Era
uma noite fria. Vozes misturavam-se na calçada, andava gente em
redor de uma fogueira grande, no pátio. Estalavam brasas, labaredas
cresciam, iluminavam pedaços de figuras, esmoreciam, e da sombra
fumacenta vinham risadas longas. Meu pai, invisível, comentava:
— Parece
um papa-lagartas.
Que
seria papa-lagartas? Se meu pai não me esfriasse a curiosidade
repetindo uma frase suja a respeito dos perguntadores, resolver-me-ia
a interrogá-lo. A frase me espantava sempre. Não queria
convencer-me de que ouvia nomes tão feios, e quando me inteirava bem
do sentido deles, afastava-me triste e humilhado, achando meu pai
grosseiro e jurando emendar-me.
Pensei
em dirigir-me a uma das pessoas ocultas na escuridão. Havia
rebuliço: rinchos, passos, pancadas de tampas de baús. E as
gargalhadas junto ao fogo. Que seria papa-lagartas? Sem os malditos
sapatos duros como pau, decidir-me-ia a entrar, sair, informar-me.
Certamente não me ligariam importância. E os sapatos me incomodavam
os dedos, esfolavam os calcanhares. Onde estariam as minhas
alpercatas? Na roupa estreita, movia-me com dificuldade. Em geral eu
usava camisa, saltava e corria como um bichinho, trepava nas pernas
de José Baía, que nascera de sete meses e fora criado sem mamar.
José Baía era ótimo, talvez por não ter mamado e haver nascido de
sete meses, o que devia ser uma exceção. Se José Baía aparecesse
ali, explicar-me-ia o papa-lagartas. A calça, o paletó e os sapatos
pressagiavam acontecimentos volumosos. E palavras enigmáticas
haviam-me despertado suspeitas vagas, medíocre entusiasmo por
aventuras imprecisas e medo. Que iria suceder? Bom que José Baía
estivesse comigo, papagueando na sua língua fácil e capenga,
livrando-me de sustos.
A
recordação dessa antiga cena mostra-me a casa virada, extravagância
que mais tarde se reproduziu. Muitas vezes as ruas e os prédios se
deslocaram, deixando-me perplexo, desnorteado. A porta da frente e o
copiar não davam para o açude, como de ordinário, mas para os
montes de lixo e o pé-de-turco. Houve uma pausa. As vozes, o rumor
de malas arrastadas, as chamas da fogueira, os rinchos, as
gargalhadas do papa-lagartas, sumiram se.
Achei-me,
horas depois, dia claro, escanchado na maçaneta de uma sela,
horrivelmente sacolejado pelo trote de um cavalo, grossas mãos
amparando-me.
Atravessávamos
uma povoação — duas filas de casebres desertos e entre elas
cabanas de barro negro e palha seca. Para que serviria aquilo? Alguém
falou em botequins e em festa. Não compreendi os botequins nem a
festa, mas as construções de terra e palha queimada
impressionaram-me. Perdi-as de vista, esqueci-as logo, sacudido pela
andadura que me desarrumava as entranhas, aumentava e diminuía a
vegetação espinhosa e familiar de xiquexiques e mandacarus.
De
repente me vi apeado, em abandono completo, num mundo estranho, cheio
de casas, brancas ou pintada sem alpendres, notáveis. Havia duas
maravilhosas: uma de quadrados faiscantes, uma que se montava noutra.
Avizinhei-me
do sobradinho, fugi medroso e confuso: nunca teria podido imaginar
uma casa trepada. Na debaixo percebi criaturas vermelhas e azuis,
todas iguais; na de cima dois sujeitos se debruçavam, conversando, a
uma janela, e, nem sei porque, talvez por estarem de poleiro,
julguei-os enormes. Um deles vestia farda vermelha e azul, como os do
andar térreo, mas com listas de galões amarelos nos punhos. Eu
ignorava as fardas e os galões, objetos preciosos, evidentemente.
