A
mulher corcunda, de
Alexej
Georgewitsch Von Jawlensky
Acendemos
paixões no rastilho do próprio coração. O que amamos é sempre
chuva, entre o voo da nuvem e a prisão do charco. Afinal, somos
caçadores que a si mesmo se azagaiam. No arremesso certeiro vai
sempre um pouco de quem dispara.
Dela se sabia quase pouco. Se conhecia
assim, corcunda-marreca, desde menina. Lhe chamávamos Rosa Caramela.
Era dessas que se põe outro nome. Aquele que tinha, de seu natural,
não servia. Rebatizada, parecia mais a jeito de ser do mundo. Dela
nem queríamos aceitar parecenças. Era a Rosa. Subtítulo: a
Caramela. E ríamos.
A corcunda era a mistura das raças
todas, seu corpo cruzava os muitos continentes. A família se
retirara, mal que lhe entregara na vida. Desde então, o recanto dela
não tinha onde ser visto. Era um casebre feito de pedra espontânea,
sem cálculo nem aprumo. Nele a madeira não ascendera a tábua:
restava tronco, pura matéria. Sem cama nem mesa, a marreca a si não
se atendia. Comia? Ninguém nunca lhe viu um sustento. Mesmo os olhos
lhe eram escassos, dessa magreza de quererem, um dia, ser olhados,
com esse redondo cansaço de terem sonhado.
A cara dela era linda, apesar. Excluída
do corpo, era até de acender desejos. Mas se às arrecuas, lhe
espreitassem inteira, logo se anulava tal lindeza. Nós lhe víamos
vagueando nos passeios, com seus passinhos curtos, quase juntos. Nos
jardins, ela se entretinha: falava com as estátuas. Das doenças que
sofria essa era a pior. Tudo o resto que ela fazia eram coisas de
silêncio escondido, ninguém via nem ouvia. Mas palavrear com
estátuas, isso não, ninguém podia aceitar. Porque a alma que ela
punha nessas conversas chegava mesmo de assustar. Ela queria curar a
cicatriz das pedras? Com maternal inclinação, consolava cada
estátua:
– Deixa, eu te limpo. Vou tirar esse
sujo, é sujo deles.
E passava uma toalha, imundíssima, pelos
corpos petrimóveis. Depois, retomava os atalhos, iluminando-se de
enquantos, no círculo de cada poste.
De dia lhe esquecíamos a existência.
Mas às noites, o luar nos confirmava seu desenho torto. A lua
parecia pegar-se à marreca, como moeda em encosto avaro. E ela,
frente aos estatuados, cantava de rouca e inumana voz: pedia-lhes que
saíssem da pedra. Sobressonhava.
Nos domingos ela se recolhia, ninguém. A
velha desaparecia, ciumosa dos que enchiam os jardins, manchando os
sossegos do território dela.
De Rosa Caramela, afinal, não se
procurava explicação. Só um motivo se contava: certa vez, Rosa
ficara de flores na mão, suspensa à entrada da igreja. O noivo,
esse que havia, demorou de vir. Demorou tanto que nunca veio. Ele lhe
recomendara: não quero cerimônias. Vou eu e tu, só nós ambos.
Testemunhas? Só Deus, se estiver vago. E Rosa suplicava:
– Mas, o meu sonho?
Toda a vida ela sonhara a festa. Sonho de
brilhos, cortejo e convidados. Só aquele momento era seu, ela
rainha, linda de espalhar invejas. Com o longo vestido branco, o véu
corrigindo as costas. Lá fora, as mil buzinas. E agora, o noivo lhe
negava a fantasia. Se desfez das lágrimas, para que outra coisa
serve o verso das mãos? Aceitou. Que fosse como ele queria.
Chegou a hora, passou a hora. Ele nem
veio nem chegou. Os curiosos se foram, levando os risos, as
zombarias. Ela esperou, esperou. Nunca ninguém esperou tanto um
tempo assim. Só ela, Rosa Caramela. Ficou-se no consolo do degrau, a
pedra sustentanto o seu universal desencanto.
