terça-feira, 16 de julho de 2019

Quando pôs a mão no trinco - Capítulo 2


Quando pôs a mão no trinco viu que deixara o diário aberto na mesa. ABAIXO O GRANDE IRMÃO lia-se em toda a página, em letras quase visíveis da porta, de tão grandes. Cometera um erro incrivelmente estupido. Percebeu, entretanto, que mesmo no seu pânico não quisera sujar o belo papel creme fechando o caderno sobre a tinta fresca.
Respirou fundo e abriu a porta. Instantaneamente, uma vaga de alívio o dominou. Uma mulher incolor, insignificante, de cabelo ralo e pele encarquilhada, surgiu no vão. Oh, camarada - disse, num gemido soturno - ouvi tua chegada. Achas que podes vir dar uma olhada na minha pia da cozinha? Entupiu…
Era a sra. Parsons, esposa de um vizinho do mesmo andar. (Sra. era termo um tanto antipatizado pelo Partido - o correto era chamar todo mundo de “camarada” - mas com certas mulheres era usado instintivamente.) Teria uns trinta anos, mas parecia muito mais velha. Dava a impressão de ter poeira nas rugas. Winston seguiu-a pelo corredor. Esses consertos amadores eram uma chatice quase diária. A Mansão Vitória era um prédio antigo, construído por volta de 1930, e estava caindo aos pedaços. O reboco vivia caindo às placas das paredes e do forro, os canos arrebentavam com qualquer geada, havia goteiras sempre que nevava um pouco, o sistema de aquecimento em geral funcionava a meio-vapor quando não o fechavam de vez, para economizar combustível. Os concertos, exceto os que os próprios inquilinos pudessem executar, dependiam da sanção de remotos comités, capazes de adiar dois anos a substituição duma vidraça quebrada.
- É só porque o Tom não está - explicou a sra. Parsons vagamente.
O apartamento dos Parsons era maior que o de Winston, e lúgubre de outra maneira. Tudo tinha um aspecto pisado, amassado, como se a casa acabasse de ser visitada por um animal violento. Acessórios esportivos - tacos de hóquei, luvas de boxe, uma bola furada, um par de shorts suados virados pelo avesso - jaziam no soalho, e sobre a mesa havia uma pilha de pratos sujos e de cadernos de exercício, sebentos e orelhudos. Nas paredes viam-se bandeiras escarlates da Liga da Juventude e dos Espiões, e um cartaz tamanho natural do Grande Irmão. Pairava no ar o costumeiro cheiro de repolho cozido, comum a todo o edifício, mas ali misturado com a catinga mais pronunciada de suor - percebia-se isto à primeira cheirada, embora fosse difícil explicar como - de suor de uma pessoa ausente. Noutra sala alguém, com um pente e um pedaço de papel higiênico, estava tentando acompanhar a música militar que ainda saía da teletela.- São as crianças - disse a sra. Parsons, lançando uma olhada apreensiva para a porta. - Não sairam hoje. E naturalmente...Tinha o hábito de interromper as frases no meio. A pia da cozinha estava cheia até quase em cima duma água esverdeada, imunda, que fedia a repolho, mais que nunca. Winston ajoelhou-se e examinou o sifão. Tinha raiva de usar as mãos, e detestava abaixar-se, o que em geral lhe provocava tosse. A sra. Parsons ficou olhando, sem préstimo.
- Naturalmente, se Tom estivesse em casa, consertaria num momento - disse ela. -Ele gosta desses serviços. É tão jeitoso, Tom.
Parsons era colega de Winston no Ministério da Verdade. Era um homem gorducho mas ativo, de estupidez paralisante, uma massa de entusiasmo imbecil - um dêsses servos dedicados e absolutamente fiéis dos quais dependia a estabilidade do Partido, mais do que da Polícia do Pensamento. Aos trinta e cinco fora a contragosto desligado da Liga da Juventude e antes de entrar para ela conseguira ficar nos Espiões um ano além da idade limite. No Ministério, trabalhava num serviço subordinado, para o que não precisava de inteligência, mas por outro lado era figura de proa no Comité Esportivo e em todos os outros comités empenhados na organização de piqueniques e passeatas comunais, demonstrações espontâneas, campanhas de economia e atividades voluntárias em geral. Informava ao interlocutor, com tranquilo orgulho, soltando baforadas do cachimbo, que comparecera ao Centro Comunal todas as noites, nos últimos quatro anos. Um tremendo cheiro de suor, uma espécie de testemunho inconsciente da dureza de sua vida, seguia-o por toda parte, e permanecia no ambiente mesmo depois dele sair.
