segunda-feira, 8 de julho de 2019

A moça de branco

De repente Martin empertigou-se (movido sem dúvida por uma intuição secreta), o olhar fixo numa aléia solitária do parque por onde passava uma moça de vestido branco. Mesmo de longe, quando ainda não se podiam distinguir nitidamente as proporções de seu corpo e os traços de seu rosto, percebia-se nela um encanto especial, difícil de explicar, uma espécie de pureza ou ternura.
Quando ela passou perto de nós, vimos que era muito jovem. Não era nem menina nem moça, o que nos lançou num estado de grande excitação, fazendo com que Martin se levantasse de repente.
Senhorita, sou Forman, o diretor de cinema Sabe, o cineasta.
Estendeu a mão à menina, que com uma expressão de enorme espanto apertou-a.
Martin virou o rosto para mim e disse:
Quero lhe apresentar meu câmera.
Sou Ondricek — disse eu, estendendo a mão para a menina.
A menina fez um aceno de cabeça.
Estamos bastante atrapalhados, senhorita. Estou procurando exteriores para meu próximo filme. Meu assistente, que conhece bem a região, devia nos esperar aqui, mas não veio. Estamos sem saber por onde começar nossa visita pela cidade e arredores. Meu câmera — acrescentou Martin, com uma ponta de ironia — estuda o problema neste grosso livro alemão, mas infelizmente não vai achar nada.
Essa alusão ao livro do qual eu ficara privado uma semana me irritou. Passei ao ataque contra meu diretor.
É pena que não tenha se interessado mais por este livro. Se se ocupasse mais seriamente da preparação de seus filmes e não deixasse todo o trabalho de documentação para os assistentes, eles seriam talvez menos superficiais e conteriam menos bobagens. — Depois apresentei minhas desculpas à moça. — Perdão, senhorita. Não queríamos importuná-la com nossas discussões profissionais. Estamos preparando um filme histórico sobre a cultura etrusca na Boêmia.
Sei — disse a moça inclinando-se.
É um livro apaixonante, veja!
Entreguei o livro à moça, que o segurou com um temor quase religioso e pôs-se a folheá-lo distraidamente para atender ao que lhe pareceu ter sido uma sugestão minha.
Acho que o castelo de Pchacek não fica muito longe daqui. Era o centro dos etruscos tchecos, mas como se vai até lá? — perguntei ainda.
Fica a dois passos daqui — respondeu a moça que de repente se animara, pois o fato de conhecer o caminho para Pchacek oferecia-lhe por fim um terreno mais sólido nesse diálogo um tanto incoerente.
Como? Conhece esse castelo? — perguntou Martin simulando um grande alívio.
Claro — disse a moça. — Fica a uma hora daqui.
A pé? — perguntou Martin.
É, a pé — respondeu a moça.
Mas nós estamos de carro — disse eu.
Seja nosso navegador — disse Martin.
No entanto preferi não continuar o rito habitual do jogo de palavras, pois tenho um diagnóstico psicológico mais firme do que Martin; senti que algumas brincadeiras fáceis poderiam nos prejudicar e que uma seriedade total seria nossa melhor aliada.
Não queremos abusar de seu tempo, senhorita — disse eu —, mas se puder nos dedicar uma hora ou duas para nos mostrar os lugares que queremos ver nessa região, ficaríamos muito gratos.
Bem — disse a moça inclinando-se de novo —, eu gostaria, mas... — Só nesse momento percebemos que ela carregava uma cesta de compras onde havia dois pés de alface —; tenho de levar a alface para mamãe, mas é bem perto daqui e volto logo.
Claro, agora, tem de levar a alface para sua mãe como uma boa menina — disse. — Nós ficamos esperando aqui.
Está bem. Não vou demorar mais do que dez minutos. Ela se inclinou mais uma vez e depois foi se afastando com uma pressa em que se percebia interesse.
Nossa Senhora! — disse Martin.
De primeira ordem, não é?
Concordo. Estou disposto a sacrificar por ela as duas enfermeiras.
Milan Kundera, in Risíveis Amores

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