História que contam. Tem sumo de
verdade? O que parece é que nenhum noivo não havia. Ela tirara tudo
aquilo de sua ilusão. Inventara-se noiva, Rosita-namorada,
Rosa-matrimoniada. Mas se nada não aconteceu, muito foi que lhe doeu
o desfecho. Ela se aleijou na razão. Para sarar as ideias, lhe
internaram. Levaram-lhe no hospital, nem mais quiseram saber. Rosa
não tinha visitas, nunca recebeu remédio de alguma companhia. Ela
se condizia sozinha, despovoada. Fez-se irmã das pedras, de tanto
nelas se encostar. Paredes, chão, tecto: só a pedra lhe dava
tamanho. Rosa se pousava, com a leveza dos apaixonados, sobre os
frios soalhos. A pedra, sua gêmea.
Quando teve alta, a corcunda saiu à
procura de sua alma minéria. Foi então que se enamorou das
estátuas, solitárias e compenetradas. Vestia-lhes com ternura e
respeito. Dava-lhes de beber, acudia-lhes nos dias de chuva, nos
tempos de frio. A estátua dela, a preferida, era a do pequeno
jardim, frente à nossa casa. Era monumento de um colonial, nem o
nome restava legível. Rosa desperdiçava as horas na contemplação
do busto. Amor sem correspondência: o estatuado permanecia sempre
distante, sem dignar atenção à corcovada.
Da nossa varanda lhe víamos, nós, sob o
zinco, em nossa casa de madeira. Meu pai, sobretudo, lhe via.
Calava-se em si, todo. Era a loucura da corcunda que fazia voar
nossos juízos? O meu tio brincava, para salvar o nosso estado:
– Ela é como o escorpião, leva o
veneno nas costas.
Dividíamos os risos. Todos, excepto meu
pai. Sobejava intacto, grave.
– Ninguém vê o cansaço dela,
vocês. Sempre a carregar as costas nas costas.
Meu pai se afligia muito dos cansaços
alheios. Ele, em si, não se dava a fatigar. Sentava-se. Servia-se
dos muitos sossegos da vida. Meu tio, homem de expedientes, lhe
avisava:
– Mano Juca, desarasca lá uma
maneira de viver.
Meu pai nem respondia. Parecia mesmo que
ele mais se tornava encostadiço, cúmplice da velha cadeira. Nosso
tio tinha razão: ele carecia de ocupação salariável. O único
despacho de seu fazer era alugar os próprios sapatos. Domingo,
chegavam os do clube dele, paravam a caminho do futebol.
– Juca, vimos por causa os sapatos.
Ele acenava, lentíssimo.
– Já sabem o contrato: levam e,
depois, quando regressarem, contam como foi o jogo.
E inclinava-se para tirar os sapatos
debaixo da cadeira. Baixava-se com tanto esforço que parecia estar a
apanhar o próprio chão. Subia o par de sapatos e olhava-lhes em
fingida despedida:
– Custa-me.
Só por causa do médico é que ele
ficava. Proibiram-lhe os excessos do coração, pressas no sangue.
– Porcaria de coração.
Batia no peito para castigar o órgão. E
voltava à conversa com o calçado:
– Vejam lá, vocês, sapatinhos:
hora certa, regressam de volta.
E recebia, adiantado, os dinheiros.
Ficava por muito gesto a contar as notas. Era como se lesse um gordo
livro, desses que gostam mais dos dedos que dos olhos.
Minha mãe: era ela que metia os pés na
vida. Muito cedo saía, rumo dela. Chegava ao bazar, a manhã ainda
era pequena. O mundo transparecia, em estreia solar. A mãe arrumava
a banca antes das outras vendedeiras. Entre couves empilhadas, se via
a cara dela, gorda de tristes silêncios. Ali se sentava, ela e o
corpo dela. Na luta pela vida, a mamã nos fugia. Chegava e partia no
escuro. À noite, lhe escutávamos, ralhando com a preguiça do pai.
– Juca, você pensa a vida?
– Penso, até muito.
– Sentado?
Meu pai se poupava nas respostas. Ela, só
ela, lastimava:
– Eu, sozinha, no serviço dentro e
fora.
Aos poucos, as vozes se apagavam no
corredor. De minha mãe ainda sobravam suspiros, desmaios da sua
esperança. Mas nós não dávamos cuba a meu pai, Ele era um homem
bom. Tão bom que nunca tinha razão.
