terça-feira, 6 de agosto de 2019

Valsa de esquina

Um moço em Curitiba devia se afogar...
Carlinhos retocou as pontas da gravata — uma gravata de bolinhas azuis, mas não era feliz. Olhou de todos os lados: onde o mar?
... no último barril de rum!
Saía do emprego e reunia-se no café com os amigos. Cobria a xícara de cigarros, no mármore da mesa desenhava trinta vezes o seu nome de guerra.
Uma mulher é o que falta a um moço como eu!
Com zumbido de abelha corriam os bondes sobre os trilhos — todas as caras na janela.
Voltou para o quarto, um, dois, feijão com arroz, Mulher como a dama das camélias, disse consigo, chutando uma pedra.
Dia 17 de abril de... não me lembro o ano, às sete e meia da noite. Carlinhos quis voltar e parou, com a perna no ar: nada por fazer no quarto. Anda, anda, minha perna, três, quatro, feijão no prato.
Os pares dançavam na sala, as cadeiras ao longo da parede. Ele fumava à janela, por vezes repuxava a gravata de bolinhas — aquilo sim era gravata! No oitavo cigarro decidiu falar com a menina feia, sozinha no canto.
Ela deixou cair a folha de papel: era modinha de Sílvio Caldas. Carlinhos entregou a canção com o gesto de quem oferecia uma flor.
Sugeriu que devia tocar piano, dedos tão delicados. Muita vontade de aprender, mas o pai não queria. Ó, doente por música! Ele quis saber se gostava mais de Sílvio Caldas ou Orlando Silva. A mocinha olhou primeira vez nos seus olhos — os belos olhos de Carlinhos — e disse Orlando Silva. Ele foi cruel: Sílvio Caldas. Até inventou retrato com dedicatória: “Do Sílvio ao amigo velho”.
A aniversariante chegou com pratinhos de ambrosia.
Conhece a Branca?
Acompanhou-a depois das aulas. Vinha do café, postava-se debaixo da tabuleta: “Alta Academia de Corte e Costura — Professoras Josefa e Soledade”.
Nove da noite surgiam apressadas as mocinhas, cada uma com pacote no braço. Na rua de barro, Branca estendia a mão pálida. Que não fosse até a porta, o pai era muito esquisito. Em despedida, o cartão colorido — namorados se beijavam no caramanchão de rosas. Dois nomes desenhados no canto.
Os amigos riam-se no café, passando o cartão de um para outro. Carlinhos fez juramento público: ela seria sua.
Aquela noite Branca veio sozinha. Ninguém na rua, a sombra redonda das árvores na calçada. Uma coisa importante para lhe dizer. Branca pediu que não, a mãe ralharia se chegasse tarde. Carinhos enterrou as mãos no bolso, não falou mais. Daí ela parou, por quê estava zangado? “Nada”, respondeu ele. Encostou-a na primeira árvore e a beijou, cheia de medo.
Entendeu passos, ergueu o pacote do chão. Foram andando. À sombra de outra árvore, empurrou-a contra a parede. Branca abriu no choro, ele sentia o próprio rosto molhado — “Não chore, sua boba”.
Acordou de noite, olho arregalado no escuro. O choro de Branca ao lado da cama.
Acendeu a luz, ninguém. Miserável! ele se injuriou. Sonhava com ela entre cadeiras vazias, rasgando a modinha de Sílvio Caldas. Pelo gosto ruim na boca soube que a amava.
À espera na esquina, mão trêmula. Que bobagem, um homem na minha idade. Saíam as mocinhas, não viu Branca. Seguiu-as, nem uma era ela.
Noite seguinte informou-se com uma colega: doente. Sofria do coração, a pobre, disse a moça e foi-se com outra, as duas rindo-se dele. Voltou para o quarto, o remorso igual a uma gravatinha no pescoço. Não podia ouvir o Orlando Silva sem que lhe doesse o peito: uns dedos furadinhos de agulha... Doente, quem sabe à morte.
Escreveu com giz o nome Branca em todas as portas da rua. Não tornou ao café (os amigos lembravam-se do juramento) e primeira vez bebeu rum. Outras noites rondando a Academia, olho vermelho de tanto soletrar Josefa e Soledade.
Saem as moças, cada uma com seu pacote. À sombra das árvores, cambaleia na ruazinha de barro. Cachorros latem para ele, perdido entre as casas de madeira, pés de couve na entrada. Qual delas é a de Branca? Assobia debaixo das janelas uma valsa de Orlando Silva. Só lhe respondem o apito dos guardiões e a lamúria dos sapos em noite de chuva.
Há meses assobia nos portões, um grilo entre as couves. Quando ele passa, o guarda-noturno leva dois dedos ao boné. Nunca mais trocou de gravata — ai, bolinhas azuis! Sem saber se Branca morreu, chega ao café. Um amigo pergunta como vai de amores.
Você deve se afogar no barril de rum.
Dalton Trevisan, in Novelas nada exemplares

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