quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Chegou a minha vez!

Não foi difícil achar o endereço da madama Carlota e essa facilidade lhe pareceu bom sinal. O apartamento térreo ficava na esquina de um beco e entre as pedras do chão crescia capim — ela o notou porque sempre notava o que era pequeno e insignificante. Pensou vagamente enquanto tocava a campainha da porta: capim é tão fácil e simples. Tinha pensamentos gratuitos e soltos porque embora à toa possuía muita liberdade interior.
A própria madama Carlota atendeu-a, olhou-a com naturalidade e disse:
O meu guia já tinha me avisado que você vinha me ver, minha queridinha. Como é mesmo o seu nome? Ah, é? É muito lindo. Entre, meu benzinho. Tenho uma cliente na salinha dos fundos, você espera aqui. Aceita um cafezinho, minha florzinha?
Macabéa sentou-se um pouco assustada porque faltavam-lhe antecedentes de tanto carinho. E bebeu com cuidado pela própria frágil vida, o café frio e quase sem açúcar. Enquanto isso olhava com admiração e respeito a sala onde estava. Lá tudo era de luxo. Matéria plástica amarela nas poltronas e sofás. E até flores de plástico. Plástico era o máximo. Estava boquiaberta.
Afinal saiu dos fundos da casa uma moça com olhos muito vermelhos e madama Carlota mandou Macabéa entrar. (Como é chato lidar com fatos, o cotidiano me aniquila, estou com preguiça de escrever esta história que é um desabafo apenas. Vejo que escrevo aquém e além de mim. Não me responsabilizo pelo que agora escrevo). Continuemos, pois, embora com esforço: madama Carlota era enxundiosa, pintava a boquinha rechonchuda com vermelho vivo e punha nas faces oleosas duas rodelas de ruge brilhoso. Parecia um bonecão de louça meio quebrado. (Vejo que não dá para aprofundar esta história. Descrever me cansa.)
Não tenha medo de mim, sua coisinha engraçadinha. Porque quem está ao meu lado, está no mesmo instante ao lado de Jesus. E apontou o quadro colorido onde havia exposto em vermelho e dourado o coração de Cristo.
Eu sou fã de Jesus. Sou doidinha por Ele. Ele sempre me ajudou. Olha, quando eu era mais moça tinha bastante categoria para levar vida fácil de mulher. E era fácil mesmo, graças a Deus. Depois, quando eu já não valia muito no mercado, Jesus sem mais nem menos arranjou um jeito de eu fazer sociedade com uma coleguinha e abrimos uma casa de mulheres. Aí eu ganhei dinheiro e pude comprar este apartamentozinho térreo. Larguei a casa de mulheres porque era difícil tomar conta de tantas moças que só faziam era querer me roubar. Você está interessada no que eu digo?
Muito.
Pois faz bem porque eu não minto. Seja também fã de Jesus porque o Salvador salva mesmo. Olhe, a polícia não deixa pôr cartas, acha que estou explorando os outros, mas, como eu lhe disse, nem a polícia consegue desbancar Jesus. Você notou que Ele até me conseguiu dinheiro para ter mobília de grã-fino?
Sim senhora.
Ah, então você também acha, não é? Pelo que vejo você: é inteligente, ainda bem, porque a inteligência me salvou. Madama Carlota enquanto falava tirava de uma caixa aberta um bombom atrás do outro e ia enchendo a boca pequena. Não ofereceu nenhum a Macabéa. Esta, que, como eu disse, tinha tendência a notar coisas pequenas, percebeu que dentro de cada bombom mordido havia um líquido grosso. Não cobiçou o bombom pois aprendera que as coisas são dos outros.
Eu era pobre, comia mal, não tinha roupas boas. Então caí na vida. E gostei porque sou uma pessoa muito carinhosa, tinha carinho por todos os homens. Além do mais, na zona era divertido porque havia muita conversa entre as coleguinhas. Nos éramos muito unidas e só de vez em quando eu me atracava com uma. Mas isso também era bom, porque eu era muito forte e gostava de bater, de puxar cabelos e morder. Por falar em morder, você não pode imaginar que dentes lindos eu tinha; todos branquinhos e brilhantes. Mas se estragaram tanto que hoje uso dentadura postiça. Você acha que se nota que são postiços?
Não senhora.
