segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Chegada à vila


Era uma noite fria. Vozes misturavam-se na calçada, andava gente em redor de uma fogueira grande, no pátio. Estalavam brasas, labaredas cresciam, iluminavam pedaços de figuras, esmoreciam, e da sombra fumacenta vinham risadas longas. Meu pai, invisível, comentava:
Parece um papa-lagartas.
Que seria papa-lagartas? Se meu pai não me esfriasse a curiosidade repetindo uma frase suja a respeito dos perguntadores, resolver-me-ia a interrogá-lo. A frase me espantava sempre. Não queria convencer-me de que ouvia nomes tão feios, e quando me inteirava bem do sentido deles, afastava-me triste e humilhado, achando meu pai grosseiro e jurando emendar-me.
Pensei em dirigir-me a uma das pessoas ocultas na escuridão. Havia rebuliço: rinchos, passos, pancadas de tampas de baús. E as gargalhadas junto ao fogo. Que seria papa-lagartas? Sem os malditos sapatos duros como pau, decidir-me-ia a entrar, sair, informar-me. Certamente não me ligariam importância. E os sapatos me incomodavam os dedos, esfolavam os calcanhares. Onde estariam as minhas alpercatas? Na roupa estreita, movia-me com dificuldade. Em geral eu usava camisa, saltava e corria como um bichinho, trepava nas pernas de José Baía, que nascera de sete meses e fora criado sem mamar. José Baía era ótimo, talvez por não ter mamado e haver nascido de sete meses, o que devia ser uma exceção. Se José Baía aparecesse ali, explicar-me-ia o papa-lagartas. A calça, o paletó e os sapatos pressagiavam acontecimentos volumosos. E palavras enigmáticas haviam-me despertado suspeitas vagas, medíocre entusiasmo por aventuras imprecisas e medo. Que iria suceder? Bom que José Baía estivesse comigo, papagueando na sua língua fácil e capenga, livrando-me de sustos.
A recordação dessa antiga cena mostra-me a casa virada, extravagância que mais tarde se reproduziu. Muitas vezes as ruas e os prédios se deslocaram, deixando-me perplexo, desnorteado. A porta da frente e o copiar não davam para o açude, como de ordinário, mas para os montes de lixo e o pé-de-turco. Houve uma pausa. As vozes, o rumor de malas arrastadas, as chamas da fogueira, os rinchos, as gargalhadas do papa-lagartas, sumiram se.
Achei-me, horas depois, dia claro, escanchado na maçaneta de uma sela, horrivelmente sacolejado pelo trote de um cavalo, grossas mãos amparando-me.
Atravessávamos uma povoação — duas filas de casebres desertos e entre elas cabanas de barro negro e palha seca. Para que serviria aquilo? Alguém falou em botequins e em festa. Não compreendi os botequins nem a festa, mas as construções de terra e palha queimada impressionaram-me. Perdi-as de vista, esqueci-as logo, sacudido pela andadura que me desarrumava as entranhas, aumentava e diminuía a vegetação espinhosa e familiar de xiquexiques e mandacarus.
De repente me vi apeado, em abandono completo, num mundo estranho, cheio de casas, brancas ou pintada sem alpendres, notáveis. Havia duas maravilhosas: uma de quadrados faiscantes, uma que se montava noutra.
