sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

O Pequod encontra o Bouton-de-Rose

Em vão revolveu o ventre deste Leviatã procurando âmbar-gris, o fedor intolerável impediu-lhe a busca.
Sir T. Browne, V.E.

Foi uma ou duas semanas depois da última cena de pesca de baleias relatada, quando estávamos navegando vagarosamente sobre um indolente e vaporoso mar de meio-dia, que os diversos narizes do convés do Pequod se revelaram melhores e mais atentos observadores do que os três pares de olhos no alto. Um cheiro peculiar e não muito agradável vinha do mar.
Aposto uma coisa”, disse Stubb, “que algumas daquelas baleias que atingimos com os druggs no outro dia estão em algum lugar por aqui. Achei que logo emborcariam.”
Dentro em pouco, a bruma à nossa frente dissipou-se; e à distância viu-se um navio, cujas velas ferradas prefiguravam uma baleia presa ao costado. À medida que nos aproximamos, vimos as cores da França no topo do navio estrangeiro; e devido ao redemoinho nebuloso de vulturinas aves marinhas que voavam e giravam, pairando e descendo ao redor, estava claro que a baleia ao longo do costado devia ser o que os pescadores chamam de baleia empestada, ou seja, uma baleia que morreu no mar sem ser molestada, e que, dessa forma, flutuara como um cadáver sem dono. Pode-se imaginar o odor desagradável que uma tal massa exala; pior do que uma cidade Assíria durante a peste, quando os vivos já não são capazes de enterrar os mortos. Tão intolerável uns o consideram que nem a cobiça poderia persuadi-los a amarrar-lhe o corpo. No entanto, há aqueles que ainda o farão; a despeito do fato de que o óleo obtido desses espécimes seja de qualidade muito inferior, sem predicado que lembre a essência de rosas.
Aproximando-nos ainda mais, à medida que a brisa expirava, percebíamos que o Francês trazia uma segunda baleia ao costado; e que essa baleia parecia ainda mais perfumada que o primeiro ramalhete de flores. Na realidade, tratava-se de uma daquelas baleias problemáticas, que parecem murchar e morrer por algum tipo de prodigiosa dispepsia ou indigestão; deixando seus corpos defuntos quase que totalmente destituídos de qualquer coisa que lembre óleo. Não obstante, no momento apropriado, veremos que nenhum pescador experiente torce o nariz para uma baleia dessas, ainda que, em geral, evite as baleias empestadas.
O Pequod aproximara-se tanto do estranho que Stubb jurou reconhecer o cabo de sua pá de corte emaranhado nas ostaxas presas em torno da cauda de uma dessas baleias.
Aí temos um bom sujeito, agora”, riu, fazendo troça, de pé na proa do navio, “aí temos um chacal! Sei bem que esses Crapôs Franceses são apenas uns pobres-diabos na pesca; por vezes, descem os botes atrás de espuma, confundindo-a com o sopro do Cachalote; sim, e, por vezes, zarpam do porto com o porão cheio de caixas com velas de sebo e caixotes de apagadores de velas, prevendo que todo o óleo que conseguirem não será suficiente para molhar o pavio do Capitão; sim, nós sabemos disso; mas bem aí temos um Crapô que se satisfaz com os nossos restos, digo, como a baleia com o drugg; sim, fica satisfeita em arranhar os ossos secos daquele outro peixe precioso que tem ali. Coitado! Um de vós aí – passai um chapéu e vamos presenteá-los com um pouco de óleo, em nome da caridade. Pois o óleo que conseguir dessa baleia com o drugg não serve para queimar numa cadeia; não, nem numa cela de condenado. Ora, quanto à outra baleia, creio que conseguiria eu mais óleo cortando e derretendo estes três mastros do que eles trabalhando naquele amontoado de ossos; ainda que, pensando bem, ele possa ter algo bem mais valioso do que óleo; sim, o âmbar-gris. Será que o nosso velho pensou nisso? Vale a pena tentar. Sim, estou disposto a isso”, e, dizendo isso, correu para o tombadilho.
