Nando
aquela manhã foi chamado cedo ao gabinete de d. Anselmo. Não era,
felizmente, o Xingu.
— Você
acha, meu filho — disse d. Anselmo —, que o comunismo está
realmente tomando conta de nossa terra?
— Por
que é que o senhor pergunta? Houve alguma coisa que trouxesse o
problema à sua atenção?
— Não
é coisa, Nando, é aquele major do Exército que comunga todos os
dias, que já tem me falado no assunto e que hoje ultrapassou todos
os limites do razoável no seu zelo anticomunista. Francamente!
— O
tal do major Ibiratinga, não é? — disse Nando. — O que é que
ele queria do senhor?
— Responda
você antes — disse d. Anselmo —: o comunismo vai ou não tomar
conta da nossa terra?
— Parece
que o Partido está crescendo — disse Nando. — Pelo menos
vegetativamente. O senhor sabe, d. Anselmo, é coisa animadora dizer
à gente pobre que vai ser distribuído entre todos o dinheiro que
hoje está nas mãos de alguns. Esta é a imagem popular do
comunismo.
— Mas
não dava — disse d. Anselmo.
— Como?
— O
dinheiro não dava.
— Do
ponto de vista de doutrinação isto é pormenor, d. Anselmo. A
técnica deles é prometer aos humildes o Reino deste mundo. D.
Anselmo começou a andar pela sala, nervoso.
— Nossa
“técnica”, como diz você, mas pelo avesso. Nós somos mais
realistas. Nós prometemos o dinheiro do espírito, o Reino dos Céus,
que dá para todos. Aliás, o major fala da Igreja em tom respeitoso
mas duro. “É preciso que a Igreja não perca o seu caráter
sagrado. Ela não deve dar explicações, bater boca com o comunismo.
São Jorge não discutia com o dragão. Comunismo se extermina, como
o exterminaram os espanhóis.” E o major ainda disse com um
suspiro: “Mas os espanhóis tiveram a Inquisição! Daí a
identificarem o demônio nas suas roupas atuais.” Quando eu me
recusei terminantemente ao que propunha o major, ele ainda me disse:
“Cuidado, d. Anselmo, o Partido Comunista está tentando se
apresentar ao povo como a Igreja sem o outro mundo.” Você acha que
os comunistas são perigosos assim, Nando?
— Eu
confesso, d. Anselmo, que não tenho dedicado maior atenção ao
problema social no nosso estado e no Brasil em geral. Daí minha
inapetência à discussão com os marxistas. Eles têm a mania, d.
Anselmo, de explicar tudo pelo econômico, o que é parcial e muito
tedioso. Refugam a luta verdadeira, compreendeu? A gente diz, com
Newman, que a repetição dos pecados humanos é que retarda a
construção, na Terra, de uma Jerusalém que reflita a outra, e eles
viram para a gente e dizem: “Sabe qual foi a produção de açúcar
este ano? Sabe quanto rendeu? E sabe que parte do total foi paga aos
camponeses que produziram o açúcar?” É claro que se pode colher
uma imagem de pecado — e pecado de usura, tão verberado pela Santa
Madre Igreja — no fato de uma boa safra de açúcar não ter
melhorado a situação do lavrador — eles só dizem camponês, d.
Anselmo — que plantou e colheu açúcar. Mas fazem uma escamoteação
com o pecado. Pecado é o sistema vigente. Compreendeu, d. Anselmo? O
pecado é também comunizado . A alma do indivíduo acabou. Existem
só dois pecados: o pecado ativo e glutão dos que se aproveitam do
regime vigente e o pecado negativo e abjeto dos que não se rebelam
contra tal coisa. Um crime passional na classe rica demonstra a
decadência, a ociosidade da classe. Entre os pobres ele demonstra a
exasperação a que leva a miséria. Culpa, culpa pessoal,
intransferível não existe.
— Senhor!
Nando
se animou com a própria explanação.
— Existiria
mesmo aí, d. Anselmo, um fascinante debate a estabelecer com os
comunistas, se eles debatessem alguma coisa fora do econômico. Com o
ardor que sem dúvida os impele e com a cólera até certo ponto
justa que nutrem contra nossos tempos, seria de se perguntar se não
desejam, eventualmente, restituir ao pecado o seu esplendor.
— Esplendor
do pecado, padre Nando?
— Na
seguinte acepção: imaginemos como possível um mundo socialmente
tão justo, tão perfeito que nada do fundamental falte a ninguém. O
pecado não retombaria então com terrível fragor sobre o indivíduo?
Não ganharia, na sua gratuidade, uma espécie de negra auréola?
— Sim,
sim — disse d. Anselmo. — Interessante, interessante. Mas abra
bem os olhos e os ouvidos quando andar por aí. Preciso de argumentos
contra o major Ibiratinga. Eu sei que esse cacete volta a me
procurar. Jesus! Quando ele fala parece que os russos já andam pelos
telhados do mosteiro.
— Mas
afinal, d. Anselmo, o que é que o major queria?
— Uma
coisa impossível — disse d. Anselmo.
— Mas...
— Domine
a sua curiosidade, padre Nando. O major pediu o impossível e eu lhe
disse que era impossível. Retirou-se respeitoso mas trombudo. Se ele
voltar à carga, debateremos o assunto em miúdos.
Antonio
Callado, in Quarup
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