Ilustração: Darcy Penteado
Desse
antigo verão que me alterou a vida restam ligeiros traços apenas.
E
nem deles posso afirmar que efetivamente me recorde. O hábito me
leva a criar um ambiente, imaginar fatos a que atribuo realidade. Sem
dúvida as árvores se despojaram e enegreceram, o açude estancou,
as porteiras dos currais se abriram, inúteis. É sempre assim.
Contudo ignoro se as plantas murchas e negras foram vistas nessa
época ou em secas posteriores, e guardo na memória um açude cheio,
coberto de aves brancas e de flores. A respeito de currais há uma
estranha omissão. Estavam na vizinhança, provavelmente, mas isto é
conjectura. Talvez até o mínimo necessário para caracterizar a
fazenda meio destruída não tenha sido observado depois. Certas
coisas existem por derivação e associação; repetem-se, impõem-se
— e, em letra de forma, tomam consistência, ganham raízes.
Dificilmente pintaríamos um verão nordestino em que os ramos não
estivessem pretos e as cacimbas vazias.
Reunimos
elementos considerados indispensáveis, jogamos com eles, e se
desprezamos alguns, o quadro parece incompleto.
O
meu verão é incompleto. O que me deixou foi a lembrança de
importantes modificações nas pessoas. De ordinário pachorrentas,
azucrinaram-se como tanajuras, zonzas. Findaram as longas conversas
no alpendre, as visitas, os risos sonoros, os negócios lentos;
surgiram rostos sombrios e rumores abafados. Enorme calor, nuvens de
poeira. E no calor e na poeira homens indo e vindo sem descanso,
molhados de suor, aboiando monotonamente.
Pela
primeira vez falaram-me no diabo. É possível que tenham falado
antes, mas foi aí que fixei o nome deste espírito: sem conhecê-lo
direito, soube que ele andava solto nos redemoinhos que varriam o
pátio, misturado a folhas e garranchos.
Um
dia faltou água em casa. Tive sede e recomendaram-me paciência. A
carga de ancoretas chegaria logo. Tardou, a fonte era distante — e
fiquei horas numa agonia, rondando o pote, com brasas na língua.
Essa dor esquisita perturbou-me em excesso. Nos sofrimentos habituais
eu percebia gestos desarrazoados, palavras coléricas. A minha vida
era um extenso enleio que sobressaltos agitavam. Para bem dizer, eu
flutuava, pequeno e leve. De repente, um choque, novos choques,
estremecimentos dolorosos. Impossível queixar-me agora. Não me
dirigiam ameaças, abrandavam, e as recusas apareciam quase doces. Na
verdade não recusavam. Num minuto haveria muitos canecos de água.
Chorei,
embalei-me nas consolações, e os minutos foram pingando, vagarosos.
A
boca enxuta, os beiços gretados, os olhos turvos, queimaduras
interiores.
Sono,
preguiça — e estirei-me num colchão ardente. As pálpebras se
alongavam, coriáceas, o líquido obsessor corria nas vozes que me
acalentavam, umedecia-me a pele, esvaía-se de súbito. E em redor os
objetos se deformavam, trêmulos. Veio a imobilidade, veio o
esquecimento. Não sei quanto durou o suplício.
Vivia
a surpreender-me. E as surpresas se multiplicavam. Amaro e José
Baía, armados de facões, estariam enchendo cestos com pedaços de
mandacaru?
Os
sentidos me diziam que sim, mas isto discordava dos serviços comuns.
Tentava
esclarecer-me, largava uma interrogação maluca. Não indagava o
motivo de se encherem os cestos, perguntava se eles realmente se
enchiam. Caso me confirmassem a observação, eu continuaria a
importunar os empregados, inteirar-me-ia de que aquilo era alimento
para os animais. Não me ligavam importância. Amaro fungava,
resmungava, franzia a cara cabeluda; José Baía pilheriava. Por quê?
Não era tão fácil asseverarem que estavam cortando mandacaru nos
cestos? Eu necessitava uma autoridade, um apoio. Desconfiava da coisa
próxima, vista, ouvida, pegada, mas em geral admitia sem esforço o
que me contavam.
Aceitei,
pois, o cavalo-do-cão, o bicho que o diabo monta quando faz
estrepolias pelo mundo. Há outra espécie de cavalo-do-cão, um
inseto negro, de asas grandes, barulhento. O que o diabo utilizava
nas viagens devia ser como este, negro, barulhento e muito maior.
Acreditei nele, dócil, porque o homônimo concreto lhe forneceu
alguns caracteres, porque a voz da experiência o revelou, enfim
porque nos redemoinhos que açoitavam a catinga pelada havia
provavelmente um ser furioso, soprando, assobiando, torcendo paus e
rebentando galhos.
Essa
criatura de sonho e bagunça, um cavalo de asas, não me causou
espanto.
Espanto,
e enorme, senti ao enxergar meu pai abatido na sala, o gesto lento.
Habituara-me a vê-lo grave, silencioso, acumulando energia para
gritos medonhos. Os gritos vulgares perdiam-se; os dele ocasionavam
movimentos singulares: as pessoas atingidas baixavam a cabeça,
humildes, ou corriam a executar ordens. Eu era ainda muito novo para
compreender que a fazenda lhe pertencia. Notava diferenças entre os
indivíduos que se sentavam nas redes e os que se acocoravam no
alpendre. O gibão de meu pai tinha diversos enfeites; no de Amaro
havia numerosos buracos e remendos. As nossas roupas grosseiras
pareciam-me luxuosas comparadas à chita de Sinha Leopoldina, à
camisa de José Baía, sura, de algodão cru. Os caboclos se
estazavam, suavam, prendiam arame farpado nas estacas. Meu pai
vigiava-os, exigia que se mexessem desta ou daquela forma, e nunca
estava satisfeito, reprovava tudo, com insultos e desconchavos.
Permanente, essa birra tornava-se razoável e vantajosa: curvara
espinhaços, retesara músculos, cavara na piçarra e na argila o
açude que se cobrira de patos, mergulhões e flores de baronesa. Meu
pai era terrivelmente poderoso, e essencialmente poderoso. Não me
ocorria que o poder estivesse, fora dele, de repente o abandonasse,
deixando-o fraco e normal, um gibão roto sobre a camisa curta.
Sentado
junto às armas de fogo e aos instrumentos agrícolas, em desânimo
profundo, as mãos inertes, pálido, o homem agreste murmurava uma
confissão lamentosa à companheira. As nascentes secavam, o gado se
finava no carrapato e na morrinha. Estranhei a morrinha e estranhei o
carrapato, forças evidentemente maiores que as de meu pai. Não
entendi o sussurro lastimoso, mas adivinhei que ia surgir
transformação. A vila, uma loja e impotência e as lágrimas não
nos comoviam. Hoje acho naturais as violências que o cegavam. Se ele
estivesse embaixo, livre de ambições, ou em cima, na prosperidade,
eu e o moleque José teríamos vivido em sossego. Mas no meio,
receando cair, avançando a custo, perseguido pelo verão, arruinado
pela epizootia, indeciso, obediente ao chefe político, à justiça e
ao fisco, precisava desabafar, soltar a zanga concentrada. Aperreava
o devedor e afligia-se temendo calotes. Venerava o credor e, pontual
no pagamento, economizava com
avareza.
Só
não economizava pancadas e repreensões. Éramos repreendidos e
batidos.
Graciliano
Ramos, in Infância
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