Avizinhei-me do sobradinho, fugi medroso e confuso: nunca teria podido imaginar uma casa trepada. Na debaixo percebi criaturas vermelhas e azuis, todas iguais; na de cima dois sujeitos se debruçavam, conversando, a uma janela, e, nem sei porque, talvez por estarem de poleiro, julguei-os enormes. Um deles vestia farda vermelha e azul, como os do andar térreo, mas com listas de galões amarelos nos punhos. Eu ignorava as fardas e os galões, objetos preciosos, evidentemente. Procurei Amaro e José Baía, debalde. Longe da fazenda, considerei-me fora da realidade e só. De fato não estava só: várias pessoas transitavam por ali, ruídos vagos quebravam o silêncio. Admirável a casa suspensa, como um garoto erguido em percas de pau. Cheguei-me a ela novamente, arredei-me Para a que brilhava, faiscava. O paletó feria-me os sovacos, os sapatos mordiam-me os pés e tropicavam no tijolo. Senti falta da camisa e das alpercatas. No outro lado da rua um longo corredor expunha um quintal cheio de roseiras. Deixei a farda, os galões, as paredes luminosas, fiquei muito tempo olhado as flores. Tencionei examiná-las de perto. Ressurgiu o isolamento, pus-me a caminhar ansioso na calçada. O meu desejo era gritar, pedir informações. Necessário voltar, distrair-me com as baronesas do açude, os marrecos e a vazante. Absurdo alguém viver num lugar onde se apertavam tantas casas. Até então houvera quatro ou cinco. O copiar da nossa, era escorado por esteios robustos de aroeira. José Baía segurava-me os braços e rodava. Ao largar-me, eu saía tonto, cambaleando. As cercas e as árvores giravam, os esteios giravam e batiam-me na cabeça. Minha mãe descompunha José Baía, mas ele não lhe dava atenção: rodopiava, contava histórias de onças, dizia que tinha nascido de sete meses, fora criado sem mamar, bebera leite de cem vacas na porteira do curral. A porteira do curral estava longe. O açude, a vazante, os marrecos e as baronesas desmaiavam. Chamas lambiam vultos, um arrieiro soltava gargalhadas. Papa-lagartas. Depois vinham botequins de barro e palha, o trote de um animal a sacudir-me pelas estradas, xiquexiques e mandacarus subindo e descendo. Os botequins e os papa-lagartas envelheciam.
Sensações violentas obliteravam xiquexiques e mandacarus: essas plantas não se acomodariam junto à grande arapuca levantada em pernas de pau. Senti vontade de chorar. Também não me acomodaria. Vi uma porta aberta, entrei, fui à sala de jantar, farejando o meu povo. D. Clara, a mulher que ia chamar-se D. Clara, sentada numa esteira, dava papa a um menino. Embrulhei-me. E, descobrindo um gato, perguntei de quem era o gato. D. Clara respondeu que era dela. Retirei-me, andei à toa na calçada, procurando José Baía, muitas queixas fervilhando-me no interior. Não me recordava da chegada, não sabia como tinha ido parar ali. Se me esquecessem no meio de surpresas? Precisei recolher-me. Enxerguei outra porta, enveredei por ela, detive-me na sala de jantar, percebi o gato, a esteira, o menino e D. Clara. Tornei a perguntar de quem era o gato e obtive a mesma resposta. Esperei mais algumas palavras. Não vieram — e saí desapontado. Pretendera, referindo-me ao gato, não que D. Clara se contentasse com ele, mas puxasse conversa, falasse nos homens de roupa vermelha e azul, na casa faiscante, nas roseiras. D. Clara não decifrou o meu intuito. E achei-me na rua, encolhido, murcho. A janela do sobradinho fechou-se. No andar térreo, porém, os sujeitos coloridos mexiam-se com animação, e um deles cantava uma cantiga mole, bamba, muito diferente da de José Baía. Duas ou três velhas surgiram na casa das roseiras. Elas e alguns transeuntes constituíram de chôfre multidão — e a multidão me fascinava e amedrontava. Acercava-me timidamente do sobradinho. Queria ouvir histórias, risadas, cantigas. E queria ausentar-me dali, descalçar-me, ver minhas irmãs, entreter-me com o moleque José. Vaguei na calçada, coxeando, os olhos turvos, as virilhas úmidas. Sentei-me no chão, cansado e infeliz. Encostei-me depois a uma parede e adormeci.
Graciliano Ramos, in Infância

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