– O
tio anda com uma cara. O que é que há?
– Preocupações
de velho.
– Está
velho, tio? Não parece.
– A
cabeça dele está ficando branqueada, é isso.
– Continua
com as velhas ideias, tio?
– Você
viu o que ele arranjou? Um furo na mão!
– Furo
na mão? Como?
– E
ele conta?
– Não
será contagioso? Foi ao Posto?
– Ele
diz que foi. Não acredito. O Posto teria dado uma receita. Ou
isolado.
– Ah,
ele tem medo do Isolamento?
– Não
diz, mas tem. Uma vez me contou que o Isolamento é o fim. Quem vai
para lá não volta mais.
– Como
não volta?
– Ele
garante que os isolados somem do mundo.
– Quem
sabe, tio, lá tem um forno crematório? Gás, forno, e um montinho
de cinzas do outro lado, espalhadas pelo vento. Pode ser, tio, que
essa poeira escura que enche nossas casas, todos os dias, seja cinza,
hein?
– Não
brinca, menino! Seu tio já anda preocupado. Não sei o que vai ser.
Cada dia mais quieto. Agora deu de não querer trabalhar. Disse que é
inútil, o emprego dele é improdutivo.
– É
improdutivo? Quem é que está preocupado com isso, tio? Sabe quantos
têm à espera do teu lugar? Sabe?
– Ele
deve saber. Está vendo as ruas cheias. Cada dia mais cheias. Será
que o Novo Exército não vai fazer nada? Está ficando impossível.
Só hoje passaram por aqui dez pessoas pedindo comida e água.
– Não
podem fazer isso. Eles têm ficha para circular por aqui? – E eu
sei? – São mal-encarados, pobres coitados! Tenho nojo dos
despelancados. Coisa mais horrível. Por que não isolam esses?
– Não
dá para fazer tudo, tia. Estamos tentando. Agora que me promoveram,
vão me nomear para o controle das regiões ao redor da Gigantesca
São Paulo. Vai ser trabalho pra burro.
– Mas
ganha mais?
– Um
pouco. Vou ter de montar um esquema a fim de manter os retirantes
fora dos limites da cidade.
– Devolve
pro lugar de onde vieram.
– Vieram
dos territórios estrangeiros.
– Faz
um acordo.
– Acordo.
Quem quer saber? Um dia destes, vou levar o tio comigo para visitar
os Acampamentos.
– Você
podia arranjar uma autorização pro tio visitar o pai dele.
– Visitar
o pai? Vovô não está morto?
– Não,
foi recolhido ao Patrocínio Silencioso. E seu tio não conseguiu
visitá-lo uma só vez.
– O
Patrocínio é longe. Tem de passar quatro Distritos. É uma
burocracia infernal conseguir fichas de circulação através desses
Distritos. Cada administrador quer dinheiro, ou privilégio.
– Você
é capitão do Novo Exército.
– Pois
é, mas quem tem força é de general para cima.
– Já
foi bom este país. Está muito complicado. Qualquer dia, nem posso
ir a minha igreja.
– Continua
a mesma, tia. Acreditando que Deus vai resolver? Eu me lembro, era
garotinho, vinha brincar no seu quintal. Todos os dias, na hora de
lavar a mão, você vinha: vai ser padre, filho. Ou entra para o Novo
Exército. Depois parou de falar nos padres, meteu na minha cabeça
que era o Novo Exército mesmo. Minha mãe queria que eu fosse para o
Banco do Brasil. Ou para a Carteira de Habilitação.
– Era
teu pai que falava na Carteira de Habilitação.
– Me
lembro mal dele.
– Dizia
que na Carteira de Habilitação você faria carreira, teria futuro,
poderia garantir casa para a família. Além disso, se subisse, o que
era o sonho dele, poderia dirigir uma seção qualquer. Como a de
compras. Era obsessão dele. Não entendo por quê. “Quem faz as
compras dá as cartas, está com tudo nas mãos.” Por que ele dizia
isso?
– Não
conheci direito, mas o pai devia ser esperto.
– Chefe
da seção de compras? Que bobagem.
– Pois
é, tia. E quase virei chefe da seção de compras. Minha sorte foi
não ter passado no exame médico. Descobriram o meu intestino
destruído, fui reprovado.
– Ainda
bem que o Novo Exército foi complacente, te aceitou.
– Num
batalhão especial...
– Nem
todo mundo é de marchar, fazer ordem unida, sair atirando.
