Norman
Mailer pertence àquela linhagem especial de escritores americanos
cuja primeira preocupação intelectual é não passar por bicha.
Hemingway é o protótipo da espécie e Mailer é seu descendente
direto. Eles são crias de uma cultura que deve tudo às pragmáticas
virtudes do pioneiro e para a qual os ofícios da imaginação valem
um pouco menos do que outros pendores femininos, como a cozinha e a
costura. O terror secreto da linhagem é que, ao primeiro ataque dos
índios, sejam mandados para dentro do carroção com as mulheres e
as crianças.
Hemingway
e Mailer são iguais nessa preocupação de fazerem a literatura
parecer um respeitável ofício de macho. Se parecem também na
medida em que construíram suas personalidades públicas a partir
dessa mesma angústia, do medo de serem excluídos do culto da
conquista e da coragem que informa os mitos masculinos americanos.
Hemingway propôs a sua obra como uma longa negociação com a morte
e a sua vida como prova de que não faltou a nenhum dos encontros.
Mailer tem desafiado mais o ridículo do que o destino com o seu
comportamento público, mas isso também requer coragem. Hemingway
era um solene caçador da planície, os seus inimigos ocupavam o
horizonte, e ele os enfrentou de frente, até virar o fuzil contra a
própria boca no encontro final. Mailer é um truculento guerrilheiro
urbano que conhece os seus inimigos em cada esquina e em cada sala do
governo. A besta, a prova do macho, para Hemingway, era a Morte. Para
Mailer, é o Poder.
Norman
Mailer é o escritor mais importante do seu tempo porque compreendeu
isso. E porque vive nos Estados Unidos, onde a besta toma formas
assustadoras, mas não tão opressivas que não possa ser caçada por
um macho bem-disposto. A pretensão de Mailer é essa, a de negociar
de frente com o Poder e comparecer a todos os encontros com a besta —
seja como romancista, seja como repórter, seja como autor, diretor e
ator de cinema, seja marchando contra o Pentágono ou se candidatando
a prefeito de Nova York. Mailer quer se vingar do ethos
pioneiro que há anos marca o intelectual como um inútil — ou o
aceita apenas na forma do técnico, que é o intelectual sem
imaginação — e se não conseguir derrubar ninguém do Poder nem
mudar a opinião de muita gente, pelo menos vai incomodar e se fazer
ouvir.
Mailer
persegue a notoriedade como Hemingway se expunha à morte. Tornar-se
uma celebridade foi a maneira que Mailer descobriu para desmentir a
inutilidade do artista. A celebridade é uma láurea da conquista. O
sucesso é a primeira virtude da América. Ganhando notoriedade como
personalidade pública, Mailer se imagina em posição de desafiar o
poder para o seu particular encontro final. Segundos fora.
A
pretensão é ridícula, é claro, mas tem sido o tema das melhores
coisas de Mailer. Toda a sua obra jornalística é sobre a relação
do americano com as formas de poder na América, principalmente com o
sucesso como simulacro do poder. Não admira a sua fascinação pelos
Kennedy, que tinham sucesso real, poder real e eram celebridades além
do poder. E não admira que no seu livro sobre Marylin Monroe, Mailer
se identifique com Marylin — a celebridade sem poder — e culpe um
dos Kennedy, indiretamente, pelo seu suposto suicídio. É uma briga
entre fantasmas, o seu relato é um verdadeiro ofício da imaginação.
Mailer está na sua.
Marylin
Monroe pertence à tradição hollywoodiana das dumb blondes,
as louras infantis, burras em proporção direta à sua carnalidade,
que proporcionavam ao público americano a possibilidade de aliviar
suas angústias sexuais pelo riso. Desde a vamp dos filmes
mudos que a vizinhança com o ridículo atenua, desarma o símbolo
sexual no cinema. Marylin ainda pegou o fim dos inocentes anos de
guerra e pós-guerra nos Estados Unidos, os anos das pin-ups
favoritas dos soldados, das pernas de Betty Gable, do escândalo com
os decotes da Jane Russel, dos assovios no cinema ao menor close
de um traseiro feminino sob uma saia mais apertada. No princípio,
aceitou o seu papel na dissimulação, e suas primeiras aparições
no cinema — a cara de bebê, a voz melosa e as frases suspiradas,
em contraste com o corpo nada inocente — foram quase caricaturas do
sexo pré-desarmado que sustentava os sonhos da época. Depois tentou
escapar, como artista e como pessoa. Quis aprender a interpretar.
Casou com Arthur Miller, que ela tomou por um intelectual. Fez
dramas, sem convencer. No fim, nem o seu suicídio convenceu. O
público não sabia como aceitar um símbolo sexual sem a anedota
correspondente. O suicídio de uma tradicional loura burra não foi
trágico, foi apenas incongruente.
Mailer,
pelo que sei do seu livro — que ainda nem foi publicado e já tem
críticos das suas críticas —, parte desse domínio do mito sobre
a pessoa para misturar o real — a tragédia de Marylin — e o
fictício — o que Marylin representava para a imaginação
americana —, e no seu conhecido estilo metralhadora dar rajadas nem
sempre certeiras, mas sempre divertidas, na América em geral e nos
seus sonhos de sucesso e poder em particular. Não importa que Robert
Kennedy não tenha sido o último amante de Marylin e a provável
causa do seu suicídio. Mailer diz que sim, e não é uma mentira,
não é nem uma suposição, é uma verdade imaginada, um paradoxo
tão aceitável quanto o de sexo e inocência que o público antigo
exigia de Marylin. Nos livros de Mailer, todos os atos do poder nos
Estados Unidos, desde os foguetes para a Lua até os truques de
Nixon, respondem a um desejo ou a um temor no inconsciente americano.
As celebridades da nação são como figuras num sonho, no desempenho
de símbolos necessários. Tudo é metáfora. O encontro de Marylin
com Kennedy é sonhado por Mailer, penso eu, como o encontro
equivocado de uma América decadente, confusa com os seus símbolos e
saudosa da sua inocência, e o príncipe da Primeira Família, o
presumível salvador, a celebridade ungida pelo poder, que no fim a
abandona. E se nada disso estiver no livro de Mailer, também não
importa. Eu também posso imaginar, ora.
Mailer
gosta de se descrever, em relação aos outros escritores americanos,
como um bom e esperto peso-médio contra alguns pesos-pesados sem
muito talento. A sua personalidade pública — como a de Hemingway —
também é uma metáfora, cuidadosamente fabricada por ele mesmo, e o
que ela propõe é a necessidade do pensador, do homem de imaginação
e sensibilidade, também se apoderar da imaginação americana e ser
colocado por ela no ringue com o Poder. Com ironia, perseverança e
um bom jogo de pernas — diz Mailer — ele pode não ganhar, m as
vai deixar sua marca. Marylin era um frágil produto do meio-oeste ,
o seu sonho de sucesso acabava com a celebridade na cidade grande, o
Nembutal e a morte. Mailer é um rápido judeu do Brooklyn, herdeiro
de toda a sabedoria do mundo, e não se entrega tão facilmente. Diz
ele.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
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