sexta-feira, 12 de julho de 2019

Daniel Benchimol investiga o desaparecimento de Ludo

Daniel Benchimol leu a carta de Maria da Piedade Lourenço duas vezes. Telefonou a um amigo do pai, geólogo, que dedicara a vida inteira à prospeção de diamantes. O velho Vitalino lembrava-se muito bem de Orlando:
Um bom sujeito, péssimo feitio. Duro, seco, e sempre esticado, como se vestisse uma camisa de pregos. Chamavam-lhe o Pico. Ninguém queria tomar café com ele. Não fazia amigos. Desapareceu pouco antes da Independência. Aproveitou a confusão, meteu umas pedras no bolso, e fugiu para o Brasil.
Daniel pesquisou na Internet. Encontrou centenas de pessoas chamadas Orlando Pereira dos Santos. Perdeu horas atrás de um indício, uma referência qualquer, que lhe permitisse ligar o nome ao sujeito que procurava. Sem sucesso. Pareceu-lhe estranho. Um homem como Orlando, vivendo há vinte e tantos anos no Brasil, ou em qualquer outro país que não fosse o Afeganistão, o Sudão, ou o Butão, teria de deixar rastro na grande rede virtual. Ligou outra vez a Vitalino:
Esse Orlando tinha família em Angola?
Devia ter. Ele era de Catete.
Catete?! Pensei que fosse tuga.
Não, não! Puro catetense. Clarinho. A seguir ao 25 de Abril insistia em nos recordar a origem. Gabava-se de ter convivido com o Manguxi. Vê lá tu! Um tipo que durante todos aqueles anos nunca levantou a voz contra o colonialismo! Devo acrescentar, a bem da verdade, que não pactuava com racistas, lá isso não, mostrou-se sempre um tipo justo. Tratava brancos e pretos com idêntica arrogância.
E família?
Pois então, família. Acho que ele era primo do Vitorino Gavião.
O poeta?
Um vagabundo. Dá-lhe o nome que quiseres.
Benchimol sabia onde encontrar Vitorino Gavião. Atravessou a rua e entrou na Biker. A histórica cervejaria encontrava-se, àquela hora, quase vazia. A uma mesa, um pouco afastada, quatro velhos jogavam às cartas. Discutiam alto. Calaram-se quando o viram avançar:
Cuidado!, atirou um deles, fingindo sussurrar, mas de forma a que o jornalista o escutasse: Chegou a imprensa arregimentada. A voz do dono. Os ouvidos do dono.
Benchimol irritou-se:
Se eu sou a voz do regime, vocês são o excremento.
O que sussurrara, endireitou-se:
Não te irrites, camarada. Bebe uma cerveja.
Vitorino Gavião deixou escapar um riso ácido:
Nós somos o coro grego. A voz da consciência nacional. É isso que somos. Estamos aqui, na penumbra, comentando o progresso da tragédia. Lançando alertas que ninguém escuta.
Uma calvície ultrajante roubara-lhe a forte cabeleira, ao estilo de Jimi Hendrix, com que nos anos sessenta, em Paris, proclamara a sua negritude. Assim, de crânio liso, a brilhar, passaria por branco até na Suécia. Enfim, na Suécia talvez não. Ergueu a voz, curioso:
Quais são as notícias?
O jornalista puxou uma cadeira. Sentou-se:
Conheceste um tal Orlando Pereira dos Santos, engenheiro de minas?
Gavião hesitou, muito pálido:
Meu primo. Primo direito. Morreu?
Não sei. Ganharias alguma coisa com a morte dele?
O gajo desapareceu na altura da Independência. Dizem que levou com ele um lote de diamantes.
Achas que ainda se lembra de ti?
Éramos amigos. O silêncio do Pico, nos primeiros anos, não me surpreendeu. Se eu tivesse roubado um lote de diamantes também ia querer que me esquecessem. Ele foi esquecido. Há muito tempo que toda a gente o esqueceu. Porque me estás a fazer essas perguntas?
O jornalista mostrou-lhe a carta de Maria da Piedade Lourenço. Gavião lembrava-se de Ludo. Sempre a achara um pouco aérea. Agora compreendia o motivo. Recordou as visitas ao apartamento do primo, no Prédio dos Invejados. A euforia dos dias que antecederam a Independência.
Se eu soubesse no que isto ia dar teria ficado em Paris.
E fazias o quê – lá, em Paris?
Nada!, suspirou Gavião:
Nada, como aqui. Mas pelo menos fazia-o com elegância. Seria um flâneur.
Nessa mesma tarde, depois de sair do jornal, Daniel subiu a pé até ao Quinaxixe. O Prédio dos Invejados apresentava-se ainda bastante degradado. Contudo, o hall estava pintado de fresco, e respirava-se um ar limpo e jovial. Um guarda vigiava o ascensor.
Funciona? – Quis saber o jornalista.
O homem sorriu, orgulhoso:
Quase sempre, chefe, quase sempre!
Pediu a Daniel que se identificasse e só então chamou o ascensor. O jornalista entrou. Subiu até ao décimo primeiro andar. Saiu. Deteve-se um instante, impressionado com a limpeza das paredes e o brilho dos soalhos. Só uma porta destoava do conjunto, a do apartamento D. Estava arranhada e mostrava um orifício, a meia altura, que parecia ferida de bala. O jornalista premiu a campainha. Não escutou ruído algum. Então bateu três vezes, com força. Um menino veio abrir.
Olhos grandes, uma expressão de maturidade que impressionava em alguém tão jovem.
Olá!, cumprimentou o jornalista: Moras aqui?
Moro sim senhor. Eu e a minha avó.
Posso falar com a tua avó?
Não.
Deixa estar que eu falo, filho.
Daniel ouviu a voz, frágil, estalada, e só depois viu surgir uma senhora muito pálida, arrastando uma perna, o cabelo grisalho dividido em duas grossas tranças:
Sou Ludovica Fernandes, cavalheiro. O que deseja?
José Eduardo Agualusa, in Teoria geral do esquecimento

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