quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Agora é que são elas - Capítulo 8

1

Vejam bem, quando digo sabedoria, não estou querendo dizer saber como as coisas funcionam. Isso é fácil. Um pouco de não sei quem, um pouco de como é mesmo o nome, e a leitura diária dos jornais, e uma cabeça de segunda imagina que sabe o que está aí. Mas o que se passa, mesmo?
Quem sabe, ficar pasmos seja nosso papel, e isso é tudo.
TUDO que ele sabia fazer por mim era me transformar num número de um de seus contos de magia e maravilha, ora herói, às vezes vilão, pivô da história num bangue-bangue bem vagabundo, desses que a gente já adivinha tudo desde a largada, desde o primeiro tiro, desde o massacre da família do pistoleiro por uma quadrilha de mexicanos, até o duelo final entre o deserto e os sobreviventes.
O caso com Norma Propp começou eu me queixando dessas técnicas do pai.
Como não percebi logo que encontrá-la era (eu não sabia) a variante B da função 9, “herói se apaixona pela filha do pai”?
Contei isso, ela riu, riu, mas riu tanto que seus peitos nus balançavam como maçãs numa macieira chicoteada por uma tempestade.

2

Uma chance em um milhão que eu viesse a me apaixonar por Norma Propp.
O que eu queria da vida não era vida pra ela.
Nem sei, aliás, se cheguei a estar apaixonado por Norma Propp. Afinal, o que é que significa isso? Quem não sabe, no fundo, amor é invenção do coração da mulher, que ela tenta vender para o primeiro que aparecer e o seguinte, e o seguinte, e o seguinte, e assim por diante até aquela cena de sangue num bar da Avenida São João, que só vem para provar, de uma vez por todas, que alguém e ninguém não são iguais, e dali saem para lamber o sangue de suas patas, meditando a próxima vingança. No fundo, toda diferença é insuportável. O ímpar do professor Propp, a gente quer tudo par.
Norma era qualquer coisa assim como uma espécie de enfermeira e secretária do pai. Um dia, num encontro mais violento, no fim do terceiro round, Propp exigiu que eu lhe contasse uma coisa que eu não digo nem pra mim mesmo. Achei um atrevimento, uma absurda invasão dos meus espaços interiores, mesmo vinda da parte de quem vinha, ou por isso mesmo:
Tem uma coisa sobre a qual eu não quero falar, eu insisti.
Propp insistiu. Eu perseverei. Ele reiterou. Eu recalcitrei. Ele fez questão, eu também, e, no calor da luta, comecei a sentir vertigens, calafrios, enjoos, câimbras e ânsias de vômito.
Propp chamou a filha, ela me levou até o banheiro, onde eu despejei no vaso três funções, quatro traumas, e só não saiu aquele dilema porque, bem, por quê?
Te amo, ela disse, enquanto segurava minha cabeça dentro da privada.
Virei a cabeça, olhei para ela e sabia que estava perdido.
Paulo Leminski, in Agora é que são elas

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