Não
é que lá para meio-dia a figueira, por não ter o que fazer, se
esforçou para pensar. O esforço era tão grande que até caíram no
chão algumas de suas folhas. E ela enfim teve um pensamento.
O
pensamento era o seguinte:
A
vida do galo e da galinha é uma verdadeira festa. Ovidio cocorica,
as galinhas põem ovos. Mas e eu? eu, que nem figo dou?
E
patati e patatá.
O
pensamento da figueira apodreceu e virou inveja. Apodreceu ainda mais
e virou vingança. A figueira, que não dava frutas e não cantava,
resolveu enriquecer à custa dos outros. Queria se aproveitar dos
filhos de Ovidio, Odissea e outras aves. Se ao menos cantasse ela
perdoaria.
Mas
assim não. (Au. au, au!)
De
pensamento em pensamento, todos cheios de raiva, a figueira chegou a
uma infeliz solução: ia fazer uma coisa que você não adivinha.
Sabe
o quê? Essa danada de figueira entrou em contato com uma nuvem
preta que era bruxa. E pediu:
— Bruxa,
bruxinha, faça com que os ovos sejam meus, mesmo que não cocorique
como Ovidio! Quero vender esses ovos e ganhar muito dinheiro!
Foi
assim que falou e nos seus olhos havia um brilhareco de
sem-vergonhice.
A
bruxa má se chamava Oxelia. O ‘O’ etc. etc., você já sabe.
Ela, uma vez consultada, nem precisou pensar muito: era tão ruim que
era nuvem que nem chover chovia. E vou contar mais: ela quis fazer
favor à figueira porque queria que essa, no fim, levasse a pior.
Desculpe, mas ainda não conto agora qual foi o fim. Aguarde.
Quer
saber o resultado da conversa da figueira com Oxelia? Foi o seguinte:
de noite as folhas da figueira ficavam acesas como se o Sol batesse
nelas.
E
as galinhas, pensando que era de dia, punham ovos.
A
figueira também tinha pedido a Oxelia para que as galinhas botassem
ovos no chão, junto das raízes.
O
que aconteceu? Aconteceu que as galinhas ficaram assustadas porque
nunca mais dormiam e botavam ovo sem parar, o tempo todo. Quanto a
Ovidio, ele se estrepou: como pensava que era de dia, ficava rouco de
tanto cocoricar.
(Pirilim-pim-pim,
pirilim-pim-pim, pirilim-pim-pim)
Enquanto
isso, a figueira juntava ovos que não era vida e tudo para vender e
virar milionária. E nada pagava às galinhas, nem com milho, nem com
minhoca, nem com água. Era só aquela escravidão.
Odissea,
vendo as coisas mal paradas, cacarejou para Ovidio:
— Estamos
exaustas, preciso ter uma conversa séria com você.
No
que ela disse, pôs cansada um ovo.
(Au,
au, au. Estou latindo com muita raiva e Clarice está até
assustada.)
Ovidio,
assim como Odissea, era um galo que pensava muito. Conversaram no
fundo do quintal, e patati e patatá, e patati e patatá. Passaram
dois dias se entendendo com palavras de aves.
Resultado?
O
resultado foi esperteza daquelas.
Não
havia dúvida: eles iam contra a figueira ditadora, iam exigir os
seus direitos, pôr ovos para eles mesmos, reclamar comida, água,
dormida e descanso.
Você
está pensando com certeza que Oniria não tomava providências.
Resposta: ela e o Onofre tinham viajado e não sabiam que desgraça
estava acontecendo no galinheiro.
Tinham
deixado um empregado tomar conta de tudo, mas esse empregado, de nome
Oquequê (o ‘O’ de ovo, e assim por diante), esse empregado era
preguiçoso e só fazia comer, dormir e namorar, sem tomar conta de
nada.
Devo
dizer que de dia a figueira não passava de uma figueira comum, para
não dar na vista de quem a observasse.
Quando
todos dormiam é que ela se acendia toda em luzes, conforme Oxelia
combinara. Odissea e Ovidio resolveram uma coisa que você vai saber
agora mesmo.
Eles
cochicharam a resolução para as outras aves num patati e patatá.
E
quando chegou a noite perigosa e a figueira embruxou-se em
brilharecos de luz — bem, as galinhas todas, lideradas pelo
presidente e presidenta delas, quer dizer, por Ovidio e Odissea,
fizeram um esforço de vôo e empoleiraram-se subindo nos galhos da
figueira. E de lá de cima botavam ovos. Você acha que isso é
bobagem delas?
Pois,
au, au, au, é engano seu, O que é que acontecia? Acontecia que os
ovos caíam no chão, quebrando-se eles todos, e era casca para um
lado, gemarada para outro, claras por aí mesmo, tudo apodrecendo na
terra. É uma pena sacrificar tanto ovo? É, mas às vezes a gente
precisa fazer um sacrifício.
A
figueira ficou horrorizada com o desperdício. Era um prejuízo
danado. E nem ao menos ela gostava de omelete. E toca os ovos a
caírem. Cada ovo que caía, fazia no chão o seguinte barulho:
pló-quiti, pló-quiti, pló-quiti.
Ao
mesmo tempo, Ovidio começou a cocoricar:
— Queremos
a liberdade de cantar só de dia!
As
galinhas cacarejaram ao mesmo tempo:
— Queremos
só pôr ovo só quando decidirmos e queremos os ovos para nós! São
os nossos filhos!
A
barulheira deixava a figueira meio surda. Bem que ela quis consultar
a bruxa sobre o que deveria fazer. Mas Oxelia estava ocupada com
outro serviço, serviço que era de maldade também.
