quinta-feira, 21 de novembro de 2019

O sino da liberdade

Conta uma tradição cara ao povo americano que o Sino da Liberdade, cujos sons anunciaram, em Filadélfia, o nascimento dos Estados Unidos, inopinadamente se fendeu, estalando, pelo passamento de Marshall. Era uma dessas casualidades eloquentes, em que a alma ignota das coisas parece lembrar misteriosamente aos homens as grandes verdades esquecidas. O maior dos oradores não podia falar mais eloquentemente daquela morte do que o instrumento de alegria, com que se saudara em alvoroço o berço da nação, partindo-se tristemente sobre o túmulo do maior dos seus juízes. É que a existência das repúblicas se mede pela existência da justiça. Abençoada raça a que, ao assentar da sua independência, pôde ter por patriarca da lei o magistrado extraordinário, que, durante 35 anos, foi o comentário vivo e incorruptível da sua constituição. Inflexível na sua cadeira, como a expressão impessoal da legalidade, a ele se deve o não ter sido, ali, o poder judiciário usurpado pelo legislativo, ou desobedecido pelo governo. Era mister uma força, que resistisse a essas tendências, dobrando à autoridade da interpretação constitucional a rebeldia dos presidentes, e as paixões políticas das maiorias parlamentares. Quando ele se sumiu, pois, dentre os vivos, podia-se crer que a república estivesse mortalmente ferida. E, se a república lhe sobreviveu, é porque ele teve sucessores; se a república medrou, é porque esse tribunal tão pouco notado nos seus primeiros anos, antes de Marshall, que ainda se não conseguiu saber ao certo a casa onde funcionava na capital da Pensilvânia até 1801, a tal ponto desenvolveu a soberania da justiça, a reverência popular pelos seus ditames, o prestígio do seu poder sobre os partidos e os governos, que atualmente o fato mais notável do regímen americano é a grandeza da autoridade judiciária, e, se há diferença essencial entre esse sistema político e o das outras democracias, ela consiste no papel dos seus tribunais.
Foi isso que nos fascinou, ao escrevermos a constituição brasileira, porque a república federativa é um absurdo nos povos, que não tiverem a moralidade precisa para imitar, ainda que imperfeitamente, esse padrão. Sem uma justiça mais alta que as coroas dos reis e tão pura quanto as coroas dos santos, esta forma de governo é a expressão mais anárquica da tirania das facções desenfreadas. Se a política não recuar diante desta casa sagrada, em torno da qual marulha furiosa desde o seu começo; se os governos se não compenetrarem de que na vossa independência consiste a sua maior força, a grande força do princípio da autoridade civil; se os homens de estado se não convencerem de que o que se passa aqui dentro é inviolável como os mistérios do culto; se os partidos não cessarem de considerar inocentes e impenetráveis sob o tênue véu dos artifícios políticos as suas conspirações contra a consciência judiciária, ai de nós! porque, em verdade vos digo, não haverá quem nos salve. O sino da liberdade não terá de dobrar sobre o sepulcro dos juízes, mas sobre o ignominioso trespasse da república, contra a qual, nas mãos da nação revoltada pela falta de justiça, se levantarão as pedras das ruas.
Rui Barbosa, in Antologia

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