Com
o senhor me ouvindo, eu deponho. Conto. Mas primeiro tenho de relatar
um importante ensino que recebi do compadre meu Quelemém. E o senhor
depois verá que naquela minha noite eu estava adivinhando coisas,
grandes ideias.
Compadre
meu Quelemém, muitos anos depois, me ensinou que todo desejo a gente
realizar alcança ― se tiver ânimo para cumprir, sete dias
seguidos, a energia e paciência forte de só fazer o que dá
desgosto, nôjo, gastura e cansaço, e de rejeitar toda qualidade de
prazer. Diz ele; eu creio. Mas ensinou que, maior e melhor, ainda, é,
no fim, se rejeitar até mesmo aquele desejo principal que serviu
para animar a gente na penitência de glória. E dar tudo a Deus, que
de repente vem, com novas coisas mais altas, e paga e repaga, os
juros dele não obedecem medida nenhuma. Isso é do compadre meu
Quelemém. Espécie de reza?
Bem,
rezar, aquela noite, eu não conseguia. Nisso nem pensei. Até para a
gente se lembrar de Deus, carece de se ter algum costume. Mas foi
aquele grão de ideia que me acuculou, me argumentou todo.
Ideiazinha. Só um começo. Aos pouquinhos, é que a gente abre os
olhos; achei, de per mim. E foi! que, no dia que amanhecia, eu não
ia pitar, por forte que fosse o vício de minha vontade. E não ia
dormir, nem descansar sentado nem deitado. E não ia caçar a
companhia do Reinaldo, nem conversa, o que de tudo mais prezava.
Resolvi aquilo, e me alegrei. O medo se largava de meus peitos, de
minhas pernas. O medo já amolecia as unhas. Íamos chegando numa
tapera, nas Lagoas do Córrego Mucambo. Lá nós tínhamos pastos
bons. O que resolvi, cumpri. Fiz.
Ah,
aquele dia me carregou, abreviei o poder de outras aragens. Cabeça
alta ― digo. Esta vida está cheia de ocultos caminhos. Se o senhor
souber, sabe; não sabendo, não me entenderá. Ao que, por outra,
ainda um exemplo lhe dou. O que há, que se diz e se faz ― que
qualquer um vira brabo corajoso, se puder comer crú o coração de
uma onça pintada. E, mas, a onça, a pessoa mesma é quem carece de
matar; mas matar à mão curta, a ponta de faca! Pois, então, por aí
se vê, eu já vi! um sujeito medroso, que tem muito medo natural de
onça, mas que tanto quer se transformar em jagunço valentão ― e
esse homem afia sua faca, e vai em soroca, capaz que mate a onça,
com muita inimizade; o coração come, se enche das coragens
terríveis! O senhor não é bom entendedor? Conto. De não pitar, me
vinham uns rangidos repentes, feito eu tivesse ira de todo o mundo.
Aguentei. Sobejante saí caminhando, com firmes passos! bis, tris; ia
e voltava. Me deu vontade de beber a da garrafa. Rosnei que não.
Andei mais. Nem não tinha sono nenhum, desmenti fadiga. Reproduzi de
mim outro fôlego. Deus governa grandeza. Medo mais? Nenhum algum!
Agora viesse corja de zebebelos ou tropa de meganhas, e me achavam.
Me achavam, ah, bastantemente.
Eu
aceitava qualquer vuvú de guerra, e ia em cima, enorme sangue, ferro
por ferro. Até queria que viessem, duma vez, pelo definitivo. Aí,
quando os passos escutei, vi: era o Reinaldo, que vindo. Ele queria
direto, comigo se conferir.
Eu
não podia tão depressa fechar meu coração a ele. Sabia disso.
