sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Mailer e Marylin


Norman Mailer pertence àquela linhagem especial de escritores americanos cuja primeira preocupação intelectual é não passar por bicha. Hemingway é o protótipo da espécie e Mailer é seu descendente direto. Eles são crias de uma cultura que deve tudo às pragmáticas virtudes do pioneiro e para a qual os ofícios da imaginação valem um pouco menos do que outros pendores femininos, como a cozinha e a costura. O terror secreto da linhagem é que, ao primeiro ataque dos índios, sejam mandados para dentro do carroção com as mulheres e as crianças.
Hemingway e Mailer são iguais nessa preocupação de fazerem a literatura parecer um respeitável ofício de macho. Se parecem também na medida em que construíram suas personalidades públicas a partir dessa mesma angústia, do medo de serem excluídos do culto da conquista e da coragem que informa os mitos masculinos americanos. Hemingway propôs a sua obra como uma longa negociação com a morte e a sua vida como prova de que não faltou a nenhum dos encontros. Mailer tem desafiado mais o ridículo do que o destino com o seu comportamento público, mas isso também requer coragem. Hemingway era um solene caçador da planície, os seus inimigos ocupavam o horizonte, e ele os enfrentou de frente, até virar o fuzil contra a própria boca no encontro final. Mailer é um truculento guerrilheiro urbano que conhece os seus inimigos em cada esquina e em cada sala do governo. A besta, a prova do macho, para Hemingway, era a Morte. Para Mailer, é o Poder.
Norman Mailer é o escritor mais importante do seu tempo porque compreendeu isso. E porque vive nos Estados Unidos, onde a besta toma formas assustadoras, mas não tão opressivas que não possa ser caçada por um macho bem-disposto. A pretensão de Mailer é essa, a de negociar de frente com o Poder e comparecer a todos os encontros com a besta — seja como romancista, seja como repórter, seja como autor, diretor e ator de cinema, seja marchando contra o Pentágono ou se candidatando a prefeito de Nova York. Mailer quer se vingar do ethos pioneiro que há anos marca o intelectual como um inútil — ou o aceita apenas na forma do técnico, que é o intelectual sem imaginação — e se não conseguir derrubar ninguém do Poder nem mudar a opinião de muita gente, pelo menos vai incomodar e se fazer ouvir.
Mailer persegue a notoriedade como Hemingway se expunha à morte. Tornar-se uma celebridade foi a maneira que Mailer descobriu para desmentir a inutilidade do artista. A celebridade é uma láurea da conquista. O sucesso é a primeira virtude da América. Ganhando notoriedade como personalidade pública, Mailer se imagina em posição de desafiar o poder para o seu particular encontro final. Segundos fora.
A pretensão é ridícula, é claro, mas tem sido o tema das melhores coisas de Mailer. Toda a sua obra jornalística é sobre a relação do americano com as formas de poder na América, principalmente com o sucesso como simulacro do poder. Não admira a sua fascinação pelos Kennedy, que tinham sucesso real, poder real e eram celebridades além do poder. E não admira que no seu livro sobre Marylin Monroe, Mailer se identifique com Marylin — a celebridade sem poder — e culpe um dos Kennedy, indiretamente, pelo seu suposto suicídio. É uma briga entre fantasmas, o seu relato é um verdadeiro ofício da imaginação. Mailer está na sua.
Marylin Monroe pertence à tradição hollywoodiana das dumb blondes, as louras infantis, burras em proporção direta à sua carnalidade, que proporcionavam ao público americano a possibilidade de aliviar suas angústias sexuais pelo riso. Desde a vamp dos filmes mudos que a vizinhança com o ridículo atenua, desarma o símbolo sexual no cinema. Marylin ainda pegou o fim dos inocentes anos de guerra e pós-guerra nos Estados Unidos, os anos das pin-ups favoritas dos soldados, das pernas de Betty Gable, do escândalo com os decotes da Jane Russel, dos assovios no cinema ao menor close de um traseiro feminino sob uma saia mais apertada. No princípio, aceitou o seu papel na dissimulação, e suas primeiras aparições no cinema — a cara de bebê, a voz melosa e as frases suspiradas, em contraste com o corpo nada inocente — foram quase caricaturas do sexo pré-desarmado que sustentava os sonhos da época. Depois tentou escapar, como artista e como pessoa. Quis aprender a interpretar. Casou com Arthur Miller, que ela tomou por um intelectual. Fez dramas, sem convencer. No fim, nem o seu suicídio convenceu. O público não sabia como aceitar um símbolo sexual sem a anedota correspondente. O suicídio de uma tradicional loura burra não foi trágico, foi apenas incongruente.
Mailer, pelo que sei do seu livro — que ainda nem foi publicado e já tem críticos das suas críticas —, parte desse domínio do mito sobre a pessoa para misturar o real — a tragédia de Marylin — e o fictício — o que Marylin representava para a imaginação americana —, e no seu conhecido estilo metralhadora dar rajadas nem sempre certeiras, mas sempre divertidas, na América em geral e nos seus sonhos de sucesso e poder em particular. Não importa que Robert Kennedy não tenha sido o último amante de Marylin e a provável causa do seu suicídio. Mailer diz que sim, e não é uma mentira, não é nem uma suposição, é uma verdade imaginada, um paradoxo tão aceitável quanto o de sexo e inocência que o público antigo exigia de Marylin. Nos livros de Mailer, todos os atos do poder nos Estados Unidos, desde os foguetes para a Lua até os truques de Nixon, respondem a um desejo ou a um temor no inconsciente americano. As celebridades da nação são como figuras num sonho, no desempenho de símbolos necessários. Tudo é metáfora. O encontro de Marylin com Kennedy é sonhado por Mailer, penso eu, como o encontro equivocado de uma América decadente, confusa com os seus símbolos e saudosa da sua inocência, e o príncipe da Primeira Família, o presumível salvador, a celebridade ungida pelo poder, que no fim a abandona. E se nada disso estiver no livro de Mailer, também não importa. Eu também posso imaginar, ora.
Mailer gosta de se descrever, em relação aos outros escritores americanos, como um bom e esperto peso-médio contra alguns pesos-pesados sem muito talento. A sua personalidade pública — como a de Hemingway — também é uma metáfora, cuidadosamente fabricada por ele mesmo, e o que ela propõe é a necessidade do pensador, do homem de imaginação e sensibilidade, também se apoderar da imaginação americana e ser colocado por ela no ringue com o Poder. Com ironia, perseverança e um bom jogo de pernas — diz Mailer — ele pode não ganhar, m as vai deixar sua marca. Marylin era um frágil produto do meio-oeste , o seu sonho de sucesso acabava com a celebridade na cidade grande, o Nembutal e a morte. Mailer é um rápido judeu do Brooklyn, herdeiro de toda a sabedoria do mundo, e não se entrega tão facilmente. Diz ele.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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