quarta-feira, 16 de outubro de 2019

A morte e a morte de Quincas Berro D'Água - III

Umas poucas pessoas, gente da ladeira, espiavam o cadáver quando Vanda chegou. O santeiro informava em voz baixa:
É a filha. Tinha filha, genro, irmãos. Gente distinta. O genro é funcionário, mora em Itapagipe. Casa de primeira...
Afastavam-se para ela passar, curiosos de vê-la lançar-se sobre o cadáver, abraçá-lo, envolver-se em lágrimas, soluçar talvez. No catre, Quincas Berro D'Água, as calças velhas e remendadas, a camisa aos pedaços, num seboso e enorme colete, sorria como se estivesse a divertir-se. Vanda ficou imóvel, olhando o rosto de barba por fazer, as mãos sujas, o dedo grande do pé saindo da meia furada. Não tinha mais lágrimas para chorar nem soluços com que encher o quarto, desperdiçados umas e outros nos primeiros tempos da maluquice de Quincas, quando ela fizera tentativas reiteradas de trazê-lo de volta à casa abandonada. Agora apenas olhava, o rosto ruborizado de vergonha.
Era um morto pouco apresentável, cadáver de vagabundo falecido ao azar, sem decência na morte, sem respeito, rindo-se cinicamente, rindo-se dela, com certeza de Leonardo, do resto da família. Cadáver para necrotério, para ir no rabecão da polícia servir depois aos alunos da Faculdade de Medicina nas aulas práticas, ser finalmente enterrado em cova rasa, sem cruz e sem inscrição. Era o cadáver de Quincas Berro D'Água, cachaceiro, debochado e jogador, sem família, sem lar, sem flores e sem rezas. Não era Joaquim Soares da Cunha, correto funcionário da Mesa de Rendas Estadual, aposentado após vinte e cinco anos de bons e leais serviços, esposo modelar, a quem todos tiravam o chapéu e apertavam a mão. Como pode um homem, aos cinquenta anos, abandonar a família, a casa, os hábitos de toda uma vida, os conhecidos antigos, para vagabundear pelas ruas, beber nos botequins baratos, frequentar o meretrício, viver sujo e barbado, morar em infame pocilga, dormir em um catre miserável? Vanda não encontrava explicação válida. Muitas vezes, à noite, após a morte de Otacília – nem naquela ocasião solene Quincas aceitara voltar para a companhia dos seus – discutira o assunto com o marido. Loucura não era, pelo menos loucura de hospício, os médicos tinham sido unânimes. Como explicar, então?
Agora, porém, tudo aquilo terminava, aquele pesadelo de anos, aquela mancha na dignidade da família. Vanda herdara da mãe certo senso prático, a capacidade de tomar rapidamente decisões e executá-las. Enquanto olhava o morto, desagradável caricatura do que fora seu pai, ia resolvendo o que fazer. Primeiro chamar o médico para o atestado de óbito. Depois vestir decentemente o cadáver, transportá-lo para casa, enterrá-lo ao lado de Otacília, num enterro que não fosse muito caro, pois os tempos andavam difíceis, mas que tampouco os deixasse mal ante a vizinhança, os conhecidos, os colegas de Leonardo. Tia Marocas e tio Eduardo ajudariam. E pensando nisso, os olhos fitos na face sorridente de Quincas, Vanda pensou no destino da aposentadoria do pai. Eles a herdariam ou receberiam apenas o montepio? Talvez Leonardo soubesse...
Voltou-se para os curiosos ainda a fitá-la, era aquela gentinha do Tabuão, a ralé em cuja companhia Quincas se comprazia. Que faziam ali? Não compreendiam que Quincas Berro D'Água terminara ao exalar o último suspiro? Que ele fora apenas uma invenção do diabo? Um sonho mau, um pesadelo? Novamente Joaquim Soares da Cunha voltaria e estaria um pouco entre os seus, no conforto de uma casa honesta, reintegrado em sua respeitabilidade. Chegara a hora do retorno e desta vez Quincas não poderia rir na cara da filha e do genro, mandá-los plantar batatas, dar-lhes um adeusinho irônico e sair assoviando. Estava estendido no catre, sem movimentos. Quincas Berro D'Água acabara.
Vanda levantou a cabeça, passeou um olhar vitorioso pelos presentes, ordenou com aquela voz de Otacília:
Desejam alguma coisa? Senão, podem ir saindo.
Dirigiu-se depois ao santeiro:
O senhor podia fazer o favor de chamar um médico? Para o atestado de óbito. O santeiro aquiesceu com a cabeça, estava impressionado. Os outros retiravam-se devagar. Vanda ficou só com o cadáver. Quincas Berro D'Água sorria e o dedo grande do pé direito parecia crescer no buraco da meia.
Jorge Amado, in A morte e a morte de Quincas Berro D'Água

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