– A
maioria dos Militecnos tem um problema. Estômago, pulmão, coluna,
intestino. A gente foi a geração que nasceu depois da explosão do
reator, tiveram de compensar a gente de algum modo. Acabei capitão.
Eram
tão bonitos os moços em seus uniformes, quando desfilavam pela
cidade, quando patrulhavam. Teu tio foi bobo. Eu dizia para ele:
acaba com essa faculdade, vai para o Novo Exército. Ele odiava os
soldados que patrulhavam.
– Era,
tio?
– Olha
a cara dele! Tem ódio quando falo nisso.
– Vai
ver o tio não gosta de mim.
– Como
pode não gostar? Você é como um filho.
– Tem
pais que odeiam os filhos.
– Não
é o caso do seu tio. Ele tem suas esquisitices, mas é boa pessoa.
– Boa?
Será, tio? Por que não responde?
– Ele
te quer bem.
– Não
sei, não. Tenho visto pessoas como ele, perigosas. O tio não se
conforma com a situação.
– Faz
tempo que ele não discute política.
– Gosta
ou não do Esquema, tio?
– Não
é hora de discutir essas coisas, filho. Você veio almoçar com a
gente. Hoje é domingo, vamos descansar, ver televisão, passear.
– Passear?
Ora, tia, quem é que passeia com um calor desses? Ninguém mais. O
que há?
– É,
faz tempo que não saio. Vou abrir a garrafa que você trouxe.
– Como
é, tio?
– Deixa
o tio sossegado, ele ficou chocado com o furo na mão.
– Olha
a cara dele. Tem qualquer coisa estranha aí.
– Não
tem, não. Sempre foi assim, um ar irônico. A cara fechada.
– Gosta
ou não do Esquema, tio?
– Não.
– Viu,
tia? Viu como eu estava com a razão?
– Está
brincando comigo. Não está, Souza? Diz que está.
– Não
gosto do Esquema. E não estou brincando.
– Souza,
você está louco?
– Não
gosto do Esquema, não posso gostar. Tudo que está aí foi por causa
dele.
– Tudo
o que está aí?
– Tudo.
O país despedaçado, os brasileiros expulsos de suas terras, as
árvores esgotadas, o desertão lá em cima.
– Belíssimo
deserto. Nona maravilha.
– Maravilha.
E os rios?
– Agora
vai pôr a culpa no Esquema dos rios terem secado? Do calor? Seja
razoável, tio. O mundo mudou. O senhor sabe, é professor de
História. A culpa foi dos governos que fizeram experiências
nucleares, transformaram a atmosfera.
– Repete
a propaganda oficial, repete.
– Foram
coisas que aprendi no Curso Infinito da Guerra, tio. Pena que seja um
curso limitado a oficiais. Seria bom para todo o povo saber.
– Me
responde? Onde está o país?
– Aqui,
ali, tudo em volta.
– Deste
tamanhinho? Pensa um pouco, raciocina. Quando eu era jovem, o país
tinha oito milhões e meio de quilômetros quadrados. Sabe quanto tem
agora?
– De
cabeça, não.
– Consulta.
E, quando souber a resposta, vem me contar. Está pouco maior que a
palma da minha mão.
– Tio,
os conceitos de nação mudaram. O que vale agora é o
internacionalismo. A multiplicidade. Aqui é um pedacinho. Você soma
com os pedacinhos que temos por aí afora. Reservas no Uruguai, na
Bolívia, pedação do Chile, na Venezuela. Cada savana na África,
quero ser transferido para a África, triplica o soldo e a gente tem
casa, comida, economiza.
– Pois
é, entregamos o nosso e fomos colonizar outros territórios.
– Não
é colonização, tio, é diferente. São reservas
multi-internacionais. O mundo se globaliza.
– Talvez
eu seja velho, com ideias antigas. Mas queria meu país inteiro, não
um mundo de países dentro do meu. Eu te contei daquela viagem. Quis
chegar a Manaus e nunca cheguei. Não podia ir lá, fui rodeando,
tive de voltar. Foi mais difícil atravessar Rondônia do que
conseguir permissão para cruzar a Bolívia.
– Sua
visão é limitada, tio. O senhor pensa em termos individuais,
restringe-se a um regionalismo superado. Raciocine em termos mais
amplos. Nossa economia, por exemplo, nunca esteve tão forte.
– Forte?