- Tens uma chave inglesa? - indagou Winston, apalpando a porca do sifão.
- Chave? - exclamou a sra. Parson, tornando-se invertebrada outra vez. - Não sei não. Quem sabe as crianças…
Houve um estrondo de botinas e outro guincho no pente, recordando a presença das crianças na sala de estar. A sra. Parsons trouxe a chave inglesa. Winston soltou a água e com nojo retirou 'o bolo de cabelo humano que entupira o cano. Lavou os dedos da melhor maneira possível na água fria da pia e voltou para a sala.
- Mãos ao ar! - urrou uma voz selvagem. Um menino bonito, de uns nove anos e cara de brigão, surgira por trás da mesa e o ameaçava com uma pistola automática de brinquedo, imitado por sua irmãzinha, de sete, e que empunhava um pedaço de madeira.
Ambos vestiam calções azuis, camisas cinzentas e o lenço vermelho que compunham o uniforme dos Espiões. Winston levantou as mãos sobre a cabeça, mas com mal-estar, tão viciosa era a atitude do garoto, que não lhe parecia pilhéria. - És um traidor! - berrou o menino. - És um ideocriminoso! És um espião eurasiano. Eu te mato, te vaporizo, te mando para as minas de sal!
De repente, puseram-se os dois a saltar em torno dele, berrando “traidor!” e “ideocriminoso!”, a menininha imitando todos os movimentos do irmão. Era um tanto arrepiante, como um brinquedo de filhotes de tigre, que breve serão devoradores de homens. Havia nos olhos do menino uma espécie de ferocidade calculadora, um desejo bastante evidente de esmurrar ou dar um pontapé em Winston, e a consciência de ter quase o tamanho necessário para a agressão. Ainda bem que não brandia uma pistola de verdade, pensou Winston.Os olhos da vizinha saltaram nervosamente de Winston às crianças, e vice-versa. Sob a luz mais forte da sala de estar ele notou com interesse que de fato havia pó nas rugas do seu rosto.
- Ficam tão barulhentos, - disse ela. - Estão desapontados porque não puderam assistir ao enforcamento, é isso. Não tenho tempo para levá-los, e Tom não voltará do serviço a tempo.
- Por que não podemos ir ver o enforcamento? - indagou o menino, num vozeirão.- Quero vê o forcamento! Quero vê o forcamento! - cantarolou a garota, saltitando pelo cômodo.
Deviam ser enforcados aquela noite, no Parque, uns prisioneiros eurasianos, criminosos de guerra. Isso acontecia uma vez por mês e era um grande espetáculo popular. As crianças sempre exigiam que as levassem. Winston despediu-se da sra. Parsons e encaminhou'-se para a porta. Mas ainda não dera seis passos pelo corredor quando um projétil o acertou na nuca, numa pancada muito dolorosa. Foi como se um arame em brasa o tivesse atingido. Girou nos calcanhares a tempo de ver a sra. Parsons arrastando o filho para a sala de estar, enquanto o menino metia no bolso um estilingue.
- Goldstein! - estertorou o menino quando a porta se fechou. O que mais impressionou Winston, contudo, foi o olhar de terror inerme da mulherzinha de cara gris.
De volta ao apartamento, passou rápido diante da teletela e tornou a sentar-se à mesa, ainda esfregando o pescoço. Cessara a música. Substituira-a uma voz militar, que em tom stacccato lia, com gozo brutal, uma descrição dos armamentos da nova Fortaleza Flutuante que acabava de ser ancorada entre a Islândia e as Ilhas Faroe.
