sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Nazistas no Chile

Regressei outra vez em terceira classe ao meu país. Ainda que na América Latina não tivéssemos lido o caso de que eminentes escritores como Céline, Drieu La Rochelle ou Ezra Pound se convertessem em traidores a serviço do fascismo, nem por isso deixou de existir uma forte corrente impregnada, natural ou financeiramente, pela corrente hitleriana. Em toda parte formavam-se pequenos grupos que levantavam o braço fazendo a saudação fascista, disfarçados de guardas de assalto. Mas não se tratava somente de pequenos grupos. As velhas oligarquias feudais do continente simpatizavam (e simpatizam) com qualquer tipo de anticomunismo, venha este da Alemanha ou da ultra-esquerda criolla. Além disso não esqueçamos que grandes grupos de descendentes de alemães povoam a maioria de determinadas regiões do Chile, Brasil e México. Esses setores foram facilmente seduzidos pela meteórica ascensão de Hitler e pela fábula de um milênio de grandeza germânica.
Por aqueles dias de vitórias estrondosas de Hitler, tive que cruzar mais de uma vez alguma rua de um vilarejo ou de uma cidade do Sul do Chile sob verdadeiros bosques de bandeiras com a cruz gamada. Numa ocasião, em um pequeno povoado sulista, vi-me forçado a usar o único telefone da localidade e a fazer uma involuntária reverência ao Führer. O proprietário alemão do estabelecimento tinha maquinado colocar o aparelho de tal forma que a gente ficava obrigado a ficar com o braço no alto diante de um retrato de Hitler com o braço levantado.
Fui diretor da revista Aurora de Chile. Toda a artilharia literária (não tínhamos outra) era disparada contra os nazistas que iam engolindo um país atrás do outro. O embaixador hitleriano no Chile presenteou livros da chamada cultura neogermânica à Biblioteca Nacional. Respondemos pedindo a todos os nossos leitores que nos mandassem os verdadeiros livros alemães da verdadeira Alemanha proibidos por Hitler. Foi uma grande experiência. Recebi ameaças de morte. E chegaram muitos embrulhos corretamente empacotados com livros que continham imundícies. Recebemos também coleções inteiras do Stürner, jornal pornográfico, sadista e anti-semita, dirigido por Julius Streicher, justamente enforcado anos depois em Nuremberg. Mas pouco a pouco, com timidez, começaram a chegar as edições em idioma alemão de Henri Heine, de Thomas Mann, de Ana Seghers, de Einstein, de Arnold Zweig. Quando tivemos cerca de quinhentos volumes fomos deixá-los na Biblioteca Nacional.
Que surpresa! A Biblioteca Nacional nos tinha fechado as portas com cadeado.
Organizamos então uma passeata e penetramos no salão de honra da universidade com os retratos do Pastor Niemoller e de Karl von Ossietvsky. Não sei por que razão celebrava-se ali nesse instante um ato presidido por Dom Miguel Cruchaga Tocornal, ministro das Relações Exteriores. Colocamos com cuidado os livros e os retratos no estrado da presidência. Ganhou-se a batalha: os livros foram aceitos.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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