Conta
uma tradição cara ao povo americano que o Sino da Liberdade, cujos
sons anunciaram, em Filadélfia, o nascimento dos Estados Unidos,
inopinadamente se fendeu, estalando, pelo passamento de Marshall. Era
uma dessas casualidades eloquentes, em que a alma ignota das coisas
parece lembrar misteriosamente aos homens as grandes verdades
esquecidas. O maior dos oradores não podia falar mais eloquentemente
daquela morte do que o instrumento de alegria, com que se saudara em
alvoroço o berço da nação, partindo-se tristemente sobre o túmulo
do maior dos seus juízes. É que a existência das repúblicas se
mede pela existência da justiça. Abençoada raça a que, ao
assentar da sua independência, pôde ter por patriarca da lei o
magistrado extraordinário, que, durante 35 anos, foi o comentário
vivo e incorruptível da sua constituição. Inflexível na sua
cadeira, como a expressão impessoal da legalidade, a ele se deve o
não ter sido, ali, o poder judiciário usurpado pelo legislativo, ou
desobedecido pelo governo. Era mister uma força, que resistisse a
essas tendências, dobrando à autoridade da interpretação
constitucional a rebeldia dos presidentes, e as paixões políticas
das maiorias parlamentares. Quando ele se sumiu, pois, dentre os
vivos, podia-se crer que a república estivesse mortalmente ferida.
E, se a república lhe sobreviveu, é porque ele teve sucessores; se
a república medrou, é porque esse tribunal tão pouco notado nos
seus primeiros anos, antes de Marshall, que ainda se não conseguiu
saber ao certo a casa onde funcionava na capital da Pensilvânia até
1801, a tal ponto desenvolveu a soberania da justiça, a reverência
popular pelos seus ditames, o prestígio do seu poder sobre os
partidos e os governos, que atualmente o fato mais notável do
regímen americano é a grandeza da autoridade judiciária, e, se há
diferença essencial entre esse sistema político e o das outras
democracias, ela consiste no papel dos seus tribunais.
Foi
isso que nos fascinou, ao escrevermos a constituição brasileira,
porque a república federativa é um absurdo nos povos, que não
tiverem a moralidade precisa para imitar, ainda que imperfeitamente,
esse padrão. Sem uma justiça mais alta que as coroas dos reis e tão
pura quanto as coroas dos santos, esta forma de governo é a
expressão mais anárquica da tirania das facções desenfreadas. Se
a política não recuar diante desta casa sagrada, em torno da qual
marulha furiosa desde o seu começo; se os governos se não
compenetrarem de que na vossa independência consiste a sua maior
força, a grande força do princípio da autoridade civil; se os
homens de estado se não convencerem de que o que se passa aqui
dentro é inviolável como os mistérios do culto; se os partidos não
cessarem de considerar inocentes e impenetráveis sob o tênue véu
dos artifícios políticos as suas conspirações contra a
consciência judiciária, ai de nós! porque, em verdade vos digo,
não haverá quem nos salve. O sino da liberdade não terá de dobrar
sobre o sepulcro dos juízes, mas sobre o ignominioso trespasse da
república, contra a qual, nas mãos da nação revoltada pela falta
de justiça, se levantarão as pedras das ruas.
Rui
Barbosa, in Antologia
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