Com aquelas horrendas crianças, pensou, essa pobre mulher deve levar uma vida de terror. Dali a um ano, ou dois, começarão a observá-la dia e noite, à cata de sintomas de heterodoxia. Quase todas as crianças eram horríveis. O pior de tudo é que, com auxílio de organizações tais como os Espiões, eram sistematicamente transformadas em pequenos selvagens incontroláveis, e no entanto nelas não se produzia qualquer tendência de se rebelar contra a disciplina do Partido. Ao contrário, adoravam o Partido, e tudo quanto tinha ligação com ele. As canções, as procissões, as bandeiras, as caminhadas. a ordem unida com fusis de madeira, berrar palavras de ordem, adorar o Grande Irmão - era para elas uma espécie de jogo formidável. Toda sua ferocidade era posta para fora, dirigida contra os inimigos do Estado, contra os forasteiros, traidores, sabotadores, ideocriminosos. Era quase normal que as pessoas de mais de trinta tivessem medo aos próprios filhos. E com fartos motivos, pois rara era a semana em que o Times não publicasse um tópico contando Como um pequeno salafrário - “herói infantil” era a expressão usada - ouvira alguma observação comprometedora e denunciara os pais à Polícia do Pensamento.
A picada do estilingue não doía mais. Winston segurou a caneta, desanimado, indagando de seus botões se encontraria mais o que registrar no diário. De repente, começou a pensar outra vez em O'Brien.
Anos atrás - quantos anos? Devia ser uns sete - sonhara estar caminhando num quarto escuro como breu. E alguém, sentado ao seu lado, dissera ao senti-lo passar: “Tornaremos a nos encontrar onde não há treva.” Fora dito baixinho, sem ênfase - uma declaração, não uma ordem. E ele continuara, sem parar. O curioso é que, na ocasião, no sonho, as palavras não o haviam impressionado maiormente. Somente mais tarde, e aos poucos, é que tinham ganho em significação. Não podia lembrar agora se fora antes ou depois do sonho que vira O'Brien pela primeira vez; nem se lembrava de quando identificara aquela voz como a de O'Brien. Fosse como fosse, existia a identificação. O'Brien lhe falara na escuridão.
Winston nunca conseguira ter certeza - mesmo depois do cintilar de olhares daquela manhã ainda era impossível ter certeza - da amizade ou inimizade de O'Brién. Nem lhe parecera ter muita importância. Entre eles havia um laço de compreensão mais importante do que o afeto ou a ideologia. “Tornaremos a nos encontrar onde não há treva”, dissera ele. Winston não sabia o que significava, apenas acreditava que, de um modo ou outro, seria realidade.
A voz da teletela fez uma pausa. Um toque de clarim, belo e límpido, flutuou no ar estagnado. A voz continuou, áspera:- Atenção! Atenção, por favor! Acaba de chegar uma notícia da frente de Malabar. Nossas forças do Sul da índia lograram uma gloriosa vitória. Estou autorizado a dizer que essa batalha poderá aproximar a guerra do seu fim. Eis a notícia…
Más notícias, pensou Winston. E com efeito, depois de uma sanguinolenta descrição do aniquilamento de um exército eurasiano, com formidáveis cifras de mortos e prisioneiros, divulgou-se a notícia de que, a partir da semana próxima, a ração de chocolate seria reduzida de trinta a vinte gramas.
Winston tornou a arrotar. O gin estava-se gastando, deixando uma sensação de vazio. A teletela - talvez para celebrar a vitória, talvez para afogar a lembrança do chocolate perdido - atacou “Oceania, nossa terra.” Era dever de todos ouvirem o hino de pé. Todavia, na posição em que estava, não podiam vê-lo.
A “Oceania, nossa terra,” seguiu-se música mais leve, Winston foi até a janela, sempre de costas para a tela. O dia continuava claro e despejado. Nalgum lugar distante uma bomba-foguete explodiu com um estrondo surdo, ecoante. Atualmente, caíam em Londres, vinte ou trinta bombas por semana.
