Ao
que, digo ao senhor, pergunto! em sua vida é assim? Na minha, agora
é que vejo, as coisas importantes, todas, em caso curto de acaso foi
que se conseguiram ― pelo pulo fino de sem ver se dar ― a sorte
momenteira, por cabelo por um fio, um clim de clina de cavalo. Ah, e
se não fosse, cada acaso, não tivesse sido, qual é então que
teria sido o meu destino seguinte? Coisa vã, que não conforma
respostas. As vezes essa ideia me põe susto. Mas, o senhor veja!
cheguei em casa do Mestre Lucas, ele me saudou, tão natural. Achei
também tudo o natural, eu estava era cansado. E, quando Mestre Lucas
me perguntou se eu vinha era de passeata, ou de recado da fazenda,
expliquei que não! que eu tinha merecido licença de meu padrinho,
para começar vida própria em Curralinho ou adiante, a fito de
desenvolver mais estudos e apuramento só de cidade. Dizendo o que
disse, eu mesmo jurava que Mestre Lucas não ia acreditar. Mas
acreditou, até melhor. Sabe o senhor por quê? Porque, naquele dia,
justo, ele estava remexido no meio de um assunto, que preparava o
desejo dele para aí me acreditar. Digo! ele me ouviu, e disse! ―
Riobaldo, pois você chega em feita ocasião!
Aí
me explicou! um senhor, no Palhão, na fazenda Nhanva, altas beiras
do Jequitaí, para o ensino de todas as matérias estava encomendando
um professor. Com urgência, era homem de sua situação, garantia
boa paga. Assim queria que Mestre Lucas fosse, que deixasse alguém
dando escola no lugar dele, no Curralim, por uns tempos; isso, claro,
não podia. Eu queria ir?
― O
senhor acha que eu posso? ― perguntei; para principiar qualquer
tarefa, quase que eu sozinho nunca tive coragem. ― Ei, pode! ― o
Mestre Lucas declarou. Já que estava acondicionando numa bruaca os
livros todos ― geografia, arimética, cartilha e gramática ― e
borracha, lápis, régua, tinteiro, tudo o que pudesse ter serventia.
Aceitei. Um entusiasmo nosso me botava brioso. Melhor que era para
logo, para o seguinte: dois camaradas do dito fazendeiro estavam ali
no Curralim, esperando decisão, agora me levavam. Dona Dindinha,
mulher de Mestre Lucas, no despedir, me abraçou, me deu umas
lágrimas de bondade: ― Tem tanta gente ruim neste mundo, meu
filho... E você assim tão moço, tão bonito... Aí, nem cheguei a
ver aquela menina Miosótis. A Rosauarda, vi, de longes olhares.
Os
dois camaradas, em tanto percebi, eram capangas. Mas sujeitos de seu
trato, sem altos-e-baixos nem as maiores asperezas, me deram toda
consideração. Viajamos juntos quatro dias, quase trinta léguas,
bom tempo beirando o Riachão e enxergando à mão esquerda os vultos
da Serra-do-Cabral. Meus companheiros quase que não me informavam,
de nada ou nada. Tinham outras ordens. Mas, mesmo antes da gente
entrar em terras do Palhão, fui vendo coisas calculosas, dei meio
para duvidar. Patrulhas de cavaleiros em armas; troco de conversa de
vigiação; e uma tropa de burros cargueiros, mas no meio dos
tocadores vinham três soldados. Mais perto, em maiores me vi. Chegar
lá declamava surpresa. A Nhanva enxameava de gente homem ―
pralaprá de feira em praça. E era vistosa fazenda assobradada, com
grandes currais e um terreirão. Vi logo o dono.
Ele
era imediatamente estúrdio, vestido de brim azul e calçando botas
amareladas. Era nervoso, magro, um pouco mais para baixo do que o
tamanho mediano, e com braços que pareciam demais de compridos, de
tanto que podiam gesticular. Fui indo, ele veio vindo, o grande
revólver na cintura; um lenço no pescoço dele esvoaçava. E aquele
cabelo bom, despenteado alto, topete arrepiadinho. Apressei o passo,
e ele esbarrou, com as mãos nas cadeiras. Me olhou frenteante, deu
risada ― de certo nem estava sabendo quem eu era. E gritou,
caçoando! ― Me vem com o andar de sapo, me vem...
Ah-oh-ah,
o destempo de estar sendo debochado se irou em mim. Esbarrei, também.
Me fiz mouco. Mas ele veio para mim, então, saudou, com um modo
sensato de simpatia. Adiado eu disse! ― Sou o moço professor... A
alegria dele, me ouvindo, foi estupefacta. Me ferrou do braço, com
porção de falas e agrados, subiu a escada comigo, me levou para um
quarto, lá dentro, ligeiro, parecia até que querendo me esconder de
todos. Uma doidice, de que? Ah, mas, ah ― esse quem era ― o
homem? Zé Bebelo. A fixe de fato, tudo nele, para mim, tirava mais
para fora uma real novidade.