E assim, em nosso pequeno bairro, a vida
se resumia. Até que, um dia, nos chegou a notícia: a Rosa Caramela
tinha sido presa. Seu único delito: venerar um colonialista. O chefe
das milícias atribuiu a sentença: saudosismo do passado. A loucura
da corcunda escondia outras, políticas razões. Assim falou o
comandante. Não fora isso, que outro motivo teria ela para se opor,
com violência e corpo, ao derrube da estátua? Sim, porque o
monumento era um pé do passado rasteirando o presente. Urgia a
circuncisão da estátua para respeito da nação.
Do modo que levaram a velha Rosa, para
cura de alegadas mentalidades. Só então, na ausência dela, vimos o
quanto ela compunha a nossa paisagem.
Ficamos tempos sem escutar suas notícias.
Até que, certa tarde, nosso tio rasgou os silêncios. Ele vinha do
cemitério, chegado do enterro de Jawane, o enfermeiro. Subiu as
pequenas escadas da varanda e interrompeu o descanso de meu pai.
Coçando as pernas, o meu velhote piscou os olhos, calculando a luz:
– Então, trouxeste os sapatos?
O tio não respondeu logo. Estava ocupado
a servir-se da sombra, curando-se da transpiração. Soprou nos
próprios lábios, cansado. No seu rosto eu vi aquele alívio de quem
regressa de um enterro.
– Estão aqui, novinhos. Eh pá,
Juca, me fizeram jeito esses sapatos pretos!
Procurou nos bolsos mas o dinheiro, que
sempre tem modos rápidos ao entrar, demorou a sair. Meu pai lhe
emendou o gesto:
– A você não aluguei. Somos da
família, calçamos juntos.
O tio se sentou. Puxou da garrafa de
cerveja e encheu um copo grande. Depois, com ciência, pegou numa
colher de pau e retirou a espuma para outro copo. Meu pai serviu-se
desse copo, só com espuma. Proibido nos líquidos, o velho se
dedicava só nos espumantes.
– É leve, a espuminha. O coração
nem nota a passagem dela.
Se consolava, olhos em riste como se
alongasse o pensamento. Não passava de fingimento aquele afundar-se
em si.
– Estava cheio o enterro?
Enquanto desamarrava os sapatos, meu tio
explicou a enchente, multidões pisando os canteiros, todos a
despedirem do enfermeiro, coitado, também ele se morreu.
– Mas matou-se mesmo?
– Sim, o gajo se pendurou.
Encontraram-lhe já estava duro, parecia gomadinho na corda.
– Mas matou-se por qual razão?
– Não sei lá. Dizem foi por motivo
de mulheres.
Calaram-se os dois, sorvendo os copos. O
que mais lhes doía não era o facto mas o motivo.
– Morrer assim? Mais vale falecer.
Meu velho recebeu os sapatos e
inspecionou-lhes com desconfiança:
– Esta terra vem de lá?
– É onde, esse lá?
– Pergunto se vem do cemitério. –
Talvez vem.
– Então vai lá limpar, não quero
poeira dos mortos aqui.
Meu tio desceu as escadas e sentou-se no
último degrau, escovando as solas. No enquanto, foi contando. A
cerimônia decorria-se, o padre executava as rezas, abastecendo as
almas. De repente, o que sucede? Aparece a Rosa Caramela, vestida de
máximo luto.
– A Rosa já saiu da prisão? –
perguntou, atônito, o meu pai.
Sim, saíra. Numa inspeção à cadeia,
lhe deram amnistia. Ela era louca, não tinha crime mais grave. Meu
pai insistia, admirado:
– Mas ela, no cemitério?
O tio prosseguiu o relato. A Rosa, por
baixo das costas, toda de negro. Nem um corvo, Juca. Foi entrando,
com modos de coveira, espreitando as sepulturas. Parecia escolher o
buraco dela. No cemitério, você sabe, Juca, lá ninguém demora a
visitar as covas. Passamos depressa. Só essa corcunda, a gaja…
– Conta o resto – cortou o meu
pai.
Seguiu-se a narração: a Rosa, ali, no
meio de todos, começou a cantar. Com educado espanto, os presentes a
fixavam. O padre mantinha a oração mas ninguém já lhe ouvia. Foi
então que a marreca começou a despir.
– Mentira, mano.
