sexta-feira, 14 de junho de 2019

Uma arma no primeiro ato

Todas as predições que aparecem neste livro não são mais do que uma tentativa de discutir os dilemas da atualidade e um convite para mudar o futuro. Predizer que a humanidade tentará alcançar a imortalidade, a felicidade e a divindade é muito semelhante a fazer uma previsão de que pessoas que estão construindo uma casa vão querer um gramado em seu jardim. Soam como coisas muito prováveis. Mas, uma vez ditas em voz alta, pode-se começar a pensar em alternativas.
As pessoas ficam pasmas e confusas com os sonhos de imortalidade e divindade não porque parecem exóticos e improváveis, mas porque manifestá-los tão acintosamente é algo incomum. Porém, muita gente, quando começa a pensar sobre isso, se dá conta de que efetivamente faz sentido. Apesar da arrogância desses sonhos tecnológicos, ideologicamente eles são notícia antiga. Por trezentos anos o mundo tem sido dominado pelo humanismo, que santifica a vida, a felicidade e o poder do Homo sapiens. A tentativa de alcançar a imortalidade, a felicidade e a divindade apenas conduz os duradouros ideais humanistas a sua conclusão lógica. Ela põe abertamente sobre a mesa aquilo que por muito tempo mantivemos debaixo do guardanapo.
Mas agora eu gostaria de pôr outra coisa sobre a mesa: uma arma. Uma arma que aparece no primeiro ato para ser disparada no terceiro. Os capítulos seguintes discutem como o humanismo — o culto ao humanismo — conquistou o mundo. Entretanto, a ascensão do humanismo também traz as sementes de sua derrocada. Ainda que a tentativa de elevar os humanos à condição de deuses leve o humanismo a sua conclusão lógica, ela simultaneamente expõe os defeitos inerentes a ele. Se você começa com um ideal defeituoso, só vai perceber seus defeitos quando o ideal estiver prestes a se realizar.
Já podemos ver esse processo em ação nas enfermarias de um hospital geriátrico. Em virtude de uma crença inflexível na santidade da vida humana, mantemos pessoas com vida até que atinjam um estado tão deplorável que somos obrigados a perguntar: “O que exatamente é sagrado aqui?”. Em face de crenças humanistas semelhantes, é provável que no século XXI empurremos a humanidade como um todo para além de seus limites. A mesma tecnologia que pode elevar os seres humanos à condição de deuses também pode fazer com que os humanos sejam irrelevantes. Por exemplo, é provável que computadores suficientemente poderosos para compreender e superar os mecanismos do envelhecimento e da morte sejam igualmente poderosos para substituir os humanos em todas as tarefas.
Por isso, a agenda real no século XXI encaminha-se para ser muito mais complicada do que sugere este longo capítulo de abertura. Atualmente, poderia parecer que a imortalidade, a felicidade e a divindade ocupam a parte principal de nossa agenda. Mas, assim que estivermos próximos de alcançar essas metas, as reviravoltas resultantes provavelmente nos desviarão para destinos totalmente diferentes. O futuro descrito neste capítulo é o futuro do passado — isto é, um futuro baseado nas ideias e esperanças que dominaram o mundo nos últimos trezentos anos. O futuro real — isto é, um futuro nascido das novas ideias e esperanças do século XXI — pode ser completamente diferente.
Para compreender tudo isso, precisamos retroceder e investigar o que o Homo sapiens realmente é, como o humanismo se tornou a religião dominante no mundo e por que é provável que a tentativa de concretizar o sonho humanista cause a sua desintegração. Esse é o plano básico deste livro.
A primeira parte do livro examina a relação entre o Homo sapiens e outros animais, numa tentativa de compreender o que faz nossa espécie tão especial. Alguns leitores poderão se perguntar por que os animais recebem tanta atenção em um livro sobre o futuro. Na minha opinião, não se pode realizar um debate sério sobre a natureza e o futuro da humanidade sem começar com nossos colegas animais. O Homo sapiens faz o melhor que pode para esquecer esse fato, mas ele também é um animal. E é duplamente importante lembrar nossas origens numa época em que buscamos nos tornar deuses. Nenhuma investigação de nosso futuro divino pode ignorar nosso passado animal, ou nossas relações com outros animais — porque a relação entre humanos e animais é o melhor modelo que temos para as futuras relações entre super-humanos e humanos. Você quer saber como ciborgues superinteligentes poderiam tratar humanos normais de carne e osso? É melhor começar a investigar como os humanos tratam seus primos animais menos inteligentes. A analogia não é perfeita, é claro, porém é o melhor arquétipo que podemos observar, e não só imaginar, no presente.
Com base nas conclusões da primeira parte do livro, a segunda parte examina o mundo bizarro que o Homo sapiens criou no último milênio e o percurso que nos trouxe à nossa encruzilhada atual. Como é que o Homo sapiens se deixou levar pelo credo humanista, de acordo com o qual o Universo gira em torno da humanidade, e os humanos são a fonte de todo significado e de toda autoridade? Quais são as implicações econômicas, sociais e políticas desse credo? Como é que ele formata a nossa vida diária, nossa arte e nossos desejos mais secretos?
A terceira e última parte retorna ao início do século XXI. Fundamentada num entendimento muito mais profundo da humanidade e do credo humanista, ela descreve nossos apuros e nossos possíveis futuros. Por que as tentativas de realizar o humanismo poderiam resultar em sua derrocada? Como poderia a busca da imortalidade, da felicidade e da divindade sacudir os fundamentos de nossa crença na humanidade? Que sinais prenunciam essa catástrofe, e como isso se reflete nas decisões que tomamos no dia a dia? E se o humanismo realmente está em perigo, o que poderia ocupar seu lugar? Essa parte do livro não consiste num mero filosofar ou num predizer ocioso do futuro. Em vez disso, ela esquadrinha nossos smartphones, os costumes de paquera e namoro e o mercado de trabalho em busca de pistas do que está por vir.
Para os verdadeiros crentes no humanismo, tudo isso pode soar muito pessimista e deprimente. Mas é melhor não se precipitar nas conclusões. A história testemunhou a ascensão e a queda de muitas religiões, impérios e culturas. Essas reviravoltas não são necessariamente ruins. O humanismo dominou o mundo por trezentos anos, o que não é tanto tempo assim. Os faraós governaram o Egito por 3 mil anos, e os papas dominaram a Europa durante um milênio. Se alguém dissesse a um egípcio no tempo de Ramsés II que um dia não existiriam mais faraós, ele ficaria perplexo. “Como é possível viver sem um faraó? Quem vai garantir a ordem, a paz e a justiça?” Se você dissesse às pessoas na Idade Média que dentro de alguns séculos Deus estaria morto, elas ficariam horrorizadas. “Como podemos viver sem Deus? Quem vai dar um significado à vida e nos proteger do caos?”
Em retrospecto, muitos pensam que a derrocada dos faraós e a morte de Deus foram desenvolvimentos positivos. Talvez o colapso do humanismo seja também benéfico. As pessoas comumente têm medo da mudança porque temem o desconhecido. Mas a única grande constante da história é que tudo muda.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

Nenhum comentário:

Postar um comentário