Olhe, eu era muito asseada e não pegava doença ruim. Só uma vez me caiu uma sífilis mas a penicilina me curou. Eu era mais tolerante do que as outras porque sou bondosa e afinal estava dando o que era meu. Eu tinha um homem de quem eu gostava de verdade e que eu sustentava porque ele era fino e não queria se gastar em trabalho nenhum. Ele era o meu luxo e eu até apanhava dele. Quando ele me dava uma surra eu via que ele gostava de mim, eu gostava de apanhar. Com ele era amor, com os outros eu trabalhava. Depois que ele desapareceu, eu, para não sofrer, me divertia amando mulher. O carinho de mulher é muito bom mesmo, eu até lhe aconselho porque você é delicada demais para suportar a brutalidade dos homens e se você conseguir uma mulher vai ver como é gostoso, entre mulheres o carinho é muito mais fino. Você tem chance de ter uma mulher?
Não senhora.
É que também você nem se enfeita. Quem não se enfeita, por si mesma se enjeita. Ai que saudades da zona! Eu peguei o melhor tempo do Mangue que era frequentado por verdadeiros cavalheiros. Além do preço fixo, eu muitas vezes ganhava gorjeta. Ouvi dizer que o Mangue está acabando, que a zona agora só tem uma meia dúzia de casas. Em meu tempo havia umas duzentas. Eu ficava em pé encostada na porta vestindo só calcinha e sutiã de renda transparente. Depois, quando eu já estava ficando muito gorda e perdendo os dentes, é que me tornei caftina. Você sabe o que quer dizer caftina? Eu uso essa palavra porque nunca tive medo de palavras. Tem gente que se assusta com o nome das coisas. Vocezinha tem medo de palavras, benzinho?
Tenho, sim senhora.
Então vou me cuidar para não escapulir nenhum palavrão, fique sossegada. Ouvi dizer que o Mangue tem um cheiro insuportável. No meu tempo a gente punha incenso queimando para dar um ar limpo na casa. Até tinha cheiro de igreja. E tudo era muito respeitoso e com muita religião. Quando eu era mulher-dama já ia juntando meu dinheirinho, dando porcentagem à chefa, é claro. De vez em quando havia tiros mas nada comigo. Minha florzinha, estou te aborrecendo com minha história? Ah, não? Você tem paciência de esperar pelas cartas?
Tenho, sim senhora.
Então madama Carlota contou-lhe que lá no Mangue, no seu cubículo, havia enfeites lindos nas paredes.
Você sabe, meu amor, que cheiro de homem é bom? Faz bem à saúde. Você já sentiu cheiro de homem?
Não senhora.
Finalmente, depois de lamber os dedos, madama Carlota mandou-a cortar as cartas com a mão esquerda, ouviu minha adoradinha?
Macabéa separou um monte com a mão trêmula: pela primeira vez ia ter um destino. Madama Carlota (explosão) era um ponto alto na sua existência. Era o vórtice de sua vida e esta se afunilara toda para desembocar na grande dama cujo ruge brilhante dava-lhe à pele arregalou os olhos.
Mas, Macabeazinha, que vida horrível a sua! Que meu amigo Jesus tenha dó de você, filhinha! Mas que horror!
Macabéa empalideceu: nunca lhe ocorrera que sua vida fora tão ruim.
Madama acertou tudo sobre o seu passado, até lhe disse que ela mal conhecera pai e mãe e que fora criada por uma parente muito madrasta má. Macabéa espantou-se com a revelação: até agora sempre julgara que o que a tia lhe fizera era educá-la para que ela se tornasse uma moça mais fina. Madama acrescentou:
Quanto ao presente, queridinha, está horrível também. Você vai perder o emprego e já perdeu o namorado, coitada de vocezinha. Se não puder, não me pague a consulta, sou madama de recursos. Macabéa, pouco habituada a receber de graça, recusou a dádiva mas com o coração todo grato.
E eis que (explosão) de repente aconteceu: o rosto da madama se acendeu todo iluminado:
Macabéa! Tenho grandes notícias para lhe dar! Preste atenção, minha flor, porque é de maior importância o que vou lhe dizer. É coisa muito séria e muito alegre: sua vida vai mudar completamente! E digo mais: vai mudar a partir do momento em que você sair da minha casa! Você vai se sentir outra. Fique sabendo, minha florzinha, que até o seu namorado vai voltar e propor casamento, ele está arrependido! E seu chefe vai lhe avisar que pensou melhor e não vai mais lhe despedir.
Macabéa nunca tinha tido coragem de ter esperança. Mas agora ouvia a madama como se ouvisse uma trombeta vinda dos céus
enquanto suportava uma trombeta vinda dos céus — Enquanto suportava uma forte taquicardia. Madama tinha razão: Jesus enfim prestava atenção nela. Seus olhos estavam arregalados por uma súbita voracidade pelo futuro (explosão). E eu também estou com esperança enfim.
E tem mais! Um dinheiro grande vai lhe entrar pela porta adentro em horas da noite trazido por um homem estrangeiro. Você conhece algum estrangeiro?
