Atravessaram
correndo a sala de visitas e deram de cara com os inquilinos
forçados. Os três estavam de pé, como que à espera. Parece que
tinham sido preparados para reagir eletronicamente ao menor sinal de
perigo. Rostos tensos. O homem que sempre comia doces apontava o
revólver.
– Onde
é que vão?
– Comida,
queremos comer.
– Não
temos comida.
– Comida,
água, comer, comer.
Avançavam,
o homem que devorava doces engatilhou a arma com calma. O clique
ecoou como estrondo na tarde parada, silenciosa. Estávamos suados e
ofegantes. Minha cabeça latejava. Os invasores recuaram. Tremiam,
babavam, cabeças pendidas. Não tinham condições de briga ou coisa
semelhante.
– Vão
saindo, saindo, depressa.
– Queremos
comida.
– Não
tem.
– A
vizinha disse que tem. Disse que tem muita.
– Não
tem nenhuma.
– Ela
disse que aqui todo dia entra bastante comida.
– Vão
saindo!
– Sem
comida, não.
Essa
conversa malparada podia durar a tarde inteira. O homem que costumava
sentar-se à ponta da mesa foi para o corredor, saí atrás. Achei
que pensava em alguma coisa. “Não sei como entraram. É duro. Mas
não podemos dar nada a eles. Senão amanhã isto vai ser invadido de
uma vez.”
Estava
decidido a não ceder. O homem que comia doces continuava a apontar o
revólver. Os invasores tremiam e babavam, indecisos. Quem sou eu que
não dou nem um copo de água para estes desgraçados? Vou buscar.
Não interessa se amanhã vai haver invasão. Nem sabemos se tem
amanhã. Que bela frase!
Fui
para a cozinha, o homem que se sentava à ponta da mesa percebeu e me
seguiu. “Sei como o senhor se sente. Só que não adianta. Um copo
de água não resolve nada. Eles precisam de muito mais que isso para
resolver os problemas do Brasil.” Exagerou. Levou meu gesto longe
demais.
– É
um copo. Nada mais.
– Eles
precisam de um tanque de água. Estão mortos. Conheço os sintomas,
o tremor, a baba amarela. É um copo de água perdido.
– O
que custa perder um copo de água?
– Oh,
meu amigo. Tem de admitir a situação. Esse copo de água deve ser
usado por quem tem condição de sobreviver mais tempo.
Apesar
do mau aspecto da pele, os seus olhos eram calmos, nada violentos.
Não era o olhar de um irracional, desatinado, preocupado com a
própria sobrevivência. Havia qualquer coisa nele que me fazia
confiar. Ponderação. Aquele ar determinado que eu encontrara em
Tadeu Pereira. Sinceridade, acho.
Se
ele é sincero ou não, é outro problema. Continuo remoendo: quem
sou para negar a porcaria de um copo de água? O motivo é melhor
ainda. Morrem com a barriga cheia de água. No entanto o terceiro
homem me esperava no meio do corredor e me interceptou. – Não
faça, amigo. É bobagem, pior para nós.
– A
casa é minha.
– A
casa é nossa. Não tem isso de minha casa.
– Como?
Se quiser, tiro vocês daqui num minuto.
– Nem
em um, nem em dois. Se quiser, vai reclamar. Sabe a quem?
– Vamos
fazer um acordo. Dou a água e mandamos embora. Se eles insistirem,
expulsamos.
– Expulsamos
e eles saem contando que temos água e comida. Não, nem água, nem
eles saem daqui.
– Como?
– Vamos
trancá-los naquele cômodo do fundo, onde era o quarto da empregada.
O senhor usa como despejo, está cheio de pacotes.
– E
ficam presos até morrer?
– Amanhã
eles vão embora. A camionete leva!
– Que
camionete?
– A
de suprimentos.
– Vem
mais?
– Esta
casa vai ser um centro difusor. Daqui mandamos para outros
entrepostos.
– Entrepostos?
– O
senhor só conversa perguntando?
– Me
deixa dar este copo! Só este.
Afinal,
quem é esse homem para me dar ordens dentro de minha casa? O sangue
me subiu à cabeça. Quase nunca acontece. Não aconteceu quando
devia e deu no que deu a minha vida. Foi um segundo de decisão.
