O
amor, a união e o trabalho de todos nós junto ao pai era uma
mensagem de pureza austera guardada em nossos santuários, comungada
solenemente em cada dia, fazendo o nosso desjejum matinal e o nosso
livro crepuscular; sem perder de vista a claridade piedosa desta
máxima, meu irmão prosseguia na sua prece, sugerindo a cada passo,
e discretamente, a minha imaturidade na vida, falando dos tropeços a
que cada um de nós estava sujeito, e que era normal que isso pudesse
ter acontecido, mas que era importante não esquecer também as
peculiaridades afetivas e espirituais que nos uniam, não nos
deixando sucumbir às tentações, pondo-nos de guarda contra a queda
(não importava de que natureza), era este o cuidado, era esta pelo
menos a parte que cabia a cada membro, o quinhão a que cada um
estava obrigado, pois bastava que um de nós pisasse em falso para
que toda a família caísse atrás; e ele falou que estando a casa de
pé, cada um de nós estaria também de pé, e que para manter a casa
erguida era preciso fortalecer o sentimento do dever, venerando os
nossos laços de sangue, não nos afastando da nossa porta,
respondendo ao pai quando ele perguntasse, não escondendo nossos
olhos ao irmão que necessitasse deles, participando do trabalho da
família, trazendo os frutos para casa, ajudando a prover a mesa
comum, e que dentro da austeridade do nosso modo de vida sempre
haveria lugar para muitas alegrias, a começar pelo cumprimento das
tarefas que nos fossem atribuídas, pois se condenava a um fardo
terrível aquele que se subtraísse às exigências sagradas do
dever; ele falou ainda dos anseios isolados de cada um em casa, mas
que era preciso refrear os maus impulsos, moderar prudentemente os
bons, não perder de vista o equilíbrio, cultivando o autodomínio,
precavendo-se contra o egoísmo e as paixões perigosas que o
acompanham, procurando encontrar a solução para nossos problemas
individuais sem criar problemas mais graves para os que eram de nossa
estima, e que para ponderar em cada caso tinha sempre existido o
mesmo tronco, a mão leal, a palavra de amor e a sabedoria dos nossos
princípios, sem contar que o horizonte da vida não era largo como
parecia, não passando de ilusão, no meu caso, a felicidade que eu
pudesse ter vislumbrado para além das divisas do pai; evitando
conhecer os motivos ímpios da minha fuga (embora sugerindo
discretamente que meus passos fossem um mau exemplo pro Lula, o
caçula, cujos olhos sempre estiveram mais perto de mim), meu irmão
pôs um sopro quente na sua prece pra me lembrar que havia mais força
no perdão do que na ofensa e mais força no reparo do que no erro,
deixando claro que deveriam ser estes o anverso e o reverso sublimes
do bom caráter, cabendo, por ocasião de minha volta, o primeiro à
família, e o reparo do meu erro cabendo a mim, o filho desgarrado;
“você não sabe o que todos nós temos passado esse tempo da tua
ausência, te causaria espanto o rosto acabado da família; é duro
eu te dizer, irmão, mas a mãe já não consegue esconder de ninguém
os seus gemidos” ele disse misturando na sua reprimenda um certo e
cada vez mais tenso sentimento de ternura, ele que vinha caminhando
sereno e seguro, um tanto solene (como meu pai), enquanto eu me
largava numa rápida vertigem, pensando nas provisões dessa pobre
família nossa já desprovida da sua antiga força, e foi talvez, na
minha escuridão, um instante de lucidez eu suspeitar que na carência
do seu alimento espiritual se cozinhava num prosaico quarto de
pensão, em fogo-fátuo, a última reserva de sementes de um plantio;
“ela não contou pra ninguém da tua partida; naquele dia, na hora
do almoço, cada um de nós sentiu mais que o outro, na mesa, o peso
da tua cadeira vazia; mas ficamos quietos e de olhos baixos, a mãe
