quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

O âmbar-gris

Ora, esse âmbar-gris é uma substância muito curiosa e tão importante como artigo de comércio que, em 1791, um certo capitão Coffin, nascido em Nantucket, foi interrogado sobre o assunto nas barras da Câmara dos Comuns na Inglaterra. Pois naquela época, e até tempos mais ou menos recentes, a origem precisa do âmbar-gris, assim como a do próprio âmbar, permaneceu um problema para os doutos. Embora a palavra âmbar-gris seja um composto de origem francesa de âmbar e cinza, as duas substâncias são bem diferentes. Pois o âmbar, ainda que por vezes seja encontrado no litoral, é extraído dos solos do interior, ao passo que o âmbar-gris só é encontrado no mar. Além disso, o âmbar é uma substância dura, transparente, quebradiça e inodora usada para fazer o bocal dos cachimbos, miçangas e ornamentos; mas o âmbar-gris, macio e céreo, é tão aromático e temperado que é muito usado em perfumes, defumadores, velas de grande valor, pós para o cabelo e brilhantina. Os Turcos usam-no para cozinhar e também o levam para Meca, com o mesmo propósito com que se leva incenso para a catedral de São Pedro, em Roma. Alguns mercadores de vinho derramam alguns grãos no clarete, para dar-lhe sabor.
Quem, então, poderia imaginar que cavalheiros e senhoras tão elegantes se regalassem com uma essência encontrada nos intestinos tão pouco gloriosos de uma baleia doente! Mas é isso que ocorre. Para alguns o âmbar-gris é supostamente a causa e para outros o efeito da dispepsia da baleia. Seria difícil dizer como curar tal dispepsia, a menos que se lhe administrassem três ou quatro botes carregados de pastilhas de Brandreth, e depois se saísse do caminho, como os trabalhadores fazem quando explodem pedras.
Esqueci de dizer que no âmbar-gris foram encontradas certas placas duras, redondas como de osso, que Stubb, a princípio, pensou tratar-se de botões de calças de marinheiros; mas depois se viu que eram apenas pedacinhos de ossos de lulas embalsamados desse modo.
Que a incorrupção desse âmbar-gris aromático seja encontrada no coração de tamanha podridão, não parece algo extraordinário? Recorda-te do que São Paulo disse aos Coríntios sobre a corrupção e a incorrupção; como somos semeados pela desonra, mas ressuscitamos em glória. Lembra-te também do que disse Paracelso sobre aquilo de que é feito o melhor almíscar. Tampouco te esqueças de que a água-de-colônia, nos primeiros estágios da sua fabricação, é a pior de todas as coisas que cheiram mal.
Gostaria de terminar este capítulo com a súplica acima, mas não posso, em virtude da minha ansiedade em refutar uma acusação amiúde feita contra os baleeiros, a qual, na avaliação de algumas pessoas predispostas, pode ser considerada, de modo indireto, ligada àquilo que foi dito sobre as duas baleias do Francês. No decurso deste livro condenou-se a calúnia difamatória de que a profissão dos baleeiros é uma atividade desmazelada ou suja. Mas há algo mais a ser refutado. Insinua-se que todas as baleias sempre cheiram mal. Ora, qual é a origem desse estigma detestável?
Na minha opinião, isso remonta à chegada a Londres dos primeiros navios baleeiros da Groenlândia, há mais de dois séculos. Pois os baleeiros não derretiam, nem derretem hoje em dia, a gordura no mar, como os navios do sul sempre fizeram; mas cortavam a gordura fresca em pedaços pequenos, enfiavam-nos pelos buracos dos batoques em tonéis grandes e levavam-nos para a sua terra dessa forma; a brevidade da estação naqueles mares congelados e as súbitas tempestades violentas às quais ficavam expostos não lhes permitiam outro trajeto. A consequência é que, ao entrar no porão para descarregar um desses cemitérios de baleias nas docas da Groenlândia, se espalhava um cheiro parecido com o que surge ao se escavar o cemitério antigo de uma cidade, para ali colocar as fundações de um hospital-maternidade.
Suponho também que essa acusação maldosa contra os baleeiros tenha sido imputada, em parte, à existência no litoral da Groenlândia, em outros tempos, de uma aldeia holandesa chamada Schmerenburgh ou Smeerenberg, sendo este último o nome que é usado pelo douto Fogo Von Slack em sua importante obra sobre cheiros, livro básico sobre esse assunto. Como o nome indica (smeer, gordura; berg, conservar) essa aldeia foi fundada para que a frota baleeira holandesa tivesse um lugar para derreter a gordura, sem ter que levá-la para a Holanda com esse propósito. Era um conjunto de fornalhas, caldeiras e depósitos de óleo; quando o trabalho estava em pleno vapor é certo que não exalava um odor muito agradável. Mas isso é bem diferente quando se trata de um baleeiro dos mares do sul; que numa viagem de cerca de quatro anos, depois de encher o porão de óleo, não necessita de cinquenta dias para a atividade de ferver; e no estado em que vai para os tonéis o óleo é quase inodoro. A verdade é que, viva ou morta, a baleia, se for tratada com decência, como espécie, não cheira mal de modo nenhum; tampouco se pode reconhecer um baleeiro pelo nariz, como as pessoas da Idade Média pretendiam descobrir um Judeu num grupo. A baleia, de fato, não pode deixar de ser cheirosa, quando goza de saúde perfeita; faz bastante exercício; está sempre fora de casa; embora raras vezes, é fato, ao ar livre. Afirmo que o movimento da cauda do Cachalote na superfície exala um perfume como uma senhora com cheiro de almíscar quando move seu vestido num tépido salão. Com o que posso comparar a fragrância do Cachalote, considerando sua magnitude? Não haveria de ser com o elefante famoso, com joias nas presas, cheirando a mirra, que saiu de uma cidade da Índia para homenagear Alexandre, o Grande?
Herman Melville, in Moby Dick

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