Enquanto isso, a brisa tênue havia se transformado em completa calmaria; de modo que, querendo ou não, o Pequod se via apanhado pelo cheiro, sem esperança de escapar, caso a brisa não voltasse. Saindo da cabine, Stubb chamou a tripulação do seu bote e remou em direção ao estranho. Aproximando-se da proa, notou que, de acordo com o extravagante gosto Francês, a parte superior do quebra-mar estava entalhada à maneira de um enorme talo inclinado, pintada de verde, e que à guisa de espinhos tinha pregos de cobre saídos de toda parte; terminando num simétrico bulbo vincado, de um vermelho reluzente. Sobre as tábuas da amurada, em grandes letras douradas, lia-se Bouton-de-Rose, – “Botão-de-Rosa”, ou “Moça Bonita”; e esse era o nome romântico desse navio aromatizado.
Conquanto Stubb não entendesse a parte da inscrição referente a Bouton, a palavra rose, somada à figura de proa com bulbos, foi suficiente para explicar tudo a ele.
Um botão-de-rosa de madeira, hein?”, gritou, com a mão no nariz, “Fica muito bem; mas cheira feito toda a Criação!”
Para estabelecer uma comunicação direta com as pessoas no convés, ele teve que remar em torno da proa para estibordo e assim se aproximar da baleia empestada; falando, então, por cima dela.
Chegando ali, com uma mão ainda no nariz, berrou – “Ó, de bordo, Bouton-de-Rose! Há algum de vocês, Bouton-de-Roses, que fale inglês?”
Sim”, replicou um nativo de Guernsey, que era o primeiro imediato.
Pois bem, meu botão de Bouton-de-Rose, você avistou a Baleia Branca?”
Quê Baleia franca?”
A Baleia Branca – um cachalote – Moby Dick?”
Nunca ouvi falar de tal baleia. Cachalot Blanche! Baleia Branca – não!”
Pois bem, então; até logo por enquanto, volto num minuto.”
Remou depressa de volta, na direção do Pequod e, ao ver Ahab inclinado no balaústre do tombadilho, esperando por informações, juntou as duas mãos em concha e gritou – “Não, senhor! Não!”. Com isso, Ahab retirou-se, e Stubb voltou ao Francês.
Reparou naquele momento que o nativo de Guernsey, que acabara de enfiar-se por entre as correntes, segurando uma pá de corte, colocara o nariz numa espécie de saco.
O que aconteceu com o seu nariz”, disse Stubb. “Está quebrado?”
Gostaria que estivesse quebrado, ou que não tivesse nariz!”, respondeu o nativo de Guernsey, que não parecia gostar muito do trabalho que estava fazendo. “Mas por que seguras o seu?”
Ah, por nada! É um nariz de cera; tenho que segurá-lo. Dia lindo, não é mesmo? A brisa jardineira, eu diria; você nos jogaria aqui uns buquês de flores, Bouton-de-Rose?”
Que diabo você quer aqui?”, bradou o nativo de Guernsey, encolerizando-se de súbito.
Oh! Calminha aí! – fica calmo; sim, é esta a palavra; por que você não envolve essas baleias com gelo enquanto trabalha nelas? Sem brincadeira; sabe que é bobagem tentar extrair óleo dessas baleias, Botão-de-rosa? Quanto àquela ressecada, não tem nem um quarto de libra na carcaça inteira.”
Sei muito bem, mas, veja, o capitão daqui não acredita; é a primeira viagem dele; antes, ele tinha uma manufatura em Colônia. Mas vem a bordo; talvez ele acredite em você, já que não acredita em mim; e eu me livrarei desses restos imundos.”
