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quando
eu sair daqui, vamos começar vida nova numa cidade antiga, onde
todos se cumprimentam e ninguém nos conheça. Vou lhe ensinar a
falar direito, a usar os diferentes talheres e copos de vinho,
escolherei a dedo seu guarda-roupa e livros sérios para você ler.
Sinto que você leva jeito porque é aplicada, tem meigas mãos, não
faz cara ruim nem quando me lava, em suma, parece uma moça digna
apesar da origem humilde. Minha outra mulher teve uma educação
rigorosa, mas mesmo assim mamãe nunca entendeu por que eu escolhera
justamente aquela, entre tantas meninas de uma família distinta.
Minha mãe era de outro século, em certa ocasião chegou a me
perguntar se Matilde não tinha cheiro de corpo. Só porque Matilde
era de pele quase castanha, era a mais moreninha de sete irmãs,
filhas de um deputado correligionário do meu pai. Não sei se alguma
vez lhe contei que já tinha visto Matilde de passagem, na porta da
igreja da Candelária. Mas nunca a pude analisar como naquele dia,
quando a surpreendi na pausa que antecedia o ofertório. Ela estava
no coral que cantava o Réquiem, e o vestido de congregada mariana
não lhe caía bem, era como uma roupa ao redor dela, solta da pele.
Uma roupa rígida feito uma armadura, estranha mesmo ao corpo dela, e
um corpo nu ali debaixo poderia até dançar sem dar na vista. Eram
as exéquias do meu pai, no entanto eu não sabia mais me libertar de
Matilde, procurava adivinhar seus movimentos mais íntimos e seus
pensamentos tão distantes. Eu percebia de longe seu rubor, seu olhar
em pinguepongue, seu riso contido enquanto cantava: libera anima
omnium fidelium defunctorum de poenis inferni. E foi como um choque
elétrico quando mamãe tocou meu cotovelo, me convocando para a
comunhão. Mas assim que me levantei, me atirei de volta ao
genuflexório, prevenindo um escândalo. De maneira alguma eu poderia
ser visto em pé, muito menos ao lado de minha mãe, no estado
indecente em que me encontrava. Então, tapando o rosto com as mãos,
fazendo passar por luto minha vergonha, procurei pensar nas coisas
mais tristes enquanto mamãe me consolava. Quando consegui me safar
em parte do embaraço, cabisbaixo acompanhei mamãe ao altarmor, e
comunguei ciente de cometer um sacrilégio pelo qual seria em breve
punido. E com a hóstia ainda íntegra na língua, meio sem querer
entreabri os olhos em direção ao coro, que se dissolvera. Assisti
contrito ao desfecho da cerimónia, em seguida me postei com mamãe
para atender à imensa fila de cumprimentos. Acolhi condolências
formais, efusões de desconhecidos, mãos pegajosas e hálitos
azedos, já sem grandes esperanças de Matilde. Até que a avistei ao
lado dos pais, depois rapidamente entre as irmãs, depois no grupo
das congregadas marianas. Vi como ela se aproximava não em linha
reta, mas em parafuso, a se entreter com meio mundo à sua volta,
como se estivesse numa fila de sorveteria. Mais ela vinha, mais eu
ansiava por vê-la face a face, e mais me angustiava a possibilidade
de perder outra vez a compostura. Chegou, me fitou com os olhos
subitamente marejados, me abraçou e sussurrou no meu ouvido,
coragem, Eulálio. Matilde falou Eulálio, e me confundiu. Tive um
arrepio pelo seu sopro quente em meu ouvido, e outro arrepio a
contrapelo, por ouvir um nome que quase me humilhava. Eu não queria
ser Eulálio, só mesmo os padres me chamavam assim nos tempos de
colégio. A me chamar Eulálio, preferia envelhecer e ser sepultado
com meus apelidos infantis, Lalá, Lalinho. O Eulálio do meu tetravô
português, passando por trisavô, bisavô, avô e pai, para mim era
menos um nome do que um eco. Então a encarei e disse, não entendi.
Matilde repetiu, coragem, Eulálio, e já agora, em sua voz
ligeiramente rouca, parecia que meu nome Eulálio tinha uma textura.
Falou meu nome como se o arranhasse um pouco, e quando num volteio se
retirou, tive como temia novo arrebatamento obsceno. Já se chegavam
suas seis irmãs branquinhas, logo atrás o deputado federal seu pai,
de braço com a senhora sua mãe, depois viriam as congregadas
marianas, mais uma ainda longa fila, e não havia alternativa.
Debrucei-me, contorci-me como em cólicas, soltei-me da minha mãe
aflita e disparei pela primeira porta. Cruzei a sacristia, para susto
do padre e seus acólitos, e alcancei uma saída lateral da igreja.
Ao deparar com gente na calçada, despi o paletó, protegi minhas
pernas e me enfiei numa ruela. Mas logo na avenida Beira-Mar eu já
podia caminhar como convém a um cavalheiro, a não ser pelo chapéu
esquecido no banco da igreja. E no fim de extensa caminhada cheguei
de mangas arregaçadas ao casarão de Botafogo, onde vi o velho
chofer de minha mãe encostado no capô do Ford. Entrei pelos fundos
e subi direto para o banheiro, pois tinha transpirado muito e carecia
de um banho fresco. E urgia compreender melhor o desejo que me
descontrolara, eu nunca havia sentido coisa semelhante. Se desejo era
aquilo, posso dizer que antes de Matilde eu era casto. Quem sabe se,
inadvertidamente, eu não teria me apossado da volúpia do meu pai,
assim como da noite para o dia herdara gravatas, charutos, negócios,
bens imóveis e uma possível carreira na política. Foi meu pai quem
me apresentou às mulheres em Paris, contudo mais que as próprias
francesas, sempre me impressionou o seu olhar para elas. Assim como o
aroma das mulheres daqui não me impressionava tanto quanto o cheiro
dele, impregnado na garçonnière que ele me emprestava. Debaixo do
chuveiro eu agora me olhava quase com medo, imaginando em meu corpo
toda a força e a insaciedade do meu pai. Olhando meu corpo, tive a
sensação de possuir um desejo potencial equivalente ao dele, por
todas as fêmeas do mundo, porém concentrado numa só mulher.
Chico
Buarque de Holanda, in Leite
derramado
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