fazendo os nossos pratos, nenhum de nós ousando perguntar pelo teu
paradeiro; e foi uma tarde arrastada a nossa tarde de trabalho com o
pai, o pensamento ocupado com nossas irmãs em casa, perdidas entre
os afazeres na cozinha e os bordados na varanda, na máquina de
costura ou pondo ordem na despensa; não importava onde estivessem,
elas já não seriam as mesmas nesse dia, enchendo como sempre a casa
de alegria, elas haveriam de estar no abandono e desconforto que
sentiam; era preciso que você estivesse lá, André, era preciso
isso; e era preciso ver o pai trancado no seu silêncio: assim que
terminou o jantar, deixou a mesa e foi pra varanda; ninguém viu o
pai se recolher, ficou ali junto da balaustrada, de pé, olhando não
se sabe o que na noite escura; só na hora de deitar, quando entrei
no teu quarto e abri o guarda-roupa e puxei as gavetas vazias, só
então é que compreendi, como irmão mais velho, o alcance do que se
passava: tinha começado a desunião da família” ele disse e
parou, e eu sabia por que ele tinha parado, era só olhar o seu
rosto, mas não olhei, eu também tinha coisas pra ver dentro de mim,
eu poderia era dizer “a nossa desunião começou muito mais cedo do
que você pensa, foi no tempo em que a fé me crescia virulenta na
infância e em que eu era mais fervoroso que qualquer outro em casa”
eu poderia dizer com segurança, mas não era a hora de especular
sobre os serviços obscuros da fé, levantar suas partes devassas, o
consumo sacramental da carne e do sangue, investigando a volúpia e
os tremores da devoção, mesmo assim eu passei pensando na minha
fita de congregado mariano que eu, menino pio, deixava ao lado da
cama antes de me deitar e pensando também em como Deus me acordava
às cinco todos os dias pr’eu comungar na primeira missa e em como
eu ficava acordado na cama vendo de um jeito triste meus irmãos nas
outras camas, eles que dormindo não gozavam da minha
bem-aventurança, e me distraindo na penumbra que brotava da aurora,
e redescobrindo a cada lance da claridade do dia, ressurgindo através
das frinchas, a fantasia mágica das pequenas figuras pintadas no
alto da parede como cercadura, e só esperando que ela entrasse no
quarto e me dissesse muitas vezes “acorda, coração” e me
tocasse muitas vezes suavemente o corpo até que eu, que fingia
dormir, agarrasse suas mãos num estremecimento, e era então um jogo
sutil que nossas mãos compunham debaixo do lençol, e eu ria e ela
cheia de amor me asseverava num cicio “não acorda teus irmãos,
coração”, e ela depois erguia minha cabeça contra a almofada
quente do seu ventre e, curvando o corpo grosso, beijava muitas vezes
meus cabelos, e assim que eu me levantava Deus estava do meu lado em
cima do criado-mudo, e era um deus que eu podia pegar com as mãos e
que eu punha no pescoço e me enchia o peito e eu menino entrava na
igreja feito balão, era boa a luz doméstica da nossa infância, o
pão caseiro sobre a mesa, o café com leite e a manteigueira, essa
claridade luminosa da nossa casa e que parecia sempre mais clara
quando a gente vinha de volta lá da vila, essa claridade que mais
tarde passou a me perturbar, me pondo estranho e mudo, me prostrando
desde a puberdade na cama como um convalescente, “essas coisas
nunca suspeitadas nos limites da nossa casa” eu quase deixei
escapar, mas ainda uma vez achei que teria sido inútil dizer
qualquer coisa, na verdade eu me sentia incapaz de dizer fosse o que
fosse, e erguendo meus olhos vi que meu irmão tinha os olhos
mergulhados no seu copo, e, sem se mexer, como se respondesse ao
aceno do meu olhar, ele disse: “quanto mais estruturada, mais
violento o baque, a força e a alegria de uma família assim podem
desaparecer com um único golpe” foi o que ele disse com um súbito
luto no rosto, e parou, e num jorro instantâneo renasceram na minha
