Ilustração: Rodrigo Rosa
[…]
No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam.
Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se
queira. Viver é muito perigoso...
A
que, o que logo vi, que Marcelino Pampa, por bem de seu dispor, não
dava altura. A tento de se acertar nos primeiros rumos de se mexer,
ele me chamou, mais João Concliz. ― Os Judas estão aqui mesmo, de
nós a umas quinze léguas, e sabem da gente. Deveras atacar, não
atacam, com este tempo de todas chuvas e ribeirões cheios. Mas vão
fechando modo de rodear a gente, de menos longe, porque a quantidade
deles é à farta... Recurso, que eu acho, é dois! ou se fugir para
o chapadão, enquanto tempo ― mas é perder toda esperança e
diminuir da vergonha... Ou, então, forçar tudo e experimentar um
caminho por entremeio deles! se vai para a outra banda do Rio, caçar
João Goanhá e os outros companheiros... Mais ainda não sei, quero
toda razoável opinião. Assim ele, Marcelino Pampa, disse. ― Mas,
se souberem a notícia que Medeiro Vaz morreu, hoje mesmo é capaz
que sejam de vir em riba de nós... ― foi o que João Concliz
achou; e estava muito certo. Eu não atinava com o que dizer, as
confusões dessas horas me encostavam. O que era, na situação, que
Medeiro Vaz havia de fazer? E Joca Ramiro? E Sô Candelário? Ao
esmo, esses pensamentos em mim. Ai de, foi que reconheci como súcia
de homens carece de uma completa cabeça. Comandante é preciso, para
aliviar os aflitos, para salvar a ideia da gente de perturbações
desconformes. Não sabia, hoje será que sei, a regra de nenhum
meio-termo. Sem ação, eu podia gastar ali minha vida inteira,
debulhando. Também, logo depois, depois de muitos silêncios e
poucas palavras, Marcelino Pampa resolveu que, de tarde, nossa
conversa ia ter repetição. Atontados, três.
Dali,
fui para perto de Diadorim. ― Riobaldo, ― ele mal disse ― você
está vendo que não temos remédio... Aí, esbarrou, pensou um
tempo, com uma mão por cima da outra. ― E vocês, que foi que
determinaram de se fazer? ― me perguntou. Respondi! ― Hoje de
tarde é que se toma decisão, Diadorim. Você está mal satisfeito?
Ele endireitou o corpo. Foi, falou! ― Sei o meu. Cá por mim, isso
tudo pouco adianta. Quente quero poder chegar junto dum dos Judas,
para terminar! Eu sabia que ele falava coisas de pelejar por cumprir.
Eu tinha mais cansaço, mais tristeza. ― Quem sabe, se... Para ter
jeito de chegar perto deles, até se não era melhor... ― assim ele
desabafou, em trago; e recolhido num estado de segredo. Por seus
grandes olhos, onde aquilo redondeou, cri que armasse agarrar o
comando, por meio de acender o bando todo em revolta. Qualquer
loucura, semelhante, era a dele. Mas, não; mais disse: ― Foi você,
mesmo, Riobaldo, quem governou tudo, hoje. Você escolheu Marcelino
Pampa, você decidiu e fez... Era. Gostei, em cheio, de escutar isso,
soprante. Ah, porém, estaquei na ponta dum pensamento, e agudo temi,
temi. Cada hora, de cada dia, a gente aprende uma qualidade nova de
medo!
Mas,
depois de janta, quando estávamos outra vez reunidos ― Marcelino
Pampa, eu e João Concliz, ― não se teve nem o tempo de
principiar. Pelo que ouvimos: um galope, o chegar, o riscar, o
desapêio, o xaxaxo de alpercatas. Sendo assim o Feliciano e o
Quipes, que traziam um vaqueirinho, escoltado. Que vieram quase
correndo. O vaqueirinho não devia de ter mais de uns quinze anos, e
as feições dele mudavam ― de mestre pavor.
