sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Um incêndio

Numa das viagens ao sítio, José convidou-me para visitar os restos do incêndio que devorara uma das cabanas arrumadas além do aceiro. Fui, receoso. Nunca me havia aproximado daqueles ranchos, onde fervilhavam os diabinhos maliciosos que afligiam as mulheres da lavoura.
Venceu-me a curiosidade: um fogo capaz de suprimir casas era realmente admirável. Eu não supunha o fogo com tantos poderes. Via-o doméstico, lambendo a trempe da cozinha, elevando-se um pouco no largo, em noites de S. João, e às vezes causando malefícios diminutos, como no dia em que uma brasa caíra do cachimbo de Maria Melo no ombro de minha irmã. Responsabilizavam-no agora por uma devastação volumosa — e isto me surpreendia. Zangara-se, procedera como os cavalos mansos que tomam o freio nos dentes.
Deixei o meu carneiro branco amarrado à sombra e saí com o moleque em direção às cabanas. Uma havia desaparecido. Os destroços dela espalhavam-se, ainda fumegantes, cinza, um lixo negro e quente que não nos consentia aproximação. De longe, senti-me logrado: esperava descobrir labaredas subindo ao céu, madeira estalando, nuvens rubras — e ali se achatavam porcarias. Desgostei-me e não pude atentar nelas.
No terreiro, diante do rescaldo, homens e mulheres choravam, lamentavam-se, gesticulavam. E alguns, sentados em baús, pareciam idiotas, silenciosos e inertes. Desviei-me de um objeto escuro, semelhante a um toco chamuscado. Os olhos em redor estavam fixos naquilo, e pouco a pouco distingui palavras no alarido, o esboço do caso medonho. Enquanto os homens trabalhavam na roça e os meninos vadiavam pela vizinhança, duas pretinhas faziam a comida, soprando a lenha, agitando o abano.
Uma faísca chegara à parede e em minutos a palha ardia. As criaturas haviam tentado reparar o desastre. Nada conseguindo, a mais nova fugira. A outra resolvera esvaziar a casa: salvara as panelas, o ralo, as esteiras, a cama de varas, a trouxa de roupa, as arcas. Surda aos chamados da irmã, arrecadara todos os trastes, menos a litografia de Nossa Senhora, provavelmente sapecada na camarinha. As paredes sumiam-se, o teto se desmoronava, a porta única era uma goela vermelha, donde saíam línguas temerosas. Apesar disso, mergulhara na fornalha, em busca da imagem benta. De volta, achara a passagem obstruída e morrera. Estava ali. Uma rapariga gemia entre soluços que procurara dissuadir a infeliz: Nossa Senhora não precisava de ninguém, escaparia, se quisesse. A teimosa recusara os conselhos — e estava ali. Os olhos se pregavam na coisa estendida junto ao borralho.
A narração me embrulhava o estômago, a fumaça me arrancava lágrimas, dava-me dores de cabeça. Eu nunca tinha visto um cadáver. Receava e desejava examinar aquele, mas certamente se desmanchara na catástrofe. Arrependia-me de haver atendido ao convite de José. Bom voltar ao sítio, deitar-me num colchão de folhas, admirar os periquitos, as flores de mulungu, as espigas amarelas. Não conseguiria, porém, tranquilidade. Excitava-me, preso ao cisco ardente e fuliginoso, ao choro, às lamúrias, propenso, num gosto mórbido, a torturar-me.
Seguindo o gesto do grupo inconsolável, cheguei-me ao tronco escuro, exposto no chão, uma preciosidade. Por quê? Não me capacitava do valor, estranhava que se referissem a ele com respeito, lhe dessem nome de cristão.
Pedaços da realidade me entravam no entendimento, eram repelidos, tornavam, confusos. Afirmações e negações quase simultâneas me assaltavam. Jazia ali um ser humano. Logo recusava a proposição insensata. Nada de humano: tinha a aparência vaga de um rolo de fumo. Isto, rolo de fumo, semelhante aos que meu pai guardava no armazém, umedecidos em líquido viscoso, empacavirados em bananeira. Apenas aquele não estava úmido nem coberto: estava nu e torrado.
Um rolo de fumo ordinário, dos que se vendem nas barracas de feira, pelando-se, esfarelando-se ao sol. Difícil atribuir-lhe nome de mulher, existência de mulher. Contudo as exclamações reiteradas, fragmentos de asserções contínuas, desbarataram a evidência, deram-me afinal a certeza de que se achavam no terreiro porções da negra morta. Forçava-me a não perceber nexo entre aquela espécie de barrote queimado e a sujeita valente que se mexera, defendendo os trens domésticos, a ausência de braços e de pernas. A energia mencionada e a inércia visível debatiam-se dentro de mim. A indecisão transformou-se em grande medo, não da coisa parada, mas da que se movera e continuava a mover-se nas queixas próximas. Esta iria surgir talvez, animar a outra e punir-me. Não havendo obtido licença para ver o desastre, sentia-me culpado, mas era impossível determinar o grau da culpa. Considerava-me profanador. Não me permitiriam ver defuntos, sobretudo aquele, privado das formas comuns, consequência de tragédia. Curvei-me num arremesso de coragem. Faltava-lhe o cabelo, faltava a pele — e não havendo seios nem sexo, perdiam-se os restos de animalidade. A superfície vestia-se de crostas, como a dos metais inúteis, carcomidos no abandono e na ferrugem. Em alguns pontos semelhava carne assada, e havia realmente um cheiro forte de carne assada; fora daí ressecava-se demais. Nesse torrão cascalhoso sobressaía a cabeça, o que fora cabeça, com as órbitas vazias, duas fileiras de dentes alvejando na devastação, o buraco do nariz, a expelir matéria verde, amarelenta. Distingui uma cara, sobra de cara, máscara pavorosa, mais feia que as dos papangus do carnaval. Não enxerguei pormenores: vi apenas, de relance, a dentadura, as órbitas vazias, o fluxo purulento.