Passei o copo para a mão esquerda e, decidido, empurrei o homem com
a direita. Rapidamente.
O
homem recuou, espantado com a minha súbita braveza. Entrei na sala.
Nem deu tempo de oferecer o copo. Tem cabimento oferecer? Quando os
invasores viram a água em minha mão, se atiraram com fúria. Tanta
que derrubaram tudo. O homem que se sentava à ponta da mesa ria às
gargalhadas.
– Contente
agora?
– São
umas bestas.
– Bestas,
não! Desesperados. Olha!
Lambiam
o chão, como cachorros. Davam empurrões e cabeçadas na disputa das
pequenas poças formadas pela diferença de nível entre os tacos.
Ansiosos para que a água não penetrasse pelas frestas entre a
madeira. Um empurrava ao outro, debilmente. Terminaram caindo,
extenuados pelo esforço.
– Levem
os dois para o fundo – disse o que eu julgava fosse o líder.
Limpavam
o quartinho, empilhando na cozinha os pacotes de calendários. Tantos
anos encerrados nos embrulhos feitos a 5 de janeiro. Nada mais
significavam. Papel velho para ser vendido a quilo. Úteis apenas
para o Museu da Representação do Tempo, um setor deserto, arquivo
morto.
A
campainha. Abri. Fechei a porta. Essa não. Alguém tem de descer
para saber o que está acontecendo. Tocaram de novo, deixei.
Desliguei o fusível da campainha, esmurraram a porta. Socos. Os
homens vieram do fundo, tinham prendido os carecas no quartinho.
Olharam, surpresos.
Fizeram
um sinal: deixe para nós. O homem que sempre comia doces atirou na
porta. Dois tiros. Corrida, e o silêncio. Logo cortado por um
gemido. Peguei uma cadeira, encostei à porta. Meu prédio é dos
antigos, a porta almofadada tinha uma bandeira de vidro azul. Nunca
tinha sido aberta.
– Puxa,
você tinha de fazer bobagem – eu disse.
– Começou,
agora ninguém mais segura.
– Alguém
deixou esses homens entrarem. Existe a grade eletrônica, a trava
automática, a tevê.
– Mas
quem?
A
bandeira da porta cedeu a um soco firme. Lá estava o homem caído,
sangrando. A camisa empapada. Não dava para enxergar o furo. Olhei
pelo corredor, ninguém. No entanto podiam estar escondidos, à
espera que abríssemos a porta. Ou prontos para chamar os Civiltares.
Não se sabe.
Puxamos
o homem. Levamos ao quarto da empregada, junto com os outros. Minha
vontade era vomitar. Tudo isso é loucura. Comi, dormi de barriga
pesada, me deu pesadelo. Preciso acordar, me libertar dessa obsessão.
Nada disso está se passando. Basta eu negar, com todas as forças.
Jurar que não.
Não
tem ninguém em casa, não estou vendo carecas, não tenho furo na
mão, não está fazendo calor, não tenho dor de cabeça, não perdi
o emprego, Adelaide não se foi, não existem barreiras, a cidade não
está superlotada, não faz calor, minha casa está vazia, sossegada.
Em paz.
Puro
sonho. Não estamos atirando em gente, os vizinhos não estão
fazendo sacanagem, não tem ninguém abrindo a porta aos pedintes e
doentes. Daqui a pouco, cumpro a minha rotina diária, imperturbável.
Acordo, tomo banho, café, Adelaide me leva à porta, vou ao ponto,
apanho o S-7.58.
Tenho
vergonha quando penso no que Tadeu Pereira diria se me visse em tal
situação. Bem, e ele? O que faria? Ou o que é que poderia fazer?
Gritava comigo: “Você aceitou passivamente o que se passou na
universidade, entregou-se comodamente, deixou sua vida escorrer. E
agora reclama do quê?”.
A
vergonha não é pelo julgamento de Tadeu, e sim pelo meu próprio.
Concordar é me transformar num deles. Sou eu que preciso me
enfrentar. Enfiado em mim, nem percebi as imagens da televisão. E
eram familiares. Mostravam um local conhecido. Não pode ser! Tal
horror não está se passando.
Ignácio
de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum
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