quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Lavoura Arcaica - 5

O amor, a união e o trabalho de todos nós junto ao pai era uma mensagem de pureza austera guardada em nossos santuários, comungada solenemente em cada dia, fazendo o nosso desjejum matinal e o nosso livro crepuscular; sem perder de vista a claridade piedosa desta máxima, meu irmão prosseguia na sua prece, sugerindo a cada passo, e discretamente, a minha imaturidade na vida, falando dos tropeços a que cada um de nós estava sujeito, e que era normal que isso pudesse ter acontecido, mas que era importante não esquecer também as peculiaridades afetivas e espirituais que nos uniam, não nos deixando sucumbir às tentações, pondo-nos de guarda contra a queda (não importava de que natureza), era este o cuidado, era esta pelo menos a parte que cabia a cada membro, o quinhão a que cada um estava obrigado, pois bastava que um de nós pisasse em falso para que toda a família caísse atrás; e ele falou que estando a casa de pé, cada um de nós estaria também de pé, e que para manter a casa erguida era preciso fortalecer o sentimento do dever, venerando os nossos laços de sangue, não nos afastando da nossa porta, respondendo ao pai quando ele perguntasse, não escondendo nossos olhos ao irmão que necessitasse deles, participando do trabalho da família, trazendo os frutos para casa, ajudando a prover a mesa comum, e que dentro da austeridade do nosso modo de vida sempre haveria lugar para muitas alegrias, a começar pelo cumprimento das tarefas que nos fossem atribuídas, pois se condenava a um fardo terrível aquele que se subtraísse às exigências sagradas do dever; ele falou ainda dos anseios isolados de cada um em casa, mas que era preciso refrear os maus impulsos, moderar prudentemente os bons, não perder de vista o equilíbrio, cultivando o autodomínio, precavendo-se contra o egoísmo e as paixões perigosas que o acompanham, procurando encontrar a solução para nossos problemas individuais sem criar problemas mais graves para os que eram de nossa estima, e que para ponderar em cada caso tinha sempre existido o mesmo tronco, a mão leal, a palavra de amor e a sabedoria dos nossos princípios, sem contar que o horizonte da vida não era largo como parecia, não passando de ilusão, no meu caso, a felicidade que eu pudesse ter vislumbrado para além das divisas do pai; evitando conhecer os motivos ímpios da minha fuga (embora sugerindo discretamente que meus passos fossem um mau exemplo pro Lula, o caçula, cujos olhos sempre estiveram mais perto de mim), meu irmão pôs um sopro quente na sua prece pra me lembrar que havia mais força no perdão do que na ofensa e mais força no reparo do que no erro, deixando claro que deveriam ser estes o anverso e o reverso sublimes do bom caráter, cabendo, por ocasião de minha volta, o primeiro à família, e o reparo do meu erro cabendo a mim, o filho desgarrado; “você não sabe o que todos nós temos passado esse tempo da tua ausência, te causaria espanto o rosto acabado da família; é duro eu te dizer, irmão, mas a mãe já não consegue esconder de ninguém os seus gemidos” ele disse misturando na sua reprimenda um certo e cada vez mais tenso sentimento de ternura, ele que vinha caminhando sereno e seguro, um tanto solene (como meu pai), enquanto eu me largava numa rápida vertigem, pensando nas provisões dessa pobre família nossa já desprovida da sua antiga força, e foi talvez, na minha escuridão, um instante de lucidez eu suspeitar que na carência do seu alimento espiritual se cozinhava num prosaico quarto de pensão, em fogo-fátuo, a última reserva de sementes de um plantio; “ela não contou pra ninguém da tua partida; naquele dia, na hora do almoço, cada um de nós sentiu mais que o outro, na mesa, o peso da tua cadeira vazia; mas ficamos quietos e de olhos baixos, a mãe fazendo os nossos pratos, nenhum de nós ousando perguntar pelo teu paradeiro; e foi uma tarde arrastada a nossa tarde de trabalho com o pai, o pensamento ocupado com nossas irmãs em casa, perdidas entre os afazeres na cozinha e os bordados na varanda, na máquina de costura ou pondo ordem na despensa; não importava onde estivessem, elas já não seriam as mesmas nesse dia, enchendo como sempre a casa de alegria, elas haveriam de estar no abandono e desconforto que sentiam; era preciso que você estivesse lá, André, era preciso isso; e era preciso ver o pai trancado no seu silêncio: assim que terminou o jantar, deixou a mesa e foi pra varanda; ninguém viu o pai se recolher, ficou ali junto da balaustrada, de pé, olhando não se sabe o que na noite escura; só na hora de deitar, quando entrei no teu quarto e abri o guarda-roupa e puxei as gavetas vazias, só então é que compreendi, como irmão mais velho, o alcance do que se passava: tinha começado a desunião da família” ele disse e parou, e eu sabia por que ele tinha parado, era só olhar o seu rosto, mas não olhei, eu também tinha coisas pra ver dentro de mim, eu poderia era dizer “a nossa desunião começou muito mais cedo do que você pensa, foi no tempo em que a fé me crescia