E
me lembrei que a gente sempre ouvia nos sermões do pai que os olhos
são a candeia do corpo, e que se eles eram bons é porque o corpo
tinha luz, e se os olhos não eram limpos é que eles revelavam um
corpo tenebroso, e eu ali, diante de meu irmão, respirando um cheiro
exaltado de vinho, sabia que meus olhos eram dois caroços
repulsivos, mas nem liguei que fossem assim, eu estava era confuso, e
até perdido, e me vi de repente fazendo coisas, mexendo as mãos,
correndo o quarto, como se o meu embaraço viesse da desordem que
existia a meu lado: arrumei as coisas em cima da mesa, passei um pano
na superfície, esvaziei o cinzeiro no cesto, dei uma alisada no
lençol da cama, dobrei a toalha na cabeceira, e já tinha voltado à
mesa para encher dois copos quando escorreguei e quase perguntei por
Ana, mas isso só foi um súbito ímpeto cheio de atropelos, eu
poderia isto sim era perguntar como ele pôde chegar até minha
pensão, me descobrindo no casario antigo, ou ainda, de um jeito
ingênuo, procurar conhecer o motivo da sua vinda, mas eu nem sequer
estava pensando nessas coisas, eu estava era escuro por dentro, não
conseguia sair da carne dos meus sentimentos, e ali junto da mesa eu
só estava certo era de ter os olhos exasperados em cima do vinho
rosado que eu entornava nos copos; “as venezianas” ele disse “por
que as venezianas estão fechadas?” ele disse da cadeira do canto
onde se sentava e eu não pensei duas vezes e corri abrir a janela e
fora tinha um fim de tarde tenro e quase frio, feito de um sol
fibroso e alaranjado que tingiu amplamente o poço de penumbra do meu
quarto, e eu ainda encaixava as folhas das venezianas nas carrancas
quando, ligeira, me percorreu uma primeira crise, mas nem fiz caso
dela, foi passageira, por isso eu só pensei em concluir minha tarefa
e fui logo depois, generoso e com algum escárnio, pôr também entre
suas mãos um soberbo copo de vinho; e enquanto uma brisa
impertinente estufava as cortinas de renda grossa, que desenhava na
meia altura dois anjos galgando nuvens, soprando tranquilos clarins
de bochechas infladas, me larguei na beira da cama, os olhos baixos,
dois bagaços, e foram seus olhos plenos de luz em cima de mim, não
tenho dúvida, que me fizeram envenenado, e foi uma onda curta e
quieta que me ameaçou de perto, me levando impulsivo quase a
incitá-lo num grito “não se constranja, meu irmão, encontre logo
a voz solene que você procura, uma voz potente de reprimenda,
pergunte sem demora o que acontece comigo desde sempre, componha
gestos, me desconforme depressa a cara, me quebre contra os olhos a
velha louça lá de casa”, mas me contive, achando que exortá-lo,
além de inútil, seria uma tolice, e, sem dar por isso, caí
pensando nos seus olhos, nos olhos de minha mãe nas horas mais
silenciosas da tarde, ali onde o carinho e as apreensões de uma
família inteira se escondiam por trás, e pensei quando se abria em
vago instante a porta do meu quarto ressurgindo um vulto maternal e
quase aflito “não fique assim na cama, coração, não deixe sua
mãe sofrer, fale comigo” e surpreso, e assustado, senti que a
qualquer momento eu poderia também explodir em choro, me ocorrendo
que seria bom aproveitar um resto de embriaguez que não se deixara
espantar com sua chegada para confessar, quem sabe piedosamente, “é
o meu delírio, Pedro, é o meu delírio, se você quer saber”, mas
isso só foi um passar pela cabeça um tanto tumultuado que me fez
virar o copo em dois goles rápidos, e eu que achava inútil dizer
fosse o que fosse passei a ouvir (ele cumpria a sublime missão de
devolver o filho tresmalhado ao seio da família) a voz de meu irmão,
calma e serena como convinha, era uma oração que ele dizia quando
começou a falar (era o meu pai) da cal e das pedras da nossa
catedral.
Raduan
Nassar, in Lavoura arcaica
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