terça-feira, 13 de agosto de 2019

Quem tem medo de Charles Darwin?

De acordo com uma pesquisa Gallup de 2012, apenas 15% dos americanos pensam que o Homo sapiens evoluiu somente pela seleção natural, sem nenhuma intervenção divina; 32% sustentam que os humanos podem ter evoluído de formas de vida anteriores num processo que levou milhões de anos, mas que Deus orquestrou todo esse espetáculo; 46% acreditam que Deus criou os humanos em sua forma atual em algum momento dos últimos 10 mil anos, exatamente como relata a Bíblia. Passar três anos numa faculdade não exerce nenhum impacto na formação dessas opiniões. A mesma pesquisa descobriu que, entre os graduados com bacharelado, 46% acreditam na história bíblica da criação, enquanto apenas 14% pensam que os humanos evoluíram sem nenhuma supervisão divina. Mesmo entre os que têm mestrado e doutorado, 25% acreditam na Bíblia, ao passo que apenas 29% creditam somente à seleção natural a criação de nossa espécie.
Embora as escolas não estejam, evidentemente, fazendo um bom trabalho no ensino da evolução, os fanáticos religiosos ainda insistem que ela não deveria ser ensinada. Alternativamente, exigem que se ensine também a teoria do DesignInteligente, segundo a qual todos os organismos foram criados de acordo com o projeto de alguma inteligência superior (também conhecida como Deus). “Ensinem ambas as teorias”, dizem os fanáticos, “e que as crianças decidam por si mesmas.”
Por que a teoria da evolução suscita tais objeções, enquanto ninguém parece se incomodar com a teoria da relatividade ou com a mecânica quântica? Por que os políticos não pedem que se apresentem às crianças teorias alternativas sobre matéria, energia, espaço e tempo? Afinal, à primeira vista as ideias de Darwin parecem muito menos ameaçadoras que as monstruosidades de Einstein e de Werner Heisenberg. A teoria da evolução apoia-se no princípio da sobrevivência do mais apto, o que é uma ideia clara e simples — para não dizer trivial. Em contraste, a teoria da relatividade e a mecânica quântica alegam que se podem torcer o tempo e o espaço, que algo pode surgir do nada e que um gato pode estar vivo e morto ao mesmo tempo. A despeito de essas noções zombarem do senso comum, ninguém tenta proteger estudantes inocentes dessas ideias escandalosas. Por quê?
A teoria da relatividade não enraivece ninguém porque não contradiz nenhuma de nossas crenças queridas. Para a maioria das pessoas, o fato de o espaço e o tempo serem absolutos ou relativos não tem a mínima importância. Se você acha possível torcer o espaço e o tempo, tudo bem, fique à vontade. Vá em frente e os torça. Qual a importância disso para mim? Em contrapartida, Darwin nos privou de nossas almas. Se você realmente entende a teoria da evolução, vai aceitar que não existe alma. Essa é uma ideia terrível não só para cristãos e muçulmanos devotos como também para muitas pessoas antigas não adeptas de um dogma religioso claro, mas que, não obstante, querem acreditar que cada humano possui uma essência individual eterna que permanece imutável no decorrer da vida e que pode sobreviver, intacta, até mesmo à morte.
O significado literal da palavra “individual” é o de “algo que não pode ser dividido”. O fato de eu ser “in-dividual”, ou seja “in-divisível”, implica que meu verdadeiro eu é uma entidade holística, e não uma junção de partes separadas. Essa essência indivisível continua a existir em todos os momentos sem perder ou absorver nada. Meu corpo e meu cérebro passam por um processo constante de mudança, enquanto os neurônios disparam, os hormônios fluem e os músculos se contraem. Minha personalidade, meus desejos e meus relacionamentos não são estáticos e podem transformar-se completamente durante anos e décadas. Mas, acima disso, eu permaneço a mesma pessoa desde o nascimento até a morte — e, com sorte, além da morte também.
