No
seu livro Literatura e os deuses, o florentino Roberto Calasso
fala no prazer provocado pelo que ele chama de literatura absoluta,
no sentido estrito de absolutum: sem amarras ou referências, “livre
de qualquer tarefa ou causa comum e de qualquer utilidade social”,
e na dificuldade em definir o que, exatamente, a faz absoluta e nos
enleva. “Temos que nos resignar a isto: que a literatura não
oferece qualquer sinal, nunca ofereceu qualquer sinal, pelo qual pode
ser imediatamente identificada”, escreve Calasso, um daqueles
italianos, como o Calvino e o Eco, que leram tudo e sabem tudo. “O
melhor, se não o único, teste que podemos fazer é o sugerido por
Housman (A .E. Housman, poeta e latinista inglês): observar se uma
sequência de palavras, silenciosamente pronunciada enquanto a
navalha matinal desliza pela pele, eriça os cabelos da barba,
enquanto um arrepio desce pela espinha. E isto não é reducionismo
fisiológico. Quem lembra uma linha de um verso ao se barbear
experimenta esse arrepio, essa ‘romaharsa’, ou ‘horripilação’
como a que acometeu Arjuna no Bhagavad Gita quando se deparou com a
epifania de Krisna. E talvez ‘romaharsa’ seria melhor traduzido
como ‘felicidade dos cabelos’, porque ‘harsa’ significa
‘felicidade’ e também ‘ereção’, inclusive no sentido
sexual. Isto é típico de uma língua como o sânscrito que não
gosta do explícito, mas sugere que tudo é sexual.”
Viu
só? O prazer estético, no fundo — ou, no caso, na superfície —,
é igual ao prazer sexual, também se manifesta no homem e na mulher,
com ou sem barba, por uma excitação da pele, por um movimento
milimétrico de cabelos felizes. O arrepio que você sente ao ver uma
frase ou uma pessoa particularmente bem torneadas é o mesmo, e é o
que Arjuna sentiu diante da epifania de Krisna, só que em sânscrito.
Romaharsa, guarde essa palavra. Quem sabe quando aparecerá a
oportunidade de explorar o potencial erótico de uma citação do
Bhagavad Gita dita assim no ouvido?
Luís
Fernando Veríssimo, Banquete com os deuses
Nenhum comentário:
Postar um comentário