Dobrando
a esquina, na primeira sombra de árvore os dois se beijavam. Cecília
tinha a ponta dos cabelos ainda molhados. Enfermeira, lidava no
hospital até às seis horas. Banho de chuveiro, jantava e corria ao
seu encontro. Às vezes trescalava a toalha úmida. Paulo a beijava
com tanta aflição, por pouco engoliu o brinco de pérola falsa. Na
rua até às dez horas, fechado o portão.
Ruazinha
escura, encostados ao muro, beijavam-se. Ele a ensinou: boca pequena
e dócil, a descerrar os dentes, a titilar a língua. Um dentinho
saliente e, se o beijo de muito amor, saía gota de sangue.
De
uma a outra sombra (qual o nome daquela árvore tão negra?), em cada
uma se beijavam. Não se davam as mãos entre duas árvores, nunca
ela lhe pegou no braço. Sem rumo, cruzavam apressados as ruas
iluminadas.
Viam-se
uma vez por semana, dia de folga do hospital. Em sandálias o dia
inteiro, assistia os doentes e, das sete às dez da noite,
acompanhava-o de salto alto. O moço esperava na esquina: ligeira,
apesar de gorda, nos últimos passos corria ofegante.
Quando
chovia, ela fechava a sombrinha, conchegados sob o guarda-chuva de
Paulo.
Rodavam
entre as sombras, sem poder encostar-se às paredes. Mal seguro, o
guarda-chuva os descobria a cada beijo.
Encontros
noturnos e, seis meses depois, ao vê-la uma tarde na rua, achou-a
mais velha e mais gorda. Espantou-se dos dedos lidos, não tomava
sol, fechada no hospital. No branco rosto leve mancha de buço. De
noite, à sombra da árvore, voltou a ser querida, no dentinho um
vespeiro de beijos trabalhava o mel.
Bastante
perigo nas ruas. Acendia-se a janela, uma bruxa de papelotes bradava
se não tinham vergonha. Velho, não acendia a luz, espiando bem
quieto. Os nichos ao longo dos muros disputados por outros casais.
Hora do cinema, passava gente.
No
meio do quarteirão, cada um vigiando uma das esquinas. Passos ao
longe, separavam-se. Ela arrumava os cabelos. Paulo enfiava a mão no
bolso. Os outros chegavam-se devagar, olhando muito. Cecilia baixava
o rosto. Ele falava — a única vez que falava.
Ah,
e os faróis dos carros? Então escondia-lhe o rosto na sombra. Algum
espião surgia na esquina, obrigados a sair para outra rua.
Impossíveis os bancos de praça, por causa dos vagabundos; além do
mais, os malditos guardiões.
O
assunto, quando passava alguém, era o céu. “Esta noite não tem
estrela” — dizia a moça. Ele olhava o céu aceso de janelas.
Assim descobriu a miopia de Cecília. Para ela no céu não mais que
a lua.
Certas
noites erravam mais de uma hora até o primeiro beijo. Contra o muro
a agarrava com tal fúria, que ela gemia e, ao separarem-se, tinha de
segurá-la pelo braço, bem tonta. Podia beijar-lhe a boca, o nariz,
os olhos, menos a orelha, cócega demais.
Passaram-se
meses, um ano quem sabe. Paulo começou a brigar com ela, só dizia
não.
Cecília
chorava e, ao esquecer o lenço, ele não emprestava o seu: devia
enxugar as lágrimas na manga do casaquinho. Mais de uma noite
inteira sem tocá-la, os dois marchando sem descanso debaixo das
árvores.
Aconteceu
uma noite.
— Agora
tem de casar. Você tem de.
Primeira
vez a mão pesou no braço.
— Por
favor. Depressa não posso.
— Está
melhor?
— Puxa,
foi uma dor...
Paulo
reparou nas duas sombras. Uma, albatroz selvagem da noite, abrindo
asas na glória de arremeter voo. A outra, gorda e grávida, um bule
de chá.
Dalton
Trevisan, in
Novelas nada exemplares
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