Lá embaixo, na rua, o vento ainda fustigava o cartaz rasgado, e a palavra INGSOC ora aparecia ora desaparecia. Ingsoc. Os princípios sagrados do Ingsoc. Novilíngua, duplepensar, a mutabilidade do passado. Sentiu-se como quem vagueia nas florestas do fundo do mar, perdido num mundo monstruoso onde ele próprio era o monstro. Estava só. O passado morto, o futuro inimaginável. Que certeza haveria de estar ao seu lado uma única criatura humana viva? E de que maneira saber que o domínio do Partido não duraria para sempre? Como resposta, os três lemas da fachada branca do Ministério da Verdade lhe voltaram à mente:
GUERRA É PAZ LIBERDADE É ESCRAVIDÃO IGNORÂNCIA É FORÇA
Tirou do bolso uma moeda de vinte e cinco centavos. Ali também, em letras minúsculas porém nítidas, liam-se as mesmas frases; do outro lado a cabeça do Grande Irmão. Até do dinheiro aqueles olhos o perseguiam. Moedas, selos, capas de livros, faixas, cartazes, maços de cigarro - em toda parte. Sempre os olhos fitando o indivíduo, a voz a envolvê-lo. Adormecido ou desperto, trabalhando ou comendo, dentro e fora de casa, no banheiro ou na cama - não havia fuga. Nada pertencia ao indivíduo, com exceção de alguns centímetros cúbicos dentro do crânio.
O sol deslocara-se no céu e, na sombra, as miríades de janelas do Ministério da Verdade pareciam as sinistras seteiras de uma fortaleza. O coração de Winston tremeu ante a pirâmide enorme. Era forte demais -não podia ser tomada de assalto. Mil bombas-foguetes não a deitariam por terra. Tornou a indagar de si próprio: para quem estaria escrevendo o diário? Para o futuro, para o passado - para uma época que talvez fosse imaginária- E diante dele abria-se não a morte, mas o aniquilamento. O diário seria reduzido a cinzas e ele a vapor. Somente a Polícia do Pensamento leria o seu escrito, antes de suprimi-lo e eliminá-lo da lembrança. Como poderia apelar para o futuro sendo impossível a sobrevivência física de um vestígio do indivíduo, e até mesmo de uma palavra anônima rabiscada num pedaço de papel?
A teletela assinalou catorze horas. Precisava sair dali a dez minutos. Tinha de estar de volta ao serviço às catorze e trinta. Curiosamente, o soar das horas pareceu dar-lhe novo ânimo. Ele não passava dum fantasma solitário exprimindo uma verdade que ninguém jamais ouviria. Mas enquanto a exprimisse, a continuidade não seria interrompida. Não é fazendo ouvir a nossa voz mas permanecendo são de mente que preservamos a herança humana. Ele voltou à mesa, molhou a pena e escreveu: Ao futuro ou ao passado, a uma época em que o pensamento seja livre, em que os homens sejam diferentes uns dos outros e que não vivam sós - a uma época em que a verdade existir e o que foi feito não puder ser desfeito:
Cumprimentos da era de uniformidade, da era da solidão, da era do Grande Irmão, da era do duplipensar!
Ele já estava morto, refletiu. Pareceu-lhe que só agora, depois de começar á formular suas ideias, dera o passo decisivo. As consequências de cada ato são incluídas no próprio ato. Escreveu:
Crimidéia não acarreta a morte: crimidéia É a morte.
Agora que se reconhecia como defunto, tornava-se importante ficar vivo o mais tempo possível. Tinha manchados de tinta dois dedos da mão direita. Era exatamente o tipo do pormenor que podia traí-lo. Algum enxerido do Ministério (mulher, provavelmente; alguém como aquelazinha de cabelo cor de areia ou a morena do Departamento de Ficção) poderia querer saber por que andara escrevendo na hora do almoço, por que usara uma pena antiga, o que escrevera - e então soltar um palpite no local competente. Winston foi ao banheiro e cuidadosamente lavou a tinta, com o sabão áspero, arenoso e escuro, que arranhava como lixa e que portanto era ótimo para o que tinha em vista.
Guardou o diário na gaveta. Era absolutamente inútil pensar em escondê-lo, mas poderia ao menos certificar-se de que sua existência fora ou não descoberta. Um cabelo deposto na margem da página daria na vista. Com a ponta do dedo recolheu um grão identificável de pó esbranquiçado e depositou-o no canto da capa, donde certamente cairia se o livro fosse mexido.
George Orwell, in 1984

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