virulenta na infância e em que eu era mais fervoroso que qualquer outro em casa” eu poderia dizer com segurança, mas não era a hora de especular sobre os serviços obscuros da fé, levantar suas partes devassas, o consumo sacramental da carne e do sangue, investigando a volúpia e os tremores da devoção, mesmo assim eu passei pensando na minha fita de congregado mariano que eu, menino pio, deixava ao lado da cama antes de me deitar e pensando também em como Deus me acordava às cinco todos os dias pr’eu comungar na primeira missa e em como eu ficava acordado na cama vendo de um jeito triste meus irmãos nas outras camas, eles que dormindo não gozavam da minha bem-aventurança, e me distraindo na penumbra que brotava da aurora, e redescobrindo a cada lance da claridade do dia, ressurgindo através das frinchas, a fantasia mágica das pequenas figuras pintadas no alto da parede como cercadura, e só esperando que ela entrasse no quarto e me dissesse muitas vezes “acorda, coração” e me tocasse muitas vezes sua­vemente o corpo até que eu, que fingia dormir, agarrasse suas mãos num estremecimento, e era então um jogo sutil que nossas mãos compunham debaixo do lençol, e eu ria e ela cheia de amor me asseverava num cicio “não acorda teus irmãos, coração”, e ela depois erguia minha cabeça contra a almofada quente do seu ventre e, curvando o corpo grosso, beijava muitas vezes meus cabelos, e assim que eu me levantava Deus estava do meu lado em cima do criado-mudo, e era um deus que eu podia pegar com as mãos e que eu punha no pescoço e me enchia o peito e eu menino entrava na igreja feito balão, era boa a luz doméstica da nossa infância, o pão caseiro sobre a mesa, o café com leite e a manteigueira, essa claridade luminosa da nossa casa e que parecia sempre mais clara quando a gente vinha de volta lá da vila, essa claridade que mais tarde passou a me perturbar, me pondo estranho e mudo, me prostrando desde a puberdade na cama como um convalescente, “essas coisas nunca suspeitadas nos limites da nossa casa” eu quase deixei escapar, mas ainda uma vez achei que teria sido inútil dizer qualquer coisa, na verdade eu me sentia incapaz de dizer fosse o que fosse, e erguendo meus olhos vi que meu irmão tinha os olhos mergulhados no seu copo, e, sem se mexer, como se respondesse ao aceno do meu olhar, ele disse: “quanto mais estruturada, mais violento o baque, a força e a alegria de uma família assim podem desaparecer com um único golpe” foi o que ele disse com um súbito luto no rosto, e parou, e num jorro instantâneo renasceram na minha imaginação os dias claros de domingo daqueles tempos em que nossos parentes da cidade se transferiam para o campo acompanhados dos mais amigos, e era no bosque atrás da casa, debaixo das árvores mais altas que compunham com o sol o jogo alegre e suave de sombra e luz, depois que o cheiro da carne assada já tinha se perdido entre as muitas folhas das árvores mais copadas, era então que se recolhia a toalha antes estendida por cima da relva calma, e eu podia acompanhar assim recolhido junto a um tronco mais distante os preparativos agitados para a dança, os movimentos irrequietos daquele bando de moços e moças, entre eles minhas irmãs com seu jeito de camponesas, nos seus vestidos claros e leves, cheias de promessas de amor suspensas na pureza de um amor maior, correndo com graça, cobrindo o bosque de risos, deslocando as cestas de frutas para o lugar onde antes se estendia a toalha, os melões e as melancias partidas aos gritos da alegria, as uvas e as laranjas colhidas dos pomares e nessas cestas com todo o viço bem dispostas sugerindo no centro do espaço o mote para a dança, e era sublime essa alegria com o sol descendo espremido entre as folhas e os galhos, se derramando às vezes na sombra calma através de um facho poroso de luz divina que reverberava intensamente naqueles rostos úmidos, e era então a roda dos homens se formando primeiro, meu pai de mangas arregaçadas arrebanhando os mais jovens, todos eles se dando rijo os braços, cruzando os dedos firmes nos dedos da mão do outro, compondo ao redor das frutas o contorno sólido de um círculo como se fosse o contorno destacado e forte da roda de um carro de boi, e logo meu velho tio, velho imigrante, mas pastor na sua infância, puxava do bolso a flauta, um caule delicado nas suas mãos pesadas, e se punha então a soprar nela como um pássaro, suas bochechas se inflando como as bochechas de uma criança, e elas inflavam tanto, tanto, e ele sanguíneo dava a impressão de que faria jorrar pelas orelhas, feito torneiras, todo o seu vinho, e ao som da flauta a roda começava, quase emperrada, a deslocar-se com lentidão, primeiro num sentido, depois no seu contrário, ensaiando devagar a sua força num vaivém duro e ritmado ao toque surdo e forte dos pés batidos virilmente contra o chão, até que a flauta voava de repente, cortando encantada o bosque, correndo na floração do capim e varando os pastos, e a roda então vibrante acelerava o movimento circunscrevendo todo o círculo, e já não era mais a roda de um carro de