imaginação os dias claros de domingo daqueles tempos em que nossos
parentes da cidade se transferiam para o campo acompanhados dos mais
amigos, e era no bosque atrás da casa, debaixo das árvores mais
altas que compunham com o sol o jogo alegre e suave de sombra e luz,
depois que o cheiro da carne assada já tinha se perdido entre as
muitas folhas das árvores mais copadas, era então que se recolhia a
toalha antes estendida por cima da relva calma, e eu podia acompanhar
assim recolhido junto a um tronco mais distante os preparativos
agitados para a dança, os movimentos irrequietos daquele bando de
moços e moças, entre eles minhas irmãs com seu jeito de
camponesas, nos seus vestidos claros e leves, cheias de promessas de
amor suspensas na pureza de um amor maior, correndo com graça,
cobrindo o bosque de risos, deslocando as cestas de frutas para o
lugar onde antes se estendia a toalha, os melões e as melancias
partidas aos gritos da alegria, as uvas e as laranjas colhidas dos
pomares e nessas cestas com todo o viço bem dispostas sugerindo no
centro do espaço o mote para a dança, e era sublime essa alegria
com o sol descendo espremido entre as folhas e os galhos, se
derramando às vezes na sombra calma através de um facho poroso de
luz divina que reverberava intensamente naqueles rostos úmidos, e
era então a roda dos homens se formando primeiro, meu pai de mangas
arregaçadas arrebanhando os mais jovens, todos eles se dando rijo os
braços, cruzando os dedos firmes nos dedos da mão do outro,
compondo ao redor das frutas o contorno sólido de um círculo como
se fosse o contorno destacado e forte da roda de um carro de boi, e
logo meu velho tio, velho imigrante, mas pastor na sua infância,
puxava do bolso a flauta, um caule delicado nas suas mãos pesadas, e
se punha então a soprar nela como um pássaro, suas bochechas se
inflando como as bochechas de uma criança, e elas inflavam tanto,
tanto, e ele sanguíneo dava a impressão de que faria jorrar pelas
orelhas, feito torneiras, todo o seu vinho, e ao som da flauta a roda
começava, quase emperrada, a deslocar-se com lentidão, primeiro num
sentido, depois no seu contrário, ensaiando devagar a sua força num
vaivém duro e ritmado ao toque surdo e forte dos pés batidos
virilmente contra o chão, até que a flauta voava de repente,
cortando encantada o bosque, correndo na floração do capim e
varando os pastos, e a roda então vibrante acelerava o movimento
circunscrevendo todo o círculo, e já não era mais a roda de um
carro de boi, antes a roda grande de um moinho girando célere num
sentido e ao toque da flauta que reapanhava desvoltando sobre seu
eixo, e os mais velhos que presenciavam, e mais as moças que
aguardavam a sua vez, todos eles batiam palmas reforçando o novo
ritmo, e não tardava Ana, impaciente, impetuosa, o corpo de
campônia, a flor vermelha feito um coalho de sangue prendendo de
lado os cabelos negros e soltos, essa minha irmã que, como eu, mais
que qualquer outro em casa, trazia a peste no corpo, ela varava então
o círculo que dançava e logo eu podia adivinhar seus passos
precisos de cigana se deslocando no meio da roda, desenvolvendo com
destreza gestos curvos entre as frutas, e as flores dos cestos, só
tocando a terra na ponta dos pés descalços, os braços erguidos
acima da cabeça serpenteando lentamente ao trinado da flauta mais
lento, mais ondulante, as mãos graciosas girando no alto, toda ela
cheia de uma selvagem elegância, seus dedos canoros estalando como
se fossem, estava ali a origem das castanholas, e em torno dela a
roda girava cada vez mais veloz, mais delirante, as palmas de fora
mais quentes e mais fortes, e mais intempestiva, e magnetizando a
todos, ela roubava de repente o lenço branco do bolso de um dos
moços, desfraldando-o com a mão erguida acima da cabeça enquanto
