Umas
poucas pessoas, gente da ladeira, espiavam o cadáver quando Vanda
chegou. O santeiro informava em voz baixa:
– É
a filha. Tinha filha, genro, irmãos. Gente distinta. O genro é
funcionário, mora em Itapagipe. Casa de primeira...
Afastavam-se
para ela passar, curiosos de vê-la lançar-se sobre o cadáver,
abraçá-lo, envolver-se em lágrimas, soluçar talvez. No catre,
Quincas Berro D'Água, as calças velhas e remendadas, a camisa aos
pedaços, num seboso e enorme colete, sorria como se estivesse a
divertir-se. Vanda ficou imóvel, olhando o rosto de barba por fazer,
as mãos sujas, o dedo grande do pé saindo da meia furada. Não
tinha mais lágrimas para chorar nem soluços com que encher o
quarto, desperdiçados umas e outros nos primeiros tempos da
maluquice de Quincas, quando ela fizera tentativas reiteradas de
trazê-lo de volta à casa abandonada. Agora apenas olhava, o rosto
ruborizado de vergonha.
Era
um morto pouco apresentável, cadáver de vagabundo falecido ao azar,
sem decência na morte, sem respeito, rindo-se cinicamente, rindo-se
dela, com certeza de Leonardo, do resto da família. Cadáver para
necrotério, para ir no rabecão da polícia servir depois aos alunos
da Faculdade de Medicina nas aulas práticas, ser finalmente
enterrado em cova rasa, sem cruz e sem inscrição. Era o cadáver de
Quincas Berro D'Água, cachaceiro, debochado e jogador, sem família,
sem lar, sem flores e sem rezas. Não era Joaquim Soares da Cunha,
correto funcionário da Mesa de Rendas Estadual, aposentado após
vinte e cinco anos de bons e leais serviços, esposo modelar, a quem
todos tiravam o chapéu e apertavam a mão. Como pode um homem, aos
cinquenta anos, abandonar a família, a casa, os hábitos de toda uma
vida, os conhecidos antigos, para vagabundear pelas ruas, beber nos
botequins baratos, frequentar o meretrício, viver sujo e barbado,
morar em infame pocilga, dormir em um catre miserável? Vanda não
encontrava explicação válida. Muitas vezes, à noite, após a
morte de Otacília – nem naquela ocasião solene Quincas aceitara
voltar para a companhia dos seus – discutira o assunto com o
marido. Loucura não era, pelo menos loucura de hospício, os médicos
tinham sido unânimes. Como explicar, então?
Agora,
porém, tudo aquilo terminava, aquele pesadelo de anos, aquela mancha
na dignidade da família. Vanda herdara da mãe certo senso prático,
a capacidade de tomar rapidamente decisões e executá-las. Enquanto
olhava o morto, desagradável caricatura do que fora seu pai, ia
resolvendo o que fazer. Primeiro chamar o médico para o atestado de
óbito. Depois vestir decentemente o cadáver, transportá-lo para
casa, enterrá-lo ao lado de Otacília, num enterro que não fosse
muito caro, pois os tempos andavam difíceis, mas que tampouco os
deixasse mal ante a vizinhança, os conhecidos, os colegas de
Leonardo. Tia Marocas e tio Eduardo ajudariam. E pensando nisso, os
olhos fitos na face sorridente de Quincas, Vanda pensou no destino da
aposentadoria do pai. Eles a herdariam ou receberiam apenas o
montepio? Talvez Leonardo soubesse...
Voltou-se
para os curiosos ainda a fitá-la, era aquela gentinha do Tabuão, a
ralé em cuja companhia Quincas se comprazia. Que faziam ali? Não
compreendiam que Quincas Berro D'Água terminara ao exalar o último
suspiro? Que ele fora apenas uma invenção do diabo? Um sonho mau,
um pesadelo? Novamente Joaquim Soares da Cunha voltaria e estaria um
pouco entre os seus, no conforto de uma casa honesta, reintegrado em
sua respeitabilidade. Chegara a hora do retorno e desta vez Quincas
não poderia rir na cara da filha e do genro, mandá-los plantar
batatas, dar-lhes um adeusinho irônico e sair assoviando. Estava
estendido no catre, sem movimentos. Quincas Berro D'Água acabara.
Vanda
levantou a cabeça, passeou um olhar vitorioso pelos presentes,
ordenou com aquela voz de Otacília:
– Desejam
alguma coisa? Senão, podem ir saindo.
Dirigiu-se
depois ao santeiro:
– O
senhor podia fazer o favor de chamar um médico? Para o atestado de
óbito. O santeiro aquiesceu com a cabeça, estava impressionado. Os
outros retiravam-se devagar. Vanda ficou só com o cadáver. Quincas
Berro D'Água sorria e o dedo grande do pé direito parecia crescer
no buraco da meia.
Jorge
Amado, in A morte e a morte de Quincas Berro D'Água
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