A
figueira estava meio endoidecida e implorou auxílio especial, como
consulta de médico (só que médico é bom) e a feiticeira Oxelia,
cada vez mais preta, concordou em dar resposta.
Como
eu, cachorro Ulisses, disse no começo, acontece que Oxelia tinha uma
maldade tão grande que queria mal também à figueira, até então
sua companheira de ruindade. E ela disse:
— Considere-se
feliz! pois eu poderia castigar você mandando fazer uma noite de
tempestade e fazendo com que um raio caísse em cima de sua copa e
partisse em dois o seu orgulhoso tronco!
As
galinhas e os galos estavam livres, enfim! E foram dormir, pois
estavam precisando depois de tantas noites de insônia.
A
figueira ficou boba: ela não sabia até então que não se deve ser
amigo dos ruins.
Então,
muito humilhada, viu se apagarem as suas luzes.
De
madrugada, Ovidio cantou tão lindo como nunca havia cantado. E as
galinhas se espreguiçaram felizes.
Todos
estavam tão contentes que Ovidio e Odissea resolveram organizar uma
festa. E, para agradar as aves, compraram mil pirulitos.
Acontece,
porém, que elas não sabiam que pirulito é para ser chupado ou
lambido e começaram a mordê-los: crack, crack, crack com os dentes.
O que aconteceu? aconteceu que os dentes se quebraram todos. É por
isso que as aves não têm dentes. Pelo menos é isso que eu penso,
au, au, au.
(Pirilim-pim-pim,
pirilim-pim-pim, pirilim-pim-pim)
Foi
quando Oniria e Onofre voltaram da viagem. E encontraram muita
alegria entre os galináceos e gostaram de vê-los. Mas observaram
que eles não tinham mais dentes. Então Oniria disse para Onofre:
— Vamos
deixar que eles visitem outras terras porque pode ser que encontrem
uma comida nova que não precisa ser mastigada!
Dito
e feito. E daí a pouco deixaram Ovidio e Odissea levar a turma toda
para passear.
Era
uma beleza o campo: uma relva verdinha e fresquinha onde as aves
esfregavam os bicos.
Uma
delícia.
Mas
a fome veio. E cadê o que comer? Pois bem. Ovidio e Odissea se
lembraram de uma bruxa muito da boa chamada Oxalá — o O’ do ovo,
‘xalá’ por vaidade. Ela era mágica e atendeu ao pedido.
Guiou-os pela mata afora e mostrou-lhes um pé de jabuticaba.
Você
sabe o que é jabuticaba?
É
uma fruta redonda e preta que só existe no Brasil.
Ovidio
e Odissea ficaram contentes porque sabiam que Oxalá sempre cumpria o
que prometia.
Então
pediram mais.
— Oxalazinha,
vê se dá um jeito para fazer com que a nuvem preta, a Oxelia, deixe
de ser ruim!
Oxalá
sorriu e disse:
— Pois
bem: ela não vai ser mais perigosa e daqui a umas horas ela vai
chover. E chover em cima da figueira. Mas agora quero lhes dizer uma
coisa: a jabuticaba é fruta de se comer, mesmo que não se tenham
dentes. Meio com medo, as aves pegaram com o bico as jabuticabas. E
com o bico mesmo estalaram essas frutinhas. O barulho era assim:
plique-ti, plique-ti, plique-ti.
Acharam
a jabuticaba uma maravilha. Embora tivesse no fundo um azedozinho.
Como você sabe, a jabuticaba tem um caroço que é doce e depois de
chupado um pouco azedo.
Elas
crescem na jabuticabeira, tanto nos galhos quanto no tronco,
enchendo-a de mil jabuticabas. Estas, quando estão bem maduras e
redondas, caem no chão. A gente pisa nelas e o barulho é assim:
plóqui-ti-ti, plóqui-ti-ti, plóqui-ti-ti.
Os
galos e as galinhas se deliciaram ao pisar nelas: o barulho era
gostoso, dava um arrepio bom. Mas ainda não tinham descoberto que a
fruta era de se comer.
Enquanto
isso, Odissea disse a Ovidio:
— Já
que estamos livres e felizes, vamos perdoar a figueira que está tão
triste? Acho que ela se arrependeu. Vamos pedir a Oxalá que cuide
dela?
— Falou
e disse, respondeu Ovidio.
Olharam
para o céu e viram Oxalá.
Ela
estava linda no céu azul-claro: branca e dourada e brilhosa pelo Sol
que batia nela. Ouviu o pedido de perdão e disse:
— Está
bem, vou perdoar a figueira. E mais ainda: vou fazer com que ela
tenha filhos, quer dizer, figos.
Mas
aconteceu uma coisa: as aves ficaram com o caroço das jabuticabas na
boca e não sabiam o que fazer.
Perguntaram
então a Odissea e a Ovidio:
— Devemos
engolir ou não engolir o caroço?
Ovidio
e Odissea ficaram bobos: não sabiam o que responder. Pensaram em
pedir ajuda a Oxalá mas acharam que já tinham pedido muito e que
tinham de se arranjar sozinhos.
(Pirilim-pim-pim,
pirilim-pim-pim, pirilim-pim-pim)
Eu,
que sou cachorro, não sei o que responder às aves.
— Engole-se
ou não se engole o caroço?
Você,
criança, pergunte isso à gente grande.
Enquanto
isso, eu digo:
—Au,
au, au!
E
Clarice entende que eu quero dizer:
— Até
logo, criança! Engole-se ou não se engole o caroço?
Eis a questão.
Clarice
Lispector, in Quase de verdade
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