serpenteava o corpo, ela sabia fazer as coisas, essa minha irmã,
esconder primeiro bem escondido sob a língua a sua peçonha e logo
morder o cacho de uva que pendia em bagos túmidos de saliva enquanto
dançava no centro de todos, fazendo a vida mais turbulenta,
tumultuando dores, arrancando gritos de exaltação, e logo entoados
em língua estranha começavam a se elevar os versos simples, quase
um cântico, nas vozes dos mais velhos, e um primo menor e mais
gaiato, levado na corrente, pegava duas tampas de panelas fazendo os
pratos estridentes, e ao som contagiante parecia que as garças e os
marrecos tivessem voado da lagoa pra se juntarem a todos ali no
bosque, e eu podia imaginar, depois que o vinho tinha umedecido sua
solenidade, a alegria nos olhos do meu pai mais certo então de que
nem tudo em um navio se deteriora no porão, e eu sentado onde estava
sobre uma raiz exposta num canto do bosque mais sombrio, eu deixava
que o vento leve que corria entre as árvores me entrasse pela camisa
e me inflasse o peito, e na minha fronte eu sentia a carícia livre
dos meus cabelos, e eu nessa postura aparentemente descontraída
ficava imaginando de longe a pele fresca do seu rosto cheirando a
alfazema, a boca um doce gomo, cheia de meiguice, mistério e veneno
nos olhos de tâmara, e os meus olhares não se continham, eu
desamarrava os sapatos, tirava as meias e com os pés brancos e
limpos ia afastando as folhas secas e alcançando abaixo delas a
camada de espesso húmus, e a minha vontade incontida era de cavar o
chão com as próprias unhas e nessa cova me deitar à superfície e
me cobrir inteiro de terra úmida, e eu nessa senda oculta não
percebia quando ela se afastava do grupo buscando por todos os lados
com olhos amplos e aflitos, e seus passos, que se aproximavam, se
confundiam de início com o ruído tímido e súbito dos pequenos
bichos que se mexiam num aceno afetuoso ao meu redor, e eu só dava
pela sua presença quando ela já estava por perto, e eu então
abaixava a cabeça e ficava atento para os seus passos que de repente
perdiam a pressa e se tornavam lentos e pesados, amassando
distintamente as folhas secas sob os pés e me amassando confusamente
por dentro, e eu de cabeça baixa sentia num momento sua mão quente
e aplicada colhendo antes o cisco e logo apanhando e alisando meus
cabelos, e sua voz que nascia das calcificações do útero
desabrochava de repente profunda nesse recanto mais fechado onde eu
estava, e era como se viesse do interior de um templo erguido só em
pedras mas cheio de uma luz porosa vazada por vitrais, “vem,
coração, vem brincar com teus irmãos”, e eu ali, todo quieto e
encolhido, eu só dizia “me deixe, mãe, eu estou me divertindo”
mas meus olhos cheios de amargura não desgrudavam de minha irmã que
tinha as plantas dos pés em fogo imprimindo marcas que queimavam
dentro de mim...; que poeira clara, vendo então as costas daquele
tempo decorrido, o mesmo tempo que eu um dia, os pés acorrentados,
abaixava os olhos para não ver-lhe a cara; e que peso o dessa
mochila presa nos meus ombros quando saí de casa; colada no meu
dorso, caminhamos como gêmeos com as mesmas costas, as gemas de um
mesmo ovo, com olhos voltados pra frente e olhos voltados pra trás;
e eu ali, vendo meu irmão, via muitas coisas distantes, e ia tomando
naquele fim de tarde a resolução desesperada de me jogar no ventre
mole daquela hora; quem sabe eu de repente terno ainda pedisse a meu
irmão que fosse embora: “lembranças pra família”, e fecharia a
porta; e quando estivesse só na minha escuridão, me enrolaria no
tenro pano de sol estendido numa das paredes do quarto, entregando-me
depois, protegido nessa manta, ao vinho e à minha sorte.
Raduan
Nassar, in Lavoura Arcaica
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