Uns
desses dias fui assaltado. Foi num virar de esquina, num desses becos
onde o escuro se aferrolha com chave preta. Nem decifrei o vulto: só
vi, em rebrilho fugaz, a arma em sua mão. Já eu pensava fora do
pensamento: eis-me! A pistola foi-me justaposta no peito, a
mostrar-me que a morte é um cão que obedece antes mesmo de se lhe
ter assobiado.
Tudo
se embrulhava em apuros e eu fazia contas à vida. O medo é uma faca
que corta com o cabo e não com a lâmina. A gente empunha a faca e,
quanto maior a força de pulso, mais nos cortamos.
— Para
trás!
Obedeci
à ordem, tropeçando até me estancar de encontro à parede. O gelo
endovenoso, o coração em cristal: eu estava na ante-câmara, à
espera de um simples estalido. Cumpria os mandamentos do assaltante,
tudo mecanicamente. E mais parvalhado que o cuco do relógio. O que
fazer? Contra-atacar? Arriscar tudo e, assim sem mais nem nada,
atirar a vida para trás das costas?
— Diga
qualquer coisa.
— Qualquer
coisa?
— Me
conte quem é. Você quem é?
Medi
as palavras. Quanto mais falasse e menos dissesse melhor seria. O
maltrapilho estava ali para tirar os nabos e a púcara. Melhor
receita seria o cauteloso silêncio. Temos medo do que não
entendemos. Isso todos sabemos. Mas, no caso, o meu medo era pior: eu
temia por entender. O serviço do terror é esse — tornar
irracional aquilo que não podemos subjugar.
— Vá
falando.
— Falando?
— Sim,
conte lá coisas. Depois, sou eu. A seguir é a minha vez.
Depois
era a vez dele? Mas para fazer o quê? Certamente, para me executar a
sangue esfriado, pistolando-me à queima-roupa. Naquele momento,
vindo de não sei onde, circulou por ali um furtivo raio de luz,
coisa pouca, mais para antever que para ver. O fulano baixou o rosto,
e voltou a pistola em ameaça.
— Você
brinca e eu …
Não
concluiu ameça. Uma tosse de gruta lhe tomou a voz. Baixou, numa
fracção, a arma enquanto se desenvencilhava do catarro. Por
momento, ele surgiu-me indefeso, tão frágil que seria deselegância
minha me aproveitar do momento. Notei que tirava um lenço e se
compunha, quase ignorando minha presença.
— Vá,
vamos mais para lá.
Eu
recuei mais uns passos. O medo dera lugar à inquietação. Quem
seria aquele meliante? Um desses que se tornam ladrões por motivo de
fraqueza maior? Ou um que a vida empurrara para os descaminhos?
Diga-se de passagem que, no momento, pouco me importavam as possíveis
bondades do criminoso. Afinal, é do podre que a terra se alimenta. E
em crise existencial, até o lobisomem duvida: será que existe o cão
fora da meia-noite?
Fomos
andando para os arredores de uma iluminação. Foi quando me apercebi
que era um velho. Um mestiço, até sem má aparência. Mas era um da
quarta idade, cabelo todo branco. Não parecia um pobre. Ou se fosse
era desses pobres já fora de moda, desses de quando o mundo tinha a
nossa idade. No meu tempo de menino tínhamos pena dos pobres. Eles
cabiam naquele lugarzinho menor, carentes de tudo, mas sem perder
humanidade. Os meus filhos, hoje, têm medo dos pobres. A pobreza
converteu-se num lugar monstruoso. Queremos que os pobres fiquem
longe, fronteirados no seu território. Mas este não era um
miserável emergido desses infernos. Foi quando, cansado, perguntei:
— O
que quer de mim?
— Eu
quero conversar.
— Conversar?
— Sim,
apenas isso, conversar. É que, agora, com esta minha idade, já
ninguém me conversa.
Então,
isso? Simplesmente, um palavreado? Sim, era só esse o móbil do
crime. O homem recorria ao assalto de arma de fogo para roubar
instantes, uma frestinha de atenção. Se ninguém lhe dava a
cortesia de um reparo ele obteria esse direito nem que fosse a tiro
de pistola. Não podia era perder sua última humanidade — o
direito de encontrar os outros, olhos em olhos, alma revelando-se em
outro rosto.
E me
sentei, sem hora nem gasto. Ali no beco escuro lhe contei vida, em
cores e mentiras. No fim, já quase ele adormecera em minhas
histórias eu me despedi em requerimento: que, em próximo encontro,
se dispensaria a pistola. De bom agrado, nos sentaríamos ambos num
bom banco de jardim. Ao que o velho, pronto, ripostou:
— Não
faça isso. Me deixe assaltar o senhor. Assim, me dá mais gosto.
E se
converteu, assim: desde então, sou vítima de assalto, já sem
sombra de medo. É assalto sem sobressalto. Me conformei, e é como
quem leva a passear o cão que já faleceu. Afinal, no crime como no
amor: a gente só sabe que encontra a pessoa certa depois de
encontrarmos as que são certas para outros.
Mia
Couto,
in
Ficções 3
(Editora
7 letras)
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