Não senhora — disse Macabéa já desanimando.
Pois vai conhecer. Ele é alourado e tem olhos azuis ou verde ou castanhos ou pretos. E se não fosse porque você gosta de seu exnamorado, esse gringo ia namorar você. Não! Não! Não! Agora estou vendo outra coisa (explosão) e apesar de não ver muito claro estou também ouvindo a voz de meu guia: esse estrangeiro parece se chamar Hans, e é ele quem vai se casar com você! Ele tem muito dinheiro, todos os gringos são ricos. Se não me engano, e nunca me engano, ele vai lhe dar muito amor e você, minha enjeitadinha, vai se vestir com veludo e cetim e até casaco de pele vai ganhar!
Macabéa começou (explosão) a tremilicar toda por causa do lado penoso que há na excessiva felicidade. Só lhe ocorreu dizer:
Mas casaco de pele não precisa no calor do Rio...
Pois vai ter só para se enfeitar. Faz tempo não boto cartas tão boas. E sou sempre sincera: por exemplo, acabei de ter a franqueza de dizer para aquela moça que saiu daqui que ela ia ser atropelada, ela até chorou muito, viu os olhos avermelhados dela? E agora vou lhe dar um feitiço que você deve guardar dentro deste sutiã que quase não tem seio, coitada, bem em contacto com a pele. Você não tem busto mas vai engordar e vai ganhar corpo. Enquanto você não engordar, ponha dentro do sutiã chumaços de algodão para fingir que tem. Olha, minha queridinha, esse feitiço também sou obrigada por Jesus a lhe cobrar porque todo o dinheiro que eu recebo das cartas eu dou para um asilo de crianças, Mas se não puder, não pague, só venha e pagar quando tudo acontecer.
Não, eu lhe pago, a senhora acertou tudo, a senhora é... Estava meio bêbada, não sabia o que pensava, parecia que lhe tinham dado um forte cascudo na cabeça de ralos cabelos, sentia-se tão desorientada como se lhe tivesse acontecido uma infidelidade. Sobretudo estava conhecendo pela primeira vez o que os outros chamavam de paixão: estava apaixonada por Hans.
E que é que eu faço para ter mais cabelo? – ousou perguntar porque já se sentia outra.
Você está querendo demais. Mas está bem: lave a cabeça com sabão Aristolino, não use sabão amarelo em pedra. Esse conselho eu não cobro.
Até isso? (explosão) bateu-lhe o coração, até mais cabelo?
Esquecera Olímpico e só pensava no gringo: era sorte demais pegar homem de olhos azuis ou verdes ou castanhos ou pretos, não havia como errar, era vasto o campo das possibilidades.
E agora — disse a madama — você vá embora para encontrar seu maravilhoso destino. E mesmo porque tem outra freguesa esperando, demorei demais com você, meu anjinho, mas valeu a pena! Num súbito ímpeto (explosão) de vivo impulso Macabéa, entre feroz e desajeitada, deu um estalado beijo no rosto da madama. E sentiu de novo que sua vida já estava melhorando ali mesmo: pois era bom beijar. Quando ela era pequena, como não tinha a quem beijar, beijava a parede. Ao acariciar ela se acariciava si própria. Madama Carlota havia acertado tudo. Macabéa estava espantada. Só então vira que sua vida era uma miséria. Teve vontade de chorar ao ver o seu lado oposto, ela que, como disse, até então se julgava feliz.
Saiu da casa da cartomante aos tropeços e parou no beco escurecido pelo crepúsculo — crepúsculo que é hora de ninguém. Mas ela de olhos ofuscados como se o último final da tarde fosse mancha de sangue e ouro quase negro. Tanta riqueza de atmosfera a recebeu e o primeiro esgar da noite que, sim, sim, era funda e faustosa. Macabéa ficou um pouco aturdida sem saber se atravessaria a rua pois sua vida já estava mudada. E mudada por palavras — desde Moisés se sabe que a palavra é divina. Até para atravessar a rua ela já era outra pessoa. Uma pessoa grávida de futuro. Sentia em si uma esperança tão violenta como jamais sentira tamanho desespero. Se ela não era mais ela mesma, isso significava uma perda que valia por um ganho. Assim como havia sentença de morte, a cartomante lhe decretara sentença de vida. Tudo de repente era muito e muito e tão amplo que ela sentiu vontade de chorar. Mas não chorou: seus olhos faiscavam como o sol que morria. Então ao dar o passo de descida da calçada para atravessar a rua, o Destino (explosão) sussurrou veloz e guloso: é agora é já, chegou a minha vez!
Clarice Lispector, in A hora da estrela

Nenhum comentário:

Postar um comentário