segunda-feira, 12 de agosto de 2019

O convidado

O velho esperava na estação.
O doutorzinho fez boa viagem? — esmagou-me no abraço de gigante.
O trole de aros azuis na estrada poeirenta.
Aqui estamos — e apontou o telhado escondido entre os cedros.
No portão rodearam o carro três cães ferozes. O velho estalou o chicote.
Ninguém entra com esses diabos soltos!
Abriu o vinho tinto e, enquanto bebíamos, alisava a pastinha de cabelos brancos na testa — os dedos mais grossos nas pontas. Ao apanhar outra garrafa, esqueceu os tamancos sob a cadeira de palha. Vacilou o soalho a seus pés, no guarda-louça as xícaras balouçaram nos ganchos. Entre cristais e estatuetas, dois objetos estranhos: aqui um sapato, ali um lenço manchado de sangue!
Cabeça baixa, Isaura colocou a travessa de macarrão na mesa.
Não cumprimenta a visita?
Ergueu os olhos até a minha gravata, nenhuma palavra. No almoço bebemos, Adão e eu, mais duas garrafas. Por vezes ela cruzava a porta da cozinha.
O velho soltou o botão da camisa sem colarinho — subia e descia o gogó a cada trago.
Enrolava os bigodes, e depois dê beber, sugava as gotas ali pendentes. Olhou o relógio no bolso do colete, pediu licença: negócio urgente na vila.
O doutor não é de cerimônia.
Questão de me deixar à vontade e, no caso de sono, abriu a porta do quarto, a enorme cama de colcha vermelha.
Lá se foi no trole, entre o latido alegre dos cães. Isaura almoçara de pé ao lado do fogão, agora lavava a louça. Não me olhou na porta da cozinha.
O velho Adão... Meu pai já dizia “O velho Adão”. Mais forte que todos nós.
Você ouviu resposta? Nem eu.
A senhora não sente falta da cidade? Da gente na rua, das amigas, das vitrinas iluminadas?
Se não escutava, a mão enxugou; os talheres mais devagar. Embora soubesse da visita, o vestidinho simples, a barra da saia aparecendo. Muito pálida sob a cabeleira negra, no braço redondo a penugem dourada. Não se pintara, nem usava brinco. Reparei nos dedos amarelos.
Aceita um cigarro?
Fechava os olhos ao engolir a fumaça.
Não quer que eu fume. Sem o cigarro não sei o que era de mim.
A senhora vive muito só.
Nem sempre. Às vezes traz um convidado.
Deixa-o comigo, vai até a vila. Cuidar de negócio...
Sabe que não é verdade?
Não diga.
Uma casa de mulheres. Da Olga Paixão. Me fez presente do vestido dela — e sabe que é bonitinho?
Mão trêmula ao lhe acender outro cigarro.
Gostaria de vê-lo.
Que eu o vestisse para o Emílio. Depois para o Artur. E para o doutor também.
Sacudiu os longos cabelos de luto.
Ainda rio... Bem triste, sabe?
A senhora é infeliz, Dona Isaura.
Sempre assim. Chega o amigo — “Um café, Isaura” ou — “Quem veio almoçar”.
O carro atrelado e, com a eterna desculpa, vai para a Olga Paixão.
Tudo intriga, Dona Isaura.
Dois ou três mosquitos pousavam-lhe no ombro sacudido de arrepios.
Com frio?
Já passa. É assim, no começo...
A louça enxuta na mesa.
Não quer sentar?
Sentamos no sofá da sala, dali podia ver a colcha purpurina. Com a mão espantava os mosquitos; curioso me deixassem em paz, a ela só atormentando. Jogava o cabelo para trás, o vestido manchado nos ombros.
Sentem o sangue.
É o...
Sim, o chicote.
Adão recolhia o convidado no quarto, na mesma cama do casal.
Quer demais um filho. Acha que não pode.
Está velho.
Irrompia de súbito, chicoteava a mulher, açulava os cachorros contra o hóspede.
O lenço e o sapato? No guarda-louça?
O lenço é do Emílio, o sapato do Artur. O senhor entende? Até que lhe dê um filho. Quer de mim o que não posso.
É moça, Dona Isaura.
Por que dar senhoria — mais velha nove, dez anos?
Não é ele que não pode ter o filho. Na força do homem com aquela idade. A culpa é minha...
Consultei o médico na cidade.
E não contou?
Ele acredita? Se fosse verdade... Depois de tudo que fez. Eu sei quando. Os cachorros soltos...
Tudo estivesse acabado — quase arrancaram a mão de Emílio. Não me viu descendo do trole? Comecei que não era como os outros. Apontou a janela: entre nuvem de pó faiscavam aros azuis na estrada.
Esperei o gigante na varanda. Grande palmada no ombro, se eu me dava bem com Isaura?
Nada do trem. Esta noite dorme aqui.
Ao jantar bebemos três ou quatro garrafas. Eu mais do que ele. Adão indicou a porta no corredor.
O quarto do doutorzinho. Ao lado o de Isaura. Eu durmo no paiol. Muito quente a noite. Lá é que estou bem. Não acordo antes do galo cantar.
Cambaleava pelo pátio. Prendia os diabos negros.
Isaura fechou a porta e fomos para a sala. Toda de cetim preto, boca pintada, brinco dourado. Falando sem parar, eu ouvia lá no paiol a tosse do velho, o arrastar das correntes em volta da casa. Não pude mais e, agarrando-lhe a cabeça nas mãos, beijei-a demoradamente na boca. Olhos abertos, não respondeu ao beijo.
Não se apresse, bem. Temos a noite inteira.
Dalton Trevisan, in Novelas nada exemplares

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