domingo, 23 de junho de 2019

Os recursos da blasfêmia

Encontrar Hosana naqueles dias era para Nando um tedioso suplício. Todos no mosteiro achavam Hosana um cacete. O pobre André era laboriosamente evitado quando entrava em crise exaltada demais a propósito da Segunda Vinda, mas, fora da sua obsessão, era homem de temperamento manso e cordato, amigo de ajudar os outros. Hosana era o contrário, e como considerava todos os demais padres imbecis completos, com exceção de Nando, era Nando quem mais o sofria. Antigamente aturar Hosana constituía para Nando uma caridade razoável, até interesseira: diante das blasfêmias e dos crus pecados de Hosana qualquer um ficava sofrível aos olhos de Deus. Mas agora, com os ingleses e com Francisca a lhe darem tanto trabalho mental, Nando precisava de todas as suas forças para si próprio. Hosana era um barulho à flor d’água enquanto Leslie e Winifred eram às vezes pequenos abalos subterrâneos e Francisca um cardume a remexer o tempo todo o fundo de limo e noite.
Eu creio em tudo aquilo que aprendi e que prego — disse Nando.
Não existe ninguém — disse Hosana — que acredite em tudo aquilo que aprendemos e que devemos pregar. Ouça direito: ninguém!
Há sempre andaimes em algum ponto interno ou externo da Basílica de São Pedro — disse Nando. — É preciso não confundi-los com a construção.
Não vem com imagem de sermão para cima de mim não. Deus já desembarcou aqui morto da silva. Sua carne de adorar vinha tão podre no crucifixo quanto as carnes de comer vinham podres no porão do navio. Mas o Brasil está até hoje vendo se digere aquele Deus decomposto. Para serem tragáveis as carnes do porão eram esfregadas com canela, pimenta, açafrão. O método permanece. Como Deus hoje começa a estrebuchar nas salas de visita, volta agora pelas cozinhas, fedendo a alho: Oxum, Ogã, Iansã.
Hosana, você não choca mais ninguém. Esgotou os recursos da blasfêmia.
Enquanto você se diverte com a ruiva e a Chiquinha.
Não vejo por que você só considera a mulher como objeto de pecado — disse Nando. — A companhia de Winifred e de Francisca me dá prazer, sim. São ambas obras de Deus justas e bonitas e delas podem resultar coisas boas para o mundo.
Hosana ficou violento, punhos cerrados sobre a mesa.
Nando, você fala de mulher como quem fala do Plano de Obras Contra as Secas. Mas agora escuta. A Deolinda, sabe, minha prima, tem outro amante. Por quê? Quem é que arranjou o amante para ela? O bode, o Anselmo. Me proibiu de ir lá e Deolinda não vive sem homem. Deolinda é mulher-mulher, não tem brio não, só tem cio. Nada de construtivo ali, nada de coisas boas. Da última vez trepei nela de noite no quintal. Ela gania feito uma doida debaixo dum luar de bronze. Eu vou matar Deolinda, Nando.
Hosana retirou um punho de cima da mesa. Sacou do bolso da batina um revólver.
Smith & Wesson, calibre 32. Jeitosinho e maneiro como você, Nando. Segura ele. Segura mesmo.
Não!
Ah — disse Hosana —, você está sentindo essa volúpia de homem por pistola. A morte compacta. Está vibrando de amor à primeira vista mas não ousa. Toma. Pega no revólver.
Hosana segurou a mão direita