Qualquer coisa para fazer um obséquio, meu querido companheiro amável”, replicou Stubb, que subiu de pronto ao convés. Ali, uma estranha cena se lhe apresentou. Os marinheiros, com ornados gorros de lã vermelha, preparavam as talhas pesadas para as baleias. Mas trabalhavam bem devagar, falavam bem depressa, e pareciam não estar de bom humor. Seus narizes projetavam-se para cima como se fossem paus de bujarronas. Vez ou outra largavam o trabalho aos pares e corriam para o topo do mastro para respirar ar fresco. Alguns, achando que pegariam a peste, mergulhavam pedaços de estopa no alcatrão e apertavam-nas de tempo em tempo nas narinas. Outros, tendo quebrado o cabo dos seus cachimbos quase junto à boquilha, aspiravam a fumaça do tabaco com força, para manter os seus órgãos olfativos ocupados ininterruptamente.
Stubb ficou impressionado com uma saraivada de gritos e anátemas vinda de trás da cabine do Capitão; olhou naquela direção e viu um rosto colérico sair de trás daquela porta, mantida entreaberta por dentro. Era o atormentado médico de bordo, que, depois de protestar em vão contra os procedimentos do dia, fora, ele próprio, à cabine do capitão (cabinet, como ele dizia) para evitar a peste; mas, vez ou outra, não conseguia conter as suas súplicas e a sua raiva.
Observando isso tudo, Stubb concluiu que seu plano poderia render bons frutos e, voltando-se ao nativo de Guernsey, teve uma breve conversa com ele, durante a qual o estranho imediato manifestou seu desapreço pelo Capitão, um ignorante convencido, que levara todos eles àqueles tão desvantajosos e desagradáveis apuros. Sondando-o com cuidado, Stubb ainda percebeu que o nativo de Guernsey não manifestava a menor suspeita do âmbar-gris. Portanto, nada falou sobre o assunto, demonstrando-se contudo franco e de confiança, a tal ponto que os dois rapidamente maquinaram um plano para enganar e ridicularizar o Capitão, sem que este sonhasse em suspeitar de sua sinceridade. Segundo esse pequeno plano, o nativo de Guernsey, no papel de intérprete, diria ao Capitão o que bem quisesse, mas como se viesse de Stubb; e este, por sua vez, diria qualquer bobagem que lhe viesse à mente durante o colóquio.
Nesse momento a vítima designada saiu de sua cabine. Era um homem pequeno e escuro, mas de aspecto muito delicado para um capitão, com grandes suíças e um bigode; vestia um colete de veludo vermelho, com um relógio e sinetes laterais. A este cavalheiro Stubb foi apresentado com civilidade pelo nativo de Guernsey, que, de pronto, se colocou ostensivamente no papel de intérprete entre os dois.
O que digo a ele primeiro?”, disse.
Ora”, disse Stubb, olhando para o colete de veludo, para o relógio e os sinetes, “pode começar dizendo que ele parece uma criancinha, mas que não pretendo julgar seu aspecto.”
Ele diz, Monsieur”, disse o nativo de Guernsey, em francês, virando-se para o capitão, “que ontem mesmo o navio dele falou com uma embarcação, cujo capitão e o primeiro imediato, juntamente com seis marinheiros, morreram todos de uma febre transmitida por uma baleia empestada, que traziam ao costado.”
Ouvindo isso, o capitão estremeceu e quis saber muito mais.
O que mais?” disse o nativo de Guernsey a Stubb.
Ora, já que ele aceita tudo tão fácil, diga-lhe que agora que observei com atenção tenho certeza de que ele é tão capaz de comandar um navio baleeiro quanto um macaco de Santiago. Melhor; diga-lhe que, na minha cabeça, ele é um babuíno.”
Ele jura e declara, Monsieur, que a outra baleia, a ressecada, é ainda mais mortífera do que a empestada; em suma, Monsieur, ele nos conjura, se damos valor às nossas vidas, a separarmo-nos destes peixes.”
No mesmo instante, o capitão correu adiante e, em alto e bom som, ordenou à sua tripulação que parasse de içar as talhas e que prontamente soltasse as cordas e as correntes que prendiam as baleias ao navio.