― Arte,
que este tal passou, às fugas, meio arupa. Pegamos. Aí ele tem
grande coisa pra contar... ― e empurraram um pouco o vaqueirinho.
De medo ― a gente olhava para ele ― e de nossos olhos ele se
desencostava. Afe, por fim, bebeu gole de ar, e soluceou:
― E
um homem... Só sei... E um homem...
― Te
acerta, mocinho. Aqui você está livre e salvo. Aonde é que está
indo? ― Marcelino Pampa regrou.
― E
briga enorme... E um homem... Vou indo pra longe, para a casa de meu
pai... Ah, é um homem... Ele desceu o Rio Paracatú, numa balsa de
burití...
― Que
foi mais que o homem fez? ― então João Concliz perguntou.
― Deu
fogo... O homem, com mais cinco homens... Avançaram do mato, deram
fogo contra os outros. Os outros eram montão, mais duns trinta. Mas
fugiram. Largaram três mortos, uns feridos. Escaramuçados. Ei! E
estavam a cavalo... O homem e os cinco dele estão a pé. Homem
terrível... Falou que vai reformar isto tudo! Vieram pedir sal e
farinha, no rancho. Emprestei. Tinham matado um veadinho campeiro, me
deram naca de carne...
― Qual
é que é o nome dele? Fala! Como é que os outros dizem? Aí e que
jeito, que semelhança de figura é que ele tem?
― Ele?
O jeito que é o dele, que ele tem? Em é mais baixo do que alto, não
é velho, não é moço... Homem branco... Veio de Goiás... O que os
outros falam e tratam! Deputado. Desceu o Rio Paracatú numa
balsa de burití... ― Estávamos em jejum de briga... ― ele mesmo
disse. Ele e seus cinco deram fogo feito feras. Gritavam de onça e
de uivado... Disse! vai remexer o mundo! Desceu o Rio Paracatú numa
balsa de burití... Desceram... Nem cavalo eles não têm...
― E
ele! Mas é ele! Só pode ser... ― aí alguém lembrou. ― E é.
E, então, está do nosso lado! ― outro completou.
― Temos
de mandar por ele... ― foi a palavra de Marcelino Pampa. ― Onde é
que estará? Na Pavoã? Alguém tem de ir lá... ― E ele... E ver a
vida! quem pensava? E é homem danado, zuretado... ― Está a favor
da gente... E ele sabe guerrear... E era. Repegava a chuva, trozante,
mas mesmo assim o Quipes e Cavalcânti montaram e saíram por ele, da
Pavoã no rumo. De certo não acharam fácil, pois até à hora de
escurecer não tinham aparecido. Mas! aquele homem, para que o senhor
saiba, ― aquele homem! era Zé Bebelo. E, na noite, ninguém não
dormiu direito, em nosso acampo. De manhã, com uma braça de sol,
ele chegou. Dia da abelha branca.
De
chapéu desabado, avantes passos, veio vindo, acompanhado de seus
cinco cabras. Pelos modos, pelas roupas, aqueles eram gente do Alto
Urucúia. Catrumanos dos gerais. Pobres, mas atravessados de armas, e
com cheias cartucheiras. Marcelino Pampa caminhou ao encontro dele;
seguinte de nosso comandante, nós formávamos. Valia ver. Essas
cerimônias.
― Paz
e saúde, chefe! Como passou?
― Como
passou, mano?
Os
dois grandes se saudavam. Aí Zé Bebelo reparou em mim:
― Professor,
ara viva! Sempre a gente tem de se avistar... De nomes e caras de
pessoas ele em tempo nenhum se esquecia. Vi que me prezava cordial,
não me dando por traidor nem falso. Riu redobrado. De repente,
desriu. Refez pé para trás.
― Vim
de vez! ― ele disse; disse desafiando, quase.