Ninguém tem dinheiro. O país endividado. Não há terras para
plantio. Tudo custa os olhos da cara, estamos importando tudo.
– Importamos
pouca coisa.
– Pouquíssima.
Sal, açúcar, minério de ferro, xisto, feijão, eletricidade,
papel, plásticos. Quer a lista inteira?
– Não
são importações, são acordos feitos quando das negociações com
as terras.
– Como
é que você não enxerga? Importamos de nós mesmos. Mandamos buscar
ali em cima, onde antes era o norte do Mato Grosso, o Maranhão, o
Pará.
– Lembre-se
de que as concessões não são eternas. Têm um prazo.
– Eu
vi. O ano passado esgotou-se o prazo da concessão para a Bélgica. E
eles devolveram os trechos que mantinham em Goiás? Não, o Esquema
comprou. Comprou uma coisa que seria dele, de graça, este ano.
– Foi
diferente. Tinha melhorias, projetos industriais, edifícios,
plantações, laboratórios.
– Ruínas,
tudo ruínas.
– Como
sabe?
– Vazou.
A informação vazou, meu filho. A gente acaba sabendo. Quem é que
lucrou com o retorno da concessão belga? Falam, olhe lá, falam que
foi o Círculo dos Ministros Embriagados. Se você repetir, desminto.
Mas é o que corre.
– O
Círculo? Como podem dar tanta importância ao Círculo? Estão todos
sob controle. Vivem em prisão domiciliar, supervigiados. Eles não
têm mais poderes.
– Quem
garante que eles estão lá? Nunca mais ninguém viu um só ministro.
Não circulam. Dizem que eles estão infiltrados no Esquema.
– Cuidado,
tio, é perigoso isso que o senhor está dizendo! O atual Esquema
liquidou completamente com a Era da Grande Locupletação. Foram
todos presos, cassados, banidos, eliminados, mortos.
– O
Círculo está lá, vivo.
– O
Círculo é um mito.
– O
Esquema permite a existência do Círculo. Qualquer hora, ele se
organiza e retoma o poder. O Esquema não está dominando a situação.
– Domina,
e domina fácil. Tudo está planejado.
– Planejado?
Ele não contém as migrações. A saúde pública faliu. Vejo, toda
hora, na rua, os homens caindo aos pedaços. Não há mais água. Se
você não trouxesse as fichas, eu e sua tia íamos morrer de sede.
– Não
acredito que o senhor tenha sido professor universitário, com a
mente tão limitada. Vocês sempre se bateram pela estatização
geral. Pois chegamos à estatização. O governo domina tudo, em
todos os setores.
– Você
se esquece que não é o governo que detém a economia, mas uns
poucos que estão nas boas graças do governo. E o povão continua
igual, ou pior do que sempre foi.
– Não
vem com essa conversa de povo. Que o senhor nunca ligou para ele. Nem
sabe como é. O senhor e essa gente toda que vive gritando que
defende o povo.
– Acho
que, hoje em dia, sobrou a tentativa de defesa do que resta como
país. Reconstruir o país, se ainda for possível, e então pensar
no povo dentro dele.
– Na
hora de arranjar fichas por fora, o Esquema é bom, hein, tio?
– Por
que vocês discutem? Cada vez que ele vem nos visitar, sai uma
discussão nesta casa, Souza. Por quê? Não podemos fazer como todas
as famílias? Ficar alegres, conversar coisas boas? Há tanto assunto
bonito.
– Vamos
conversar bonito, tio. Também acho melhor.
– Você
é inteligente, meu filho. Não entendo como pode permanecer nesse
cargo, como pode estar cego diante da realidade.
– Vivo
a realidade, tio. Esta sempre foi a minha realidade, nunca convivi
com outra. Quando nasci, os Abertos Oitenta tinham terminado. Não
figuram nem nos livros de História. É ou não é? A eles, só
pequenas referências, sem muitas explicações. Então como posso
estar cego?
– Viver
dentro de uma realidade é um fato. Aceitar, achar que tal realidade
é boa, é outra história. Nunca pensou que a vida pode ser
diferente? Você não imagina que as coisas possam ser de outra
maneira?
– Se
não vivermos organizados, morremos. Estamos na linha justa, sob
rígido controle. Não tem outro jeito.
– Mas
havia, não tivessem feito o que fizeram.
– Fizeram,
é irremediável.
– Será?
Talvez ainda não!
Ignácio
de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum
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