O que mais?” disse o nativo de Guernsey, quando o capitão voltou a eles.
Ora, deixe-me ver; sim, diga-lhe agora que – que –, diga-lhe que, de fato, eu aprontei com ele, e (à parte, para si mesmo ) talvez com alguém mais.”
Ele diz, Monsieur, que está muito feliz em ter sido útil.”
Ouvindo isso, o capitão jurou que eles eram os agradecidos (querendo dizer, ele e o oficial) e concluiu convidando Stubb a descer à sua cabine para tomar uma garrafa de Bordeaux.
Ele quer que você tome um copo de vinho com ele”, disse o intérprete.
Agradeça-lhe de coração, mas diga-lhe que é contra os meus princípios beber com um homem que eu enganei. Na verdade, diga-lhe que devo partir.”
Ele diz, Monsieur, que seus princípios não o autorizam a beber; mas que, se o Monsieur quiser viver outro dia para beber, então Monsieur deveria arriar os quatro botes e puxar o navio para longe dessas baleias, pois com esta calma não seguirão sozinhas.”
A essa altura, Stubb descia pelo costado e, embarcando em seu bote, chamou o nativo de Guernsey para lhe dizer isso – que, tendo um comprido cabo de reboque no bote, faria o que estivesse ao seu alcance para ajudá-los, puxando, por exemplo, a baleia mais leve do costado do navio. Então, enquanto os botes dos Franceses se empenhavam em levar o navio para uma direção, o bondoso Stubb rebocava sua baleia em outra direção, soltando ostensivamente um cabo de reboque de comprimento fora do comum.
Uma brisa logo soprou; Stubb fingiu soltar a baleia; içando os botes, o Francês logo imprimiu distância, enquanto o Pequod deslizava entre ele e a baleia de Stubb. E então Stubb remou depressa de encontro ao corpo flutuante e, chamando o Pequod para dar nota de suas intenções, começou de pronto a colher o fruto de sua dissimulada injustiça. Pegando a afiada pá de seu bote, deu início ao procedimento de escavação do corpo, um pouco atrás da barbatana lateral. Poder-se-ia pensar que estava cavando um porão no mar; e quando, por fim, sua pá atingiu as costelas magras, foi como se aparecessem antigas cerâmicas e azulejos Romanos enterrados no denso barro Inglês. Os homens de seu bote estavam todos envolvidos em grande alvoroço, querendo avidamente ajudar seu chefe, tão ansiosos quanto os caçadores de ouro.
E todo o tempo inúmeras aves mergulhavam e arremetiam e guinchavam e gritavam e lutavam à sua volta. Stubb começava a ficar desapontado, especialmente à medida que o terrível aroma de seu ramalhete aumentava, quando de súbito, do próprio coração dessa pestilência, emanou tênue corrente de perfume, que correu através da maré de mau cheiro sem ser por ela absorvida, como um rio que deságua noutro, seguindo com ele sem que suas águas se misturem por algum tempo.
Aqui, aqui”, gritou Stubb com alegria, batendo em alguma coisa na parte submersa, “uma bolsa, uma bolsa!”
Largando a pá, enfiou as duas mãos e tirou uns punhados de uma coisa que parecia sabão de Windsor, ou um velho queijo forte e mosqueado; e, ademais, gorduroso e bastante saboroso. Poderíamos amassá-lo entre os dedos com facilidade; sua cor fica entre o amarelo e o cinza. E isso, caros amigos, é o âmbar-gris, do qual cada onça vale um guinéu de ouro em qualquer boticário. Foram obtidos cerca de seis punhados; mas uma boa parte, inevitavelmente, se perdeu no mar, sem contar a outra, ainda melhor, que poderia ter sido guardada se não fosse o impaciente e enfático Ahab, que logo ordenou a Stubb que desistisse e viesse a bordo, caso contrário, o navio lhe diria adeus.
Herman Melville, in Moby Dick

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