Infelizmente, a teoria da evolução rejeita a ideia de que o meu eu verdadeiro é uma essência indivisível, imutável e potencialmente eterna. De acordo com a teoria da evolução, todas as entidades biológicas — de elefantes e carvalhos a células e moléculas de DNA — são compostas de partes menores e mais simples que incessantemente se combinam e se separam. Elefantes e células evoluíram gradativamente, como resultado de novas combinações e divisões. Algo que não pode ser dividido ou mudado não pode ter vindo a existir por intermédio da seleção natural.
O olho humano, por exemplo, é um sistema extremamente complexo formado por numerosas partes menores, como o cristalino, a córnea e a retina. O olho não surgiu do nada já completo com todos esses componentes. Ele evoluiu em passos minúsculos no decorrer de milhões de anos. Nosso olho é muito semelhante ao olho do Homo erectus, que viveu 1 milhão de anos atrás. É um tanto menos semelhante ao olho do Australopithecus, que viveu há 5 milhões de anos. É muito diferente do olho do Dryolestes, que viveu há 150 milhões de anos. E parece não ter nada em comum com os organismos unicelulares que habitavam nosso planeta centenas de milhões de anos atrás.
Mas até mesmo organismos unicelulares dispunham de minúsculas organelas que permitiam aos microrganismos distinguir a luz da escuridão e se mover em direção a uma ou a outra. O caminho que levou de sensores tão arcaicos ao olho humano foi longo e sinuoso, porém, se você dispõe de uma reserva de centenas de milhões de anos, certamente poderá percorrê-lo por inteiro, passo a passo. Poderá fazer isso porque o olho é composto de muitas partes diferentes. Se a cada algumas gerações uma pequena mutação alterasse levemente uma dessas partes — digamos, a córnea se tornasse um pouco mais encurvada —, após milhões de gerações essas mudanças poderiam resultar num olho humano. Se o olho fosse uma entidade holística, desprovida de quaisquer partes, nunca poderia evoluir por seleção natural.
É por isso que a teoria da evolução não pode aceitar o conceito de alma, se por “alma” entendemos algo indivisível, imutável e potencialmente eterno. Tal entidade não poderia resultar de uma evolução passo a passo. A seleção natural pode produzir um olho humano porque os olhos têm partes. Mas a alma não. Se a alma do Sapiens evoluísse passo a passo a partir da alma do Erectus, quais exatamente seriam esses passos? Há alguma parte da alma que é mais desenvolvida no Sapiens do que no Erectus? Mas a alma não tem partes.
Pode-se alegar que as almas humanas não evoluem; um belo dia elas aparecem em toda a completude de sua glória. Porém, quando é que esse belo dia aconteceu? Quando olhamos bem de perto a evolução do gênero humano, é embaraçosamente difícil encontrá-lo. Todo humano passa a existir como resultado da inseminação de um óvulo feminino por um esperma masculino. Pense no primeiro bebê a possuir uma alma. Ele era muito semelhante a seu pai e a sua mãe, exceto pelo fato de ter uma alma, e os pais não. Nosso conhecimento de biologia pode explicar o nascimento de um bebê cuja córnea seja ligeiramente mais curva do que a córnea de seus pais. Uma pequena mutação num único gene poderia acarretar isso. Mas a biologia não poderia explicar o nascimento de um bebê que possui uma alma eterna de pais que não têm nem sombra de uma. Será que uma única mutação, ou mesmo diversas mutações, seria suficiente para dar a um animal uma essência infensa a quaisquer mudanças, inclusive a morte?
Portanto, a existência de almas não pode se encaixar na teoria da evolução. Evolução quer dizer mudança, e ela é incapaz de produzir entidades perenes. De uma perspectiva evolutiva, o que mais próximo temos de uma essência humana é nosso DNA , e a molécula de DNA é um veículo de mutação, e não o trono da eternidade. Isso aterroriza muita gente, que prefere rejeitar a teoria da evolução a desistir de suas almas.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: uma breve história do amanhã

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