segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Perversidade ou espírito prático? Souza fica confuso quando é impedido de dar água a dois homens que morrem de sede

Atravessaram correndo a sala de visitas e deram de cara com os inquilinos forçados. Os três estavam de pé, como que à espera. Parece que tinham sido preparados para reagir eletronicamente ao menor sinal de perigo. Rostos tensos. O homem que sempre comia doces apontava o revólver.
Onde é que vão?
Comida, queremos comer.
Não temos comida.
Comida, água, comer, comer.
Avançavam, o homem que devorava doces engatilhou a arma com calma. O clique ecoou como estrondo na tarde parada, silenciosa. Estávamos suados e ofegantes. Minha cabeça latejava. Os invasores recuaram. Tremiam, babavam, cabeças pendidas. Não tinham condições de briga ou coisa semelhante.
Vão saindo, saindo, depressa.
Queremos comida.
Não tem.
A vizinha disse que tem. Disse que tem muita.
Não tem nenhuma.
Ela disse que aqui todo dia entra bastante comida.
Vão saindo!
Sem comida, não.
Essa conversa malparada podia durar a tarde inteira. O homem que costumava sentar-se à ponta da mesa foi para o corredor, saí atrás. Achei que pensava em alguma coisa. “Não sei como entraram. É duro. Mas não podemos dar nada a eles. Senão amanhã isto vai ser invadido de uma vez.”
Estava decidido a não ceder. O homem que comia doces continuava a apontar o revólver. Os invasores tremiam e babavam, indecisos. Quem sou eu que não dou nem um copo de água para estes desgraçados? Vou buscar. Não interessa se amanhã vai haver invasão. Nem sabemos se tem amanhã. Que bela frase!
Fui para a cozinha, o homem que se sentava à ponta da mesa percebeu e me seguiu. “Sei como o senhor se sente. Só que não adianta. Um copo de água não resolve nada. Eles precisam de muito mais que isso para resolver os problemas do Brasil.” Exagerou. Levou meu gesto longe demais.
É um copo. Nada mais.
Eles precisam de um tanque de água. Estão mortos. Conheço os sintomas, o tremor, a baba amarela. É um copo de água perdido.
O que custa perder um copo de água?
Oh, meu amigo. Tem de admitir a situação. Esse copo de água deve ser usado por quem tem condição de sobreviver mais tempo.
Apesar do mau aspecto da pele, os seus olhos eram calmos, nada violentos. Não era o olhar de um irracional, desatinado, preocupado com a própria sobrevivência. Havia qualquer coisa nele que me fazia confiar. Ponderação. Aquele ar determinado que eu encontrara em Tadeu Pereira. Sinceridade, acho.
Se ele é sincero ou não, é outro problema. Continuo remoendo: quem sou para negar a porcaria de um copo de água? O motivo é melhor ainda. Morrem com a barriga cheia de água. No entanto o terceiro homem me esperava no meio do corredor e me interceptou. – Não faça, amigo. É bobagem, pior para nós.
A casa é minha.
A casa é nossa. Não tem isso de minha casa.
Como? Se quiser, tiro vocês daqui num minuto.
Nem em um, nem em dois. Se quiser, vai reclamar. Sabe a quem?
Vamos fazer um acordo. Dou a água e mandamos embora. Se eles insistirem, expulsamos.
Expulsamos e eles saem contando que temos água e comida. Não, nem água, nem eles saem daqui.
Como?
Vamos trancá-los naquele cômodo do fundo, onde era o quarto da empregada. O senhor usa como despejo, está cheio de pacotes.
E ficam presos até morrer?
Amanhã eles vão embora. A camionete leva!
Que camionete?
A de suprimentos.
Vem mais?
Esta casa vai ser um centro difusor. Daqui mandamos para outros entrepostos.
Entrepostos?
O senhor só conversa perguntando?
Me deixa dar este copo! Só este.
Afinal, quem é esse homem para me dar ordens dentro de minha casa? O sangue me subiu à cabeça. Quase nunca acontece. Não aconteceu quando devia e deu no que deu a minha vida. Foi um segundo de decisão. Passei o copo para a mão esquerda e, decidido, empurrei o homem com a direita. Rapidamente.