Procurei Amaro e José Baía, debalde. Longe da fazenda,
considerei-me fora da realidade e só. De fato não estava só:
várias pessoas transitavam por ali, ruídos vagos quebravam o
silêncio. Admirável a casa suspensa, como um garoto erguido em
percas de pau. Cheguei-me a ela novamente, arredei-me Para a que
brilhava, faiscava. O paletó feria-me os sovacos, os sapatos
mordiam-me os pés e tropicavam no tijolo. Senti falta da camisa e
das alpercatas. No outro lado da rua um longo corredor expunha um
quintal cheio de roseiras. Deixei a farda, os galões, as paredes
luminosas, fiquei muito tempo olhado as flores. Tencionei examiná-las
de perto. Ressurgiu o isolamento, pus-me a caminhar ansioso na
calçada. O meu desejo era gritar, pedir informações. Necessário
voltar, distrair-me com as baronesas do açude, os marrecos e a
vazante. Absurdo alguém viver num lugar onde se apertavam tantas
casas. Até então houvera quatro ou cinco. O copiar da nossa, era
escorado por esteios robustos de aroeira. José Baía segurava-me os
braços e rodava. Ao largar-me, eu saía tonto, cambaleando. As
cercas e as árvores giravam, os esteios giravam e batiam-me na
cabeça. Minha mãe descompunha José Baía, mas ele não lhe dava
atenção: rodopiava, contava histórias de onças, dizia que tinha
nascido de sete meses, fora criado sem mamar, bebera leite de cem
vacas na porteira do curral. A porteira do curral estava longe. O
açude, a vazante, os marrecos e as baronesas desmaiavam. Chamas
lambiam vultos, um arrieiro soltava gargalhadas. Papa-lagartas.
Depois vinham botequins de barro e palha, o trote de um animal a
sacudir-me pelas estradas, xiquexiques e mandacarus subindo e
descendo. Os botequins e os papa-lagartas envelheciam.
Sensações
violentas obliteravam xiquexiques e mandacarus: essas plantas não se
acomodariam junto à grande arapuca levantada em pernas de pau. Senti
vontade de chorar. Também não me acomodaria. Vi uma porta aberta,
entrei, fui à sala de jantar, farejando o meu povo. D. Clara, a
mulher que ia chamar-se D. Clara, sentada numa esteira, dava papa a
um menino. Embrulhei-me. E, descobrindo um gato, perguntei de quem
era o gato. D. Clara respondeu que era dela. Retirei-me, andei à toa
na calçada, procurando José Baía, muitas queixas fervilhando-me no
interior. Não me recordava da chegada, não sabia como tinha ido
parar ali. Se me esquecessem no meio de surpresas? Precisei
recolher-me. Enxerguei outra porta, enveredei por ela, detive-me na
sala de jantar, percebi o gato, a esteira, o menino e D. Clara.
Tornei a perguntar de quem era o gato e obtive a mesma resposta.
Esperei mais algumas palavras. Não vieram — e saí desapontado.
Pretendera, referindo-me ao gato, não que D. Clara se contentasse
com ele, mas puxasse conversa, falasse nos homens de roupa vermelha e
azul, na casa faiscante, nas roseiras. D. Clara não decifrou o meu
intuito. E achei-me na rua, encolhido, murcho. A janela do sobradinho
fechou-se. No andar térreo, porém, os sujeitos coloridos mexiam-se
com animação, e um deles cantava uma cantiga mole, bamba, muito
diferente da de José Baía. Duas ou três velhas surgiram na casa
das roseiras. Elas e alguns transeuntes constituíram de chôfre
multidão — e a multidão me fascinava e amedrontava. Acercava-me
timidamente do sobradinho. Queria ouvir histórias, risadas,
cantigas. E queria ausentar-me dali, descalçar-me, ver minhas irmãs,
entreter-me com o moleque José. Vaguei na calçada, coxeando, os
olhos turvos, as virilhas úmidas. Sentei-me no chão, cansado e
infeliz. Encostei-me depois a uma parede e adormeci.
Graciliano
Ramos, in Infância
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