boi, antes a roda grande de um moinho girando célere num sentido e ao toque da flauta que reapanhava desvoltando sobre seu eixo, e os mais velhos que presenciavam, e mais as moças que aguardavam a sua vez, todos eles batiam palmas reforçando o novo ritmo, e não tardava Ana, impaciente, impetuosa, o corpo de campônia, a flor vermelha feito um coalho de sangue prendendo de lado os cabelos negros e soltos, essa minha irmã que, como eu, mais que qualquer outro em casa, trazia a peste no corpo, ela varava então o círculo que dançava e logo eu podia adivinhar seus passos precisos de cigana se deslocando no meio da roda, desenvolvendo com destreza gestos curvos entre as frutas, e as flores dos cestos, só tocando a terra na ponta dos pés descalços, os braços erguidos acima da cabeça serpenteando lentamente ao trinado da flauta mais lento, mais ondulante, as mãos graciosas girando no alto, toda ela cheia de uma selvagem elegância, seus dedos canoros estalando como se fossem, estava ali a origem das castanholas, e em torno dela a roda girava cada vez mais veloz, mais delirante, as palmas de fora mais quentes e mais fortes, e mais intempestiva, e magnetizando a todos, ela roubava de repente o lenço branco do bolso de um dos moços, desfraldando-o com a mão erguida acima da cabeça enquanto serpenteava o corpo, ela sabia fazer as coisas, essa minha irmã, esconder primeiro bem escondido sob a língua a sua peçonha e logo morder o cacho de uva que pendia em bagos túmidos de saliva enquanto dançava no centro de todos, fazendo a vida mais turbulenta, tumultuando dores, arrancando gritos de exaltação, e logo entoados em língua estranha começavam a se elevar os versos simples, quase um cântico, nas vozes dos mais velhos, e um primo menor e mais gaiato, levado na corrente, pegava duas tampas de panelas fazendo os pratos estridentes, e ao som contagiante parecia que as garças e os marrecos tivessem voado da lagoa pra se juntarem a todos ali no bosque, e eu podia imaginar, depois que o vinho tinha umedecido sua solenidade, a alegria nos olhos do meu pai mais certo então de que nem tudo em um navio se deteriora no porão, e eu sentado onde estava sobre uma raiz exposta num canto do bosque mais sombrio, eu deixava que o vento leve que corria entre as árvores me entrasse pela camisa e me inflasse o peito, e na minha fronte eu sentia a carícia livre dos meus cabelos, e eu nessa postura aparentemente descontraída ficava imaginando de longe a pele fresca do seu rosto cheirando a alfazema, a boca um doce gomo, cheia de meiguice, mistério e veneno nos olhos de tâmara, e os meus olhares não se continham, eu desamarrava os sapatos, tirava as meias e com os pés brancos e limpos ia afastando as folhas secas e alcançando abaixo delas a camada de espesso húmus, e a minha vontade incontida era de cavar o chão com as próprias unhas e nessa cova me deitar à superfície e me cobrir inteiro de terra úmida, e eu nessa senda oculta não percebia quando ela se afastava do grupo buscando por todos os lados com olhos amplos e aflitos, e seus passos, que se aproximavam, se confundiam de início com o ruído tímido e súbito dos pequenos bichos que se mexiam num aceno afetuoso ao meu redor, e eu só dava pela sua presença quando ela já estava por perto, e eu então abaixava a cabeça e ficava atento para os seus passos que de repente perdiam a pressa e se tornavam lentos e pesados, amassando distintamente as folhas secas sob os pés e me amassando confusamente por dentro, e eu de cabeça baixa sentia num momento sua mão quente e aplicada colhendo antes o cisco e logo apanhando e alisando meus cabelos, e sua voz que nascia das calcificações do útero desabrochava de repente profunda nesse recanto mais fechado onde eu estava, e era como se viesse do interior de um templo erguido só em pedras mas cheio de uma luz porosa vazada por vitrais, “vem, coração, vem brincar com teus irmãos”, e eu ali, todo quieto e encolhido, eu só dizia “me deixe, mãe, eu estou me divertindo” mas meus olhos cheios de amargura não desgrudavam de minha irmã que tinha as plantas dos pés em fogo imprimindo marcas que queimavam dentro de mim...; que poeira clara, vendo então as costas daquele tempo decorrido, o mesmo tempo que eu um dia, os pés acorrentados, abaixava os olhos para não ver-lhe a cara; e que peso o dessa mochila presa nos meus ombros quando saí de casa; colada no meu dorso, caminhamos como gêmeos com as mesmas costas, as gemas de um mesmo ovo, com olhos voltados pra frente e olhos voltados pra trás; e eu ali, vendo meu irmão, via muitas coisas distantes, e ia tomando naquele fim de tarde a resolução desesperada de me jogar no ventre mole daquela hora; quem sabe eu de repente terno ainda pedisse a meu irmão que fosse embora: “lembranças pra família”, e fecharia a porta; e quando estivesse só na minha escuridão, me enrolaria no tenro pano de sol estendido numa das paredes do quarto, entregando-me depois, protegido nessa manta, ao vinho e à minha sorte.
Raduan Nassar, in Lavoura Arcaica

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