O homem recuou, espantado com a minha súbita braveza. Entrei na sala. Nem deu tempo de oferecer o copo. Tem cabimento oferecer? Quando os invasores viram a água em minha mão, se atiraram com fúria. Tanta que derrubaram tudo. O homem que se sentava à ponta da mesa ria às gargalhadas.
Contente agora?
São umas bestas.
Bestas, não! Desesperados. Olha!
Lambiam o chão, como cachorros. Davam empurrões e cabeçadas na disputa das pequenas poças formadas pela diferença de nível entre os tacos. Ansiosos para que a água não penetrasse pelas frestas entre a madeira. Um empurrava ao outro, debilmente. Terminaram caindo, extenuados pelo esforço.
Levem os dois para o fundo – disse o que eu julgava fosse o líder.
Limpavam o quartinho, empilhando na cozinha os pacotes de calendários. Tantos anos encerrados nos embrulhos feitos a 5 de janeiro. Nada mais significavam. Papel velho para ser vendido a quilo. Úteis apenas para o Museu da Representação do Tempo, um setor deserto, arquivo morto.
A campainha. Abri. Fechei a porta. Essa não. Alguém tem de descer para saber o que está acontecendo. Tocaram de novo, deixei. Desliguei o fusível da campainha, esmurraram a porta. Socos. Os homens vieram do fundo, tinham prendido os carecas no quartinho. Olharam, surpresos.
Fizeram um sinal: deixe para nós. O homem que sempre comia doces atirou na porta. Dois tiros. Corrida, e o silêncio. Logo cortado por um gemido. Peguei uma cadeira, encostei à porta. Meu prédio é dos antigos, a porta almofadada tinha uma bandeira de vidro azul. Nunca tinha sido aberta.
Puxa, você tinha de fazer bobagem – eu disse.
Começou, agora ninguém mais segura.
Alguém deixou esses homens entrarem. Existe a grade eletrônica, a trava automática, a tevê.
Mas quem?
A bandeira da porta cedeu a um soco firme. Lá estava o homem caído, sangrando. A camisa empapada. Não dava para enxergar o furo. Olhei pelo corredor, ninguém. No entanto podiam estar escondidos, à espera que abríssemos a porta. Ou prontos para chamar os Civiltares. Não se sabe.
Puxamos o homem. Levamos ao quarto da empregada, junto com os outros. Minha vontade era vomitar. Tudo isso é loucura. Comi, dormi de barriga pesada, me deu pesadelo. Preciso acordar, me libertar dessa obsessão. Nada disso está se passando. Basta eu negar, com todas as forças. Jurar que não.
Não tem ninguém em casa, não estou vendo carecas, não tenho furo na mão, não está fazendo calor, não tenho dor de cabeça, não perdi o emprego, Adelaide não se foi, não existem barreiras, a cidade não está superlotada, não faz calor, minha casa está vazia, sossegada. Em paz.
Puro sonho. Não estamos atirando em gente, os vizinhos não estão fazendo sacanagem, não tem ninguém abrindo a porta aos pedintes e doentes. Daqui a pouco, cumpro a minha rotina diária, imperturbável. Acordo, tomo banho, café, Adelaide me leva à porta, vou ao ponto, apanho o S-7.58.
Tenho vergonha quando penso no que Tadeu Pereira diria se me visse em tal situação. Bem, e ele? O que faria? Ou o que é que poderia fazer? Gritava comigo: “Você aceitou passivamente o que se passou na universidade, entregou-se comodamente, deixou sua vida escorrer. E agora reclama do quê?”.
A vergonha não é pelo julgamento de Tadeu, e sim pelo meu próprio. Concordar é me transformar num deles. Sou eu que preciso me enfrentar. Enfiado em mim, nem percebi as imagens da televisão. E eram familiares. Mostravam um local conhecido. Não pode ser! Tal horror não está se passando.
Ignácio de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum

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