Disse
ao senhor? ― eu estava pensando que ia dar escola para os filhos
dum fazendeiro. Engano. O comum, com Zé Bebelo, virava diferente
adiante, aprazava engano. Estudante sendo ele mesmo. Me avisou. Quis
antever os cadernos, livros, pegar com as mãos. Assim ler e
escrever, e as quatro contas, ele já soubesse, consumia jornais.
Remexeu, tarabuz, e tudo foi arrumando na mesa grande do quarto,
senhor-jesus-cristo que assoviava, o cantarolado. Mas ― e aí
comigo falou sério ― naquilo se tinha de sungar segredo! eu visse.
― Vamos constar é que estou assentando os planos! Você fica sendo
meu secretário. Nesse mesmo ido dia, a gente começou. Aquele homem
me exercitou tonto, eh, ô, me fino fiz. Ânsia assim e anfa, e poder
de entender demais, nunca achei quem outro. O que ele queria era
botar na cabeça, duma vez, o que os livros dão e não. Ele era a
inteligência! Vorava. Corrido, passava de lição em lição, e
perguntava, reperguntava, parecia ter até raiva de eu saber e não
ele, despeitos de ainda carecer de aprender, contra-fim. Queimava por
noite duas, três velas. Ele mesmo falava: ― Relógio não vou
olhar. Aí estudo, estudo, até que estico um cochilão. Cochilão me
vem: então espairo o livro, e me deito, que me durmo. Pela sua
vontade dele, simples. De dia, estávamos debulhando páginas, e de
repente se levantava ele, chegava na janela, apitava num apito,
ministrava aquela brama de ordens: dez, vinte executações duma vez.
O pessoal corria, cumpriam; aquilo semelhava um circo, bom teatro.
Mas, com menos de mês, Zé Bebelo se tinha senhoreado de reter tudo,
sabia muito mais do que eu mesmo soubesse. Aí, a alegria dele ficou
demasiadamente. Sobrevinha com o livro, me fazia de queima-cara um
punhado de perguntas. Ao tanto eu demorava, treteava no explicar,
errando a esmo, caloteava. Ai-ai-ai dele atalhar as minhas palavras,
mostrar no livro que eu estava falso, corrigir o dito, me dar quináu.
Se espocava às gargalhadas, espalmava mão, expendia outras normas,
próprias de sua ideia lá dele ― e sendo feliz de nessas
dificuldades me ver, eu já ignorante, esmorecido e escabreado. Só
aí, digo, foi que ele ficou gostando de mim. Certo. Me deu um
abraço, me gratificou em dinheiro, me fez firmes elogios ― Siô
Baldo, já tomei os altos de tudo! Mas carece de você não ir
sembora, não, mas antes prosseguir sendo o secretário meu... Aponto
que vamos por esse Norte, por grandes fatos, que você não se
arrependerá... ― me disse ― ...Norte, más bandas. Soprou, só;
enche que ventava.
Porque
ele tinha me estatutado os todos projetos. Como estava reunindo e
pervalendo aquela gente, para sair pelo Estado acima, em comando de
grande guerra. O fim de tudo, que seria: romper em peito de bando e
bando, acabar com eles, liquidar com os jagunços, até o último,
relimpar o mundo da jagunçada braba. ― Somente que eu tiver feito,
siô Baldo, estou todo! entro direito na política! Antes me
confessou essa única sina que ambicionava, de muito coração! e era
de ser deputado. Pediu segredo, e eu não gostei. Porque eu estava
sabendo que todos já aventavam aquela toleima, por detrás dele até
antecipavam alcunha! o Deputado... O mundo é assim. Mas,
mesmo desse jeito, o pessoal todo não regateava a ele a maior
dedicação de respeito. Por via de sua macheza. Ah, Zé Bebelo era o
do duro ― sete punhais de sete aços, trouxados numa bainha só!
Atirava e tanto com qualquer quilate de arma, sempre certeira a
pontaria, laçava e campeava feito um todo vaqueiro, amansava animal
de maior brabeza ― burro grande ou cavalo; duelava de faca, nos
espíritos solertes de onça acuada, sem parar de pôr; e medo, ou
cada parente de medo, ele cuspia em riba e desconhecia. Contavam! ele
entrava de cheio, pessoalmente, e botava paz em qualquer rutuba. O
homem couro-nágua, enfrentador! Dava os urros. E mesmo, para ele,
parecia não ter nada impossível. Com tanta bobeia assim,
desfrutável e escurril, e ái de quem pensasse em poitar olho de
chacotas! morria vertiginoso... ― O único homem-jagunço que eu
podia acatar, siô Baldo, já está falecido... Agora, temos de
render este serviço à pátria ― tudo é nacional! Esse que já
tinha morrido, que ele falava, era Joãozinho Bem-Bem, das Aroeiras,
de redondeante fama. Se dizia, tinha estudado a vida dele, nos
pormenores, com tanta devoção especial, que até um apelido em si
se apôs! Zé Bebelo; causa que, de nome, em verdade, era José
Rebêlo Adro Antunes.
Guimarães
Rosa, in Grande sertão: veredas
Nenhum comentário:
Postar um comentário