O
velho esperava na estação.
— O
doutorzinho fez boa viagem? — esmagou-me no abraço de gigante.
O
trole de aros azuis na estrada poeirenta.
— Aqui
estamos — e apontou o telhado escondido entre os cedros.
No
portão rodearam o carro três cães ferozes. O velho estalou o
chicote.
— Ninguém
entra com esses diabos soltos!
Abriu
o vinho tinto e, enquanto bebíamos, alisava a pastinha de cabelos
brancos na testa — os dedos mais grossos nas pontas. Ao apanhar
outra garrafa, esqueceu os tamancos sob a cadeira de palha. Vacilou o
soalho a seus pés, no guarda-louça as xícaras balouçaram nos
ganchos. Entre cristais e estatuetas, dois objetos estranhos: aqui um
sapato, ali um lenço manchado de sangue!
Cabeça
baixa, Isaura colocou a travessa de macarrão na mesa.
— Não
cumprimenta a visita?
Ergueu
os olhos até a minha gravata, nenhuma palavra. No almoço bebemos,
Adão e eu, mais duas garrafas. Por vezes ela cruzava a porta da
cozinha.
O
velho soltou o botão da camisa sem colarinho — subia e descia o
gogó a cada trago.
Enrolava
os bigodes, e depois dê beber, sugava as gotas ali pendentes. Olhou
o relógio no bolso do colete, pediu licença: negócio urgente na
vila.
— O
doutor não é de cerimônia.
Questão
de me deixar à vontade e, no caso de sono, abriu a porta do quarto,
a enorme cama de colcha vermelha.
Lá
se foi no trole, entre o latido alegre dos cães. Isaura almoçara de
pé ao lado do fogão, agora lavava a louça. Não me olhou na porta
da cozinha.
— O
velho Adão... Meu pai já dizia “O velho Adão”. Mais forte que
todos nós.
Você
ouviu resposta? Nem eu.
— A
senhora não sente falta da cidade? Da gente na rua, das amigas, das
vitrinas iluminadas?
Se
não escutava, a mão enxugou; os talheres mais devagar. Embora
soubesse da visita, o vestidinho simples, a barra da saia aparecendo.
Muito pálida sob a cabeleira negra, no braço redondo a penugem
dourada. Não se pintara, nem usava brinco. Reparei nos dedos
amarelos.
— Aceita
um cigarro?
Fechava
os olhos ao engolir a fumaça.
— Não
quer que eu fume. Sem o cigarro não sei o que era de mim.
— A
senhora vive muito só.
— Nem
sempre. Às vezes traz um convidado.
Deixa-o
comigo, vai até a vila. Cuidar de negócio...
Sabe
que não é verdade?
— Não
diga.
— Uma
casa de mulheres. Da Olga Paixão. Me fez presente do vestido dela —
e sabe que é bonitinho?
Mão
trêmula ao lhe acender outro cigarro.
— Gostaria
de vê-lo.
— Que
eu o vestisse para o Emílio. Depois para o Artur. E para o doutor
também.
Sacudiu
os longos cabelos de luto.
— Ainda
rio... Bem triste, sabe?
— A
senhora é infeliz, Dona Isaura.
— Sempre
assim. Chega o amigo — “Um café, Isaura” ou — “Quem veio
almoçar”.
O
carro atrelado e, com a eterna desculpa, vai para a Olga Paixão.
— Tudo
intriga, Dona Isaura.
Dois
ou três mosquitos pousavam-lhe no ombro sacudido de arrepios.
— Com
frio?
— Já
passa. É assim, no começo...
A
louça enxuta na mesa.
— Não
quer sentar?
Sentamos
no sofá da sala, dali podia ver a colcha purpurina. Com a mão
espantava os mosquitos; curioso me deixassem em paz, a ela só
atormentando. Jogava o cabelo para trás, o vestido manchado nos
ombros.
— Sentem
o sangue.
— É
o...
— Sim,
o chicote.
Adão
recolhia o convidado no quarto, na mesma cama do casal.
— Quer
demais um filho. Acha que não pode.
Está
velho.
Irrompia
de súbito, chicoteava a mulher, açulava os cachorros contra o
hóspede.
— O
lenço e o sapato? No guarda-louça?
— O
lenço é do Emílio, o sapato do Artur. O senhor entende? Até que
lhe dê um filho. Quer de mim o que não posso.
— É
moça, Dona Isaura.
Por
que dar senhoria — mais velha nove, dez anos?
— Não
é ele que não pode ter o filho. Na força do homem com aquela
idade. A culpa é minha...
Consultei
o médico na cidade.
— E
não contou?
— Ele
acredita? Se fosse verdade... Depois de tudo que fez. Eu sei quando.
Os cachorros soltos...
Tudo
estivesse acabado — quase arrancaram a mão de Emílio. Não me viu
descendo do trole? Comecei que não era como os outros. Apontou a
janela: entre nuvem de pó faiscavam aros azuis na estrada.
Esperei
o gigante na varanda. Grande palmada no ombro, se eu me dava bem com
Isaura?
— Nada
do trem. Esta noite dorme aqui.
Ao
jantar bebemos três ou quatro garrafas. Eu mais do que ele. Adão
indicou a porta no corredor.
— O
quarto do doutorzinho. Ao lado o de Isaura. Eu durmo no paiol. Muito
quente a noite. Lá é que estou bem. Não acordo antes do galo
cantar.
Cambaleava
pelo pátio. Prendia os diabos negros.
Isaura
fechou a porta e fomos para a sala. Toda de cetim preto, boca
pintada, brinco dourado. Falando sem parar, eu ouvia lá no paiol a
tosse do velho, o arrastar das correntes em volta da casa. Não pude
mais e, agarrando-lhe a cabeça nas mãos, beijei-a demoradamente na
boca. Olhos abertos, não respondeu ao beijo.
— Não
se apresse, bem. Temos a noite inteira.
Dalton
Trevisan, in Novelas nada exemplares
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