― Em
boa veio, chefe! E o que todos aqui representamos... ― Marcelino
Pampa respondeu.
― A
pois. Salve Medeiro Vaz!...
― Deus
com ele, amigo. Medeiro Vaz ganhou repouso…
― Aqui
soube. Lux eterna... ― e Zé Bebelo tirou o chapéu e se
persignou, parando um instante sério, num ar de exemplo, que a gente
até se comoveu. Depois, disse:
― Vim
cobrar pela vida de meu amigo Joca Ramiro, que a vida em outro tempo
me salvou de morte... E liquidar com esses dois bandidos, que
desonram o nome da Pátria e este sertão nacional! Filhos da égua...
― e ele estava com a raiva tanta, que tudo quanto falava ficava
sendo verdade.
― Pois,
então, estamos irmãos... E esses homens?
Os
urucuianos não abriram boca. Mas Zé Bebelo rodeou todos, num mando
de mão, e declarou forte o seguinte:
― Vim
por ordem e por desordem. Este cá é meus exércitos!...
Prazer
que foi, ouvir o estabelecido. A gente quisesse brigar, aquele homem
era em frente, crescia sozinho nas armas.
Vez
de Marcelino Pampa dizer!
― Pois
assim, amigo, por que é que não combinamos nosso destino? Juntos
estamos, juntos vamos.
― Amizade
e combinação, aceito, mano velho. Já, ajuntar, não. Só obro o
que muito mando; nasci assim. Só sei ser chefe.
Sobre
curto, Marcelino Pampa cobrou de si suas contas. Repuxou testa,
demorou dentro dum momento. Circulou os olhos em nós todos, seus
companheiros, seus brabos. Nada não se disse. Mas ele entendeu o que
cada vontade pedia. Depressa deu, o consumado!
― E
chefe será. Baixamos nossas armas, esperamos vossas ordens...
Com
coragem falou, como olhou para a gente outra vez.
― Acordo!
― eu disse, Diadorim disse, João Concliz disse; todos falaram! ―
Acordo!
Aí
Zé Bebelo não discrepou pim de surpresa, parecia até que esperava
mesmo aquele voto. ― De todo poder? Todo o mundo lealda? ― ainda
perguntou, ringindo seriedade. Confirmamos. Então ele quase se
aprumou nas pontas dos pés, e nos chamou!
― Ao
redor de mim, meus filhos. Tomo posse! Podia-se rir. Ninguém ria. A
gente em redor dele, misturando em meio nosso os cinco homens do
Urucúia. Adiante! ― Pois estamos. E o duro diverso, meu povo. Mas
os assassinos de Joca Ramiro vão pagar, com
seiscentos-setecentos!... ― ele definiu, apanhando um por um de nós
no olhar. ― Assassinos ― eles são os Judas. Desse nome,
agora, que é o deles... ― explicou João Concliz.
― Arre,
vote! dois judas, podemos romper as alelúias! Alelúia! Alelúia!
Carne no prato, farinha na cúia!... ― ele aprovou, deu aquilo
feito um viva. Nós respondemos. E assim era que Zé Bebelo era. Como
quando trovejou: desse trovoo de alto e rasto, dos gerais,
entrementes antes dos gotêjos de chuva esquentada: o trovão afunda
largo, pé da gente apalpa a terra. Conforme foi: trovejou de
cala-a-boca ― e Zé Bebelo tocou um gesto de costas da mão,
respeitoso disse: ― Isto é comigo... Do que se tratava, retorno e
conto, ele o seguinte revelou: ― Tudo eu não tinha, com os meus,
munição para nem meia-hora... A gente reconheceu mais a coragem
dele. Isto é, qualquer um de nós sabia que aquilo podia ser
mentira. Mesmo por isso, somenos, por detrás de tanta papagaiagem um
homem carecia de ter a valentia muito grande.
Guimarães
Rosa, in Grande sertão: veredas
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