Numa
das viagens ao sítio, José convidou-me para visitar os restos do
incêndio que devorara uma das cabanas arrumadas além do aceiro.
Fui, receoso. Nunca me havia aproximado daqueles ranchos, onde
fervilhavam os diabinhos maliciosos que afligiam as mulheres da
lavoura.
Venceu-me
a curiosidade: um fogo capaz de suprimir casas era realmente
admirável. Eu não supunha o fogo com tantos poderes. Via-o
doméstico, lambendo a trempe da cozinha, elevando-se um pouco no
largo, em noites de S. João, e às vezes causando malefícios
diminutos, como no dia em que uma brasa caíra do cachimbo de Maria
Melo no ombro de minha irmã. Responsabilizavam-no agora por uma
devastação volumosa — e isto me surpreendia. Zangara-se,
procedera como os cavalos mansos que tomam o freio nos dentes.
Deixei
o meu carneiro branco amarrado à sombra e saí com o moleque em
direção às cabanas. Uma havia desaparecido. Os destroços dela
espalhavam-se, ainda fumegantes, cinza, um lixo negro e quente que
não nos consentia aproximação. De longe, senti-me logrado:
esperava descobrir labaredas subindo ao céu, madeira estalando,
nuvens rubras — e ali se achatavam porcarias. Desgostei-me e não
pude atentar nelas.
No
terreiro, diante do rescaldo, homens e mulheres choravam,
lamentavam-se, gesticulavam. E alguns, sentados em baús, pareciam
idiotas, silenciosos e inertes. Desviei-me de um objeto escuro,
semelhante a um toco chamuscado. Os olhos em redor estavam fixos
naquilo, e pouco a pouco distingui palavras no alarido, o esboço do
caso medonho. Enquanto os homens trabalhavam na roça e os meninos
vadiavam pela vizinhança, duas pretinhas faziam a comida, soprando a
lenha, agitando o abano.
Uma
faísca chegara à parede e em minutos a palha ardia. As criaturas
haviam tentado reparar o desastre. Nada conseguindo, a mais nova
fugira. A outra resolvera esvaziar a casa: salvara as panelas, o
ralo, as esteiras, a cama de varas, a trouxa de roupa, as arcas.
Surda aos chamados da irmã, arrecadara todos os trastes, menos a
litografia de Nossa Senhora, provavelmente sapecada na camarinha. As
paredes sumiam-se, o teto se desmoronava, a porta única era uma
goela vermelha, donde saíam línguas temerosas. Apesar disso,
mergulhara na fornalha, em busca da imagem benta. De volta, achara a
passagem obstruída e morrera. Estava ali. Uma rapariga gemia entre
soluços que procurara dissuadir a infeliz: Nossa Senhora não
precisava de ninguém, escaparia, se quisesse. A teimosa recusara os
conselhos — e estava ali. Os olhos se pregavam na coisa estendida
junto ao borralho.
A
narração me embrulhava o estômago, a fumaça me arrancava
lágrimas, dava-me dores de cabeça. Eu nunca tinha visto um cadáver.
Receava e desejava examinar aquele, mas certamente se desmanchara na
catástrofe. Arrependia-me de haver atendido ao convite de José. Bom
voltar ao sítio, deitar-me num colchão de folhas, admirar os
periquitos, as flores de mulungu, as espigas amarelas. Não
conseguiria, porém, tranquilidade. Excitava-me, preso ao cisco
ardente e fuliginoso, ao choro, às lamúrias, propenso, num gosto
mórbido, a torturar-me.
Seguindo
o gesto do grupo inconsolável, cheguei-me ao tronco escuro, exposto
no chão, uma preciosidade. Por quê? Não me capacitava do valor,
estranhava que se referissem a ele com respeito, lhe dessem nome de
cristão.
Pedaços
da realidade me entravam no entendimento, eram repelidos, tornavam,
confusos. Afirmações e negações quase simultâneas me assaltavam.
Jazia ali um ser humano. Logo recusava a proposição insensata. Nada
de humano: tinha a aparência vaga de um rolo de fumo. Isto, rolo de
fumo, semelhante aos que meu pai guardava no armazém, umedecidos em
líquido viscoso, empacavirados em bananeira. Apenas aquele não
estava úmido nem coberto: estava nu e torrado.
Um
rolo de fumo ordinário, dos que se vendem nas barracas de feira,
pelando-se, esfarelando-se ao sol. Difícil atribuir-lhe nome de
mulher, existência de mulher. Contudo as exclamações reiteradas,
fragmentos de asserções contínuas, desbarataram a evidência,
deram-me afinal a certeza de que se achavam no terreiro porções da
negra morta. Forçava-me a não perceber nexo entre aquela espécie
de barrote queimado e a sujeita valente que se mexera, defendendo os
trens domésticos, a ausência de braços e de pernas. A energia
mencionada e a inércia visível debatiam-se dentro de mim. A
indecisão transformou-se em grande medo, não da coisa parada, mas
da que se movera e continuava a mover-se nas queixas próximas. Esta
iria surgir talvez, animar a outra e punir-me. Não havendo obtido
licença para ver o desastre, sentia-me culpado, mas era impossível
determinar o grau da culpa. Considerava-me profanador. Não me
permitiriam ver defuntos, sobretudo aquele, privado das formas
comuns, consequência de tragédia. Curvei-me num arremesso de
coragem. Faltava-lhe o cabelo, faltava a pele — e não havendo
seios nem sexo, perdiam-se os restos de animalidade. A superfície
vestia-se de crostas, como a dos metais inúteis, carcomidos no
abandono e na ferrugem. Em alguns pontos semelhava carne assada, e
havia realmente um cheiro forte de carne assada; fora daí
ressecava-se demais. Nesse torrão cascalhoso sobressaía a cabeça,
o que fora cabeça, com as órbitas vazias, duas fileiras de dentes
alvejando na devastação, o buraco do nariz, a expelir matéria
verde, amarelenta. Distingui uma cara, sobra de cara, máscara
pavorosa, mais feia que as dos papangus do carnaval. Não enxerguei
pormenores: vi apenas, de relance, a dentadura, as órbitas vazias, o
fluxo purulento.
Mudei
a vista, arredei-me engulhando, amaldiçoando José, que me expusera
a enorme desgraça e analisava tudo com interesse. Afastei-o,
regressamos ao sítio, mas as sombras das árvores, as flores de
mulungu e as aves não me deram sossego. Condenava-me e condenava o
moleque. Se não me houvesse rendido à tentação, aquela imundície
não existiria, pelo menos não existiria no meu espírito.
Cheguei
a casa precisando confessar-me, livrar-me da recordação medonha.
Narrei o que vira e o que ouvira: fagulhas alcançando a palha,
roendo a palha, semeando estragos; a mulher conduzindo móveis,
defendendo a Virgem Maria, sucumbindo enrolada em chamas, depois
estirada no chão, sem braços e sem pernas, os dentes arreganhados
numa careta. Dois buracos tenebrosos, gelatina esverdeada a correr
das ventas.
Arrepiava-me,
repetia a descrição, excitava-me tanto que meus pais tentaram
acalmar-me, reduzir o sinistro. Não havia motivo para a gente se
aperrear. Fora uma infelicidade, sem dúvida. Mas era a vontade de
Deus, estava escrito. E podia ser pior, muito pior. Se se tivesse
queimado a igreja, ou a loja de Seu Quinca Epifânio, a mais
importante da vila, o dano seria tremendo. Deus era misericordioso:
contentava-se com uma habitação miserável, situada longe da rua, e
com o sacrifício de uma preta anônima. Não me convenci. A loja de
Seu Quinca Epifânio e a igreja não tinham nada com o negócio. Eu
não vira incêndio na igreja nem na loja de Seu Quinca Epifânio:
vira uma choupana destruída, e a choupana crescia, igualava-se às
construções de tijolo. Seu Quinca Epifânio e Padre João Inácio
estavam vivos. Se tivessem morrido no fogaréu, não seriam mais
nojentos que a negra.
Deviam
repreender-me, dizer que me comportara mal abandonando o aceiro, as
árvores, os periquitos, as flores. A lembrança infeliz me
atormentava: necessário que os outros soubessem isto e me
censurassem. Tinham sido sempre rigorosos em demasia, e agora me
deixavam com aquele peso no interior. A arguição e o castigo me
dariam talvez um pouco de calma: eu esqueceria, nos lamentos e na
zanga, a visagem terrível. Não me puniram, quiseram transformar
aquele horror num fato ordinário
À
noite o sono fugiu, não houve meio de agarrá-lo. A negra estava ali
perto da minha cama, na mesa da sala de jantar, sem braços, sem
pernas, e tinha dois palmos, três palmos de menino. De repente se
desenvolvia em excesso, monstruosa. Sob a testa imensa rasgavam-se
precipícios imensos. O nariz era tini açude imenso, de pus. E os
dentes se alargavam, numa gargalhada imensa.
Em
noites comuns, para escapar aos habitantes da treva, eu envolvia a
cabeça.
Isto
me resguardava: nenhum fantasma viria perseguir-me debaixo do lençol.
Agora
não conseguia preservar-me. O tição apagado avizinhava-se, puxava
a coberta, ligava-se ao meu corpo, sujava-me com a salmoura que
vertia de gretas profundas. As órbitas vazias espiavam-me, a lama do
nariz borbulhava num estertor, os dentes se acavalavam e queriam
morder-me. Encolhia-me, escondia o rosto no travesseiro, e a visão
continuava a atenazar-me. Os arrepios que me agitavam mudaram-se em
tremor violento. Não resisti ao suplício, gritei como um doido,
alarmei a família. Vieram buscar-me, tentaram varrer-me o espectro
da imaginação, acomodaram-me aos pés da cama do casal. Aí me
abati, no círculo de luz da lamparina, ouvindo o canto dos galos,
até que a madrugada me trouxe uma ligeira modorra cheia de sonhos
ruins. Adormeci com a figura asquerosa, despertei com ela.
Durante
o dia voltei a mencioná-la, a descrevê-la, nauseado. Procurei o
autor daquela sórdida agonia e responsabilizei Nossa Senhora. Se a
criatura não tivesse tido a ideia de salvar a imagem, estaria
cortando palmas de ouricuri para fabricar nova cabana. Tinha devoção,
e isto a perdera, evidentemente a mãe de Deus era ingrata e feroz.
Em paga de tão puro desvelo
— cólera,
destruição.
As
pessoas grandes, porém, refutaram o meu juízo de modo singular. A
Virgem Maria tinha sido generosa. Escolhera a negra porque a julgava
digna de salvação. Impusera-lhe algumas dores e em troca lhe
oferecia o paraíso, sem o estágio do purgatório. O fogo do
purgatório, horroroso, não se comparava aos lumes terrestres, e
todos nós, cedo ou tarde, nos frigiríamos nele. A negra tivera
sorte. Provavelmente já estava no céu, diante de Jesus, misturada
aos serafins.
Essa
esquisita benevolência deixou-me perplexo. Calei-me, prudente, mas
achei o comentário duvidoso e embrulhado. Não me parecia que o
purgatório fosse indispensável. E a negra, incompleta e imunda, não
estava no céu. Que ia fazer lá? Estragaria as delícias eternas,
mancharia as asas dos anjos.
Graciliano
Ramos, in Infância
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