Fortaleci-me, percebi aliados nas criaturas que me rodeavam.
Uma se distinguia, morena, grande, vermelha, risonha, barulhenta.
Senhorinha. Vinte anos depois, ao saber que ela havia dado com os burros na água, afligi-me. Arruinou, provavelmente acabou depressa. A honra sertaneja encolheu-se, uma tradição reduziu-se a cacos. Todavia continuarão a espalhar mentiras na cidade. A literatura popular e os cancioneiros matutos gastar-se-ão repisando camponeses brabos e vingativos, donzelas ingênuas, puras demais.
Engano. Senhorinha, educada perto do curral, conhecia os mistérios da procriação e era simples. Filha de proprietário, submeteu-se à honestidade e aguardou casamento. Mas as dívidas se avolumaram, a fazenda se despovoou, tombaram as cercas, o coronel, sem correntão nem guarda-chuva, aderiu à canalha — e Senhorinha renunciou à virtude, infringiu a moral, curvou-se à lei do instinto.
Bonitona. Avizinhei-me dela com impudência camarada, esfreguei-me.
Essa precisão de receber carícias de uma pessoa do outro sexo surgiu-me de golpe, estimulada pelo álcool.
Suponho que não foi a primeira vez que me embriagaram. As sertanejas do Nordeste entorpecem os filhos à noite com uma garrafa de vinho forte. Meus irmãos ingeriram isso e procederam bem: não choraram, não gritaram, não manifestaram nenhuma exigência. Acordavam quietinhos, moles, bestas, bons como uns santos. Umedeciam as cobertas, mais isto não os incomodava: dormiam no líquido. E, longe deles, D. Maria sossegava. Quando apurei o olfato e a vista, percebi que os lençóis de meus irmãos eram fétidos, horríveis. Os meus deviam ter sido assim.
Vendo-me o desembaraço, minha mãe tentou agarrar-me. Não me considerando bastante seguro na rede, ergui-me trôpego, arrastei a senhora velha, desejei exprimir-lhe simpatia. Chegamos a um marquesão, sentamo-nos, deitei familiarmente a cabeça nas pernas da mulher. Os objetos esfumavam-se, entre eles, remota, quase imperceptível, a árvore que se despojava no pátio, junto ao carro de bois. Voltou-me a curiosidade, apontei com desânimo a planta calva, gaguejei:
Minha filha, que pau é aquele?
Obtive a informação e ao cabo de minutos tornei a perguntar:
Minha filha, que pau é aquele?
Veio novamente a resposta, mas a necessidade de instruir-me acendia-se e apagava-se, faiscava-me no interior como um vaga-lume. Estranha loquacidade inutilizava o silêncio obtuso que me haviam imposto. O animalzinho bisonho papagueava, e gargalhadas estrugiam na sala, abafando a quizilia de minha mãe. Essa potência baqueava. Não me ocorria que ela se restabelecesse, voltasse comigo à casa triste, me fustigasse e puxasse as orelhas.
Parecia-me que as moças ruidosas e a senhora encanecida iriam, no futuro, trazer-me a garrafinha, os cálices e a bandeja, escutar-me os devaneios.
Quando meu pai regressou, eu me achava num momento de evasão, indiferente às censuras, nos joelhos de uma desconhecida, tagarelando com outras desconhecidas encantadoras, meio invisíveis no espesso nevoeiro que me envolvia.
Graciliano Ramos, in Infância

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