Senti. E ele curtia um engano: pensou que eu estava amofinado, e eu
não estava. O que era sisudez de meu fogo de pessoa, ele tomou por
mãmolência. Queria me trazer consolo? ― Riobaldo, amigo... ― me
disse. Eu estava respirando muito forte, com pouca paciência para o
trivial; pelo tanto respondi alguma palavra só. Ele, em hora comum,
com muito menos que isso a gente marfava. Na vez, não se ofendeu. ―
Riobaldo, não calculei que você era genista... ― ainda gracejou.
Dei a nenhuma resposta. Momento calados ficamos, se ouvia o corrute
dos animais, que pastavam à bruta no capim alto. O Reinaldo se
chegou para perto de mim. Quanto mais eu tinha mostrado a ele a minha
dureza, mais amistoso ele parecia; maldando, isso pensei. Acho que
olhei para ele com que olhos. Isso ele não via, não notava. Ah, ele
me queria-bem, digo ao senhor.
Mas,
graças-a-deus, o que ele falou foi com a sucinta voz:
― Riobaldo,
pois tem um particular que eu careço de contar a você, e que
esconder mais não posso... Escuta: eu não me chamo Reinaldo,
de verdade. Este é nome apelativo, inventado por necessidade minha,
carece de você não me perguntar por quê. Tenho meus fados. A vida
da gente faz sete voltas ― se diz. A vida nem é da gente...
Ele
falava aquilo sem rompante e sem entonos, mais antes com pressa, quem
sabe se com tico de pesar e vergonhosa suspensão.
― Você
era menino, eu era menino... Atravessamos o rio na canoa... Nos
topamos naquele porto. Desde aquele dia é que somos amigos.
Que
era, eu confirmei. E ouvi!
― Pois
então! o meu nome, verdadeiro, é Diadorim... Guarda este meu
segredo. Sempre, quando sozinhos a gente estiver, é de Diadorim que
você deve de me chamar, digo e peço, Riobaldo...
Assim
eu ouvi, era tão singular. Muito fiquei repetindo em minha mente as
palavras, modo de me acostumar com aquilo. E ele me deu a mão.
Daquela mão, eu recebia certezas. Dos olhos. Os olhos que ele punha
em mim, tão externos, quase tristes de grandeza. Deu alma em cara.
Adivinhei o que nós dois queríamos ― logo eu disse! ―
Diadorim... Diadorim! ― com uma força de afeição. Ele
sério sorriu. E eu gostava dele, gostava, gostava. Aí tive o fervor
de que ele carecesse de minha proteção, toda a vida! eu terçando,
garantindo, punindo por ele. Ao mais os olhos me perturbavam; mas
sendo que não me enfraqueciam. Diadorim. Sol-se-pôr, saímos e
tocamos dali, para o Canabrava e o Barra. Aquele dia fora meu, me
pertencia. Íamos por um plâino de varjas; lua lá vinha. Alimpo de
lua. Vizinhança do sertão ― esse Alto-Norte brabo começava. ―
Estes rios têm de correr bem! eu de mim dei. Sertão é isto, o
senhor sabe! tudo incerto, tudo certo. Dia da lua. O luar que põe a
noite inchada.
Reinaldo,
Diadorim, me dizendo que este era real o nome dele ― foi como
dissesse notícia do que em terras longes se passava. Era um nome,
ver o que. Que é que é um nome? Nome não dá! nome recebe. Da
razão desse encoberto, nem resumi curiosidades. Caso de algum crime
arrependido, fosse, fuga de alguma outra parte; ou devoção a um
santo-forte. Mas havendo o ele querer que só eu soubesse, e que só
eu esse nome verdadeiro pronunciasse. Entendi aquele valor. Amizade
nossa ele não queria acontecida simples, no comum, sem encalço. A
amizade dele, ele me dava. E amizade dada é amor. Eu vinha pensando,
feito toda alegria em brados pede: pensando por prolongar. Como toda
alegria, no mesmo do momento, abre saudade. Até aquela ― alegria
sem licença, nascida esbarrada. Passarinho cai de voar, mas bate
suas asinhas no chão.
Guimarães
Rosa, in Grande sertão: veredas
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