Fé de Cristo, Juca, me desçam duas mil
facas. Despiu. Foi tirando os panos, com mais vagar que esse calor de
hoje. Ninguém ria, ninguém tossia, ninguém nada. Já nua,
esroupada, ela se chegou junto à campa do Jawane. Encimou os braços,
lançou as roupas dela na cova. A multidão receou a visão, recuou
uns passos. A Rosa, então, rezou:
– Leva essas roupas, Jawane, te vão
fazer falta. Porque tu vais ser pedra, como os outros.
Olhando os presentes, ela ergueu a voz,
parecia maior que uma criatura:
– E agora: posso gostar?
Os presentes recuaram, só se escutava a
voz da poeira.
– Hein? Deste morto posso gostar! Já
não é dos tempos. Ou deste também sou proibida?
O meu pai deixou a cadeira, parecia quase
ofendido.
– Falou assim, a Rosa?
– Autêntico.
E o tio, já predispronto, imitava a
corcunda, seu corpo vesgo: e este, posso-lhe amar? Mas o meu velhote
se escapou a ouvir.
– Cala-te, não quero ouvir mais.
Brusco, ele largou o copo pelos ares.
Queria despejar a espuma mas, de injusto lapso, saiu-lhe o copo todo
da mão. Como se pedisse desculpa, meu tio foi apanhando os
vidrinhos, tombados de costas pelo quintal.
Nessa noite, eu desconsegui de dormir.
Saí, sentei a insônia no jardim da frente. Olhei a estátua, estava
fora do pedestal. O colono tinha as barbas pelo chão, parecia que
era ele mesmo quem tinha descido, por soma de grandes cansaços.
Tinham arrancado o monumento mas esqueceram de o retirar, a obra
requeria acabamentos. Senti quase pena do barbudo, sujo das pombas,
encharcado de poeira. Me acendi, vindo ao juízo: estou como a Rosa,
pondo sentimento nos pedregulhos? Foi então que vi a própria, a
Caramela, parecia chamada pelos meus conjuros. Fiquei quase gelado,
imovente. Queria fugir, minhas pernas se negavam. Estremeci: eu me
convertia em estátua, virando assunto das paixões da marreca?
Horror, me fugisse a boca para sempre. Mas, não. A Rosa não parou
no jardim. Atravessou a estrada e chegou-se às escadinhas de nossa
casa. Baixou-se nos degraus, limpou deles o luar. Suas coisas se
pousaram num suspiro. Depois, ela se entartarugou, aprontando-se,
quem sabe, ao sono. Ou fosse de sua intenção apenas a tristeza.
Porque lhe escutei chorar, num murmúrio de águas escuras. A
corcunda se derramava, parecia era vez dela se estatuar. Me infindei,
nessa visagem.
Foi, então. Meu pai, em apuros de
silêncio, abriu a porta da varanda. Lento, se aproximou da corcunda.
Por instantes, ficou debruçado sobre a mulher. Depois, movendo a mão
como se fosse um gesto só sonhado, lhe tocou os cabelos. Rosa nem se
esboçava, a princípio. Mas, depois, foi saindo de si, rosto na
metade da luz. Olharam-se os dois, ganhando beleza. Ele, então,
sussurrou:
– Não chora, Rosa.
Eu quase não ouvia, o coração me
chegava aos ouvidos. Me aproximei, sempre por trás do escuro. Meu
pai lhe falava ainda, aquela sua voz nem eu lhe havia nunca ouvido.
– Sou eu, Rosa. Não lembra?
Eu estava no meio das buganvílias, seus
picos me rasgavam. Nem sentia. O assombro me espetava mais que os
ramos. As mãos de meu pai se afundavam no cabelo da corcunda,
pareciam gente, aquelas mãos, pareciam gente se afogando.
– Sou eu, Juca. O seu noivo, não
lembra?
Aos poucos, Rosa Caramela se irrealizou.
Ela nunca tanto existira, nenhuma estátua lhe merecera tantos olhos.
Meigando ainda mais a voz, meu pai lhe chamou:
– Vamos, Rosa.
Sem querer eu já saíra das buganvílias.
Eles me podiam ver, nem me fazia nenhum estorvo. Parecia a Lua até
atiçou seu brilho quando a corcunda se ergueu.
– Vamos, Rosa. Pega suas coisas,
vamos embora.
E foram-se os dois, noite adentro.
Mia Couto, in
Cada
homem é uma raça
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