Mudei a vista, arredei-me engulhando, amaldiçoando José, que me expusera a enorme desgraça e analisava tudo com interesse. Afastei-o, regressamos ao sítio, mas as sombras das árvores, as flores de mulungu e as aves não me deram sossego. Condenava-me e condenava o moleque. Se não me houvesse rendido à tentação, aquela imundície não existiria, pelo menos não existiria no meu espírito.
Cheguei a casa precisando confessar-me, livrar-me da recordação medonha. Narrei o que vira e o que ouvira: fagulhas alcançando a palha, roendo a palha, semeando estragos; a mulher conduzindo móveis, defendendo a Virgem Maria, sucumbindo enrolada em chamas, depois estirada no chão, sem braços e sem pernas, os dentes arreganhados numa careta. Dois buracos tenebrosos, gelatina esverdeada a correr das ventas.
Arrepiava-me, repetia a descrição, excitava-me tanto que meus pais tentaram acalmar-me, reduzir o sinistro. Não havia motivo para a gente se aperrear. Fora uma infelicidade, sem dúvida. Mas era a vontade de Deus, estava escrito. E podia ser pior, muito pior. Se se tivesse queimado a igreja, ou a loja de Seu Quinca Epifânio, a mais importante da vila, o dano seria tremendo. Deus era misericordioso: contentava-se com uma habitação miserável, situada longe da rua, e com o sacrifício de uma preta anônima. Não me convenci. A loja de Seu Quinca Epifânio e a igreja não tinham nada com o negócio. Eu não vira incêndio na igreja nem na loja de Seu Quinca Epifânio: vira uma choupana destruída, e a choupana crescia, igualava-se às construções de tijolo. Seu Quinca Epifânio e Padre João Inácio estavam vivos. Se tivessem morrido no fogaréu, não seriam mais nojentos que a negra.
Deviam repreender-me, dizer que me comportara mal abandonando o aceiro, as árvores, os periquitos, as flores. A lembrança infeliz me atormentava: necessário que os outros soubessem isto e me censurassem. Tinham sido sempre rigorosos em demasia, e agora me deixavam com aquele peso no interior. A arguição e o castigo me dariam talvez um pouco de calma: eu esqueceria, nos lamentos e na zanga, a visagem terrível. Não me puniram, quiseram transformar aquele horror num fato ordinário
À noite o sono fugiu, não houve meio de agarrá-lo. A negra estava ali perto da minha cama, na mesa da sala de jantar, sem braços, sem pernas, e tinha dois palmos, três palmos de menino. De repente se desenvolvia em excesso, monstruosa. Sob a testa imensa rasgavam-se precipícios imensos. O nariz era tini açude imenso, de pus. E os dentes se alargavam, numa gargalhada imensa.
Em noites comuns, para escapar aos habitantes da treva, eu envolvia a cabeça.
Isto me resguardava: nenhum fantasma viria perseguir-me debaixo do lençol.
Agora não conseguia preservar-me. O tição apagado avizinhava-se, puxava a coberta, ligava-se ao meu corpo, sujava-me com a salmoura que vertia de gretas profundas. As órbitas vazias espiavam-me, a lama do nariz borbulhava num estertor, os dentes se acavalavam e queriam morder-me. Encolhia-me, escondia o rosto no travesseiro, e a visão continuava a atenazar-me. Os arrepios que me agitavam mudaram-se em tremor violento. Não resisti ao suplício, gritei como um doido, alarmei a família. Vieram buscar-me, tentaram varrer-me o espectro da imaginação, acomodaram-me aos pés da cama do casal. Aí me abati, no círculo de luz da lamparina, ouvindo o canto dos galos, até que a madrugada me trouxe uma ligeira modorra cheia de sonhos ruins. Adormeci com a figura asquerosa, despertei com ela.
Durante o dia voltei a mencioná-la, a descrevê-la, nauseado. Procurei o autor daquela sórdida agonia e responsabilizei Nossa Senhora. Se a criatura não tivesse tido a ideia de salvar a imagem, estaria cortando palmas de ouricuri para fabricar nova cabana. Tinha devoção, e isto a perdera, evidentemente a mãe de Deus era ingrata e feroz. Em paga de tão puro desvelo
cólera, destruição.
As pessoas grandes, porém, refutaram o meu juízo de modo singular. A Virgem Maria tinha sido generosa. Escolhera a negra porque a julgava digna de salvação. Impusera-lhe algumas dores e em troca lhe oferecia o paraíso, sem o estágio do purgatório. O fogo do purgatório, horroroso, não se comparava aos lumes terrestres, e todos nós, cedo ou tarde, nos frigiríamos nele. A negra tivera sorte. Provavelmente já estava no céu, diante de Jesus, misturada aos serafins.
Essa esquisita benevolência deixou-me perplexo. Calei-me, prudente, mas achei o comentário duvidoso e embrulhado. Não me parecia que o purgatório fosse indispensável. E a negra, incompleta e imunda, não estava no céu. Que ia fazer lá? Estragaria as delícias eternas, mancharia as asas dos anjos.
Graciliano Ramos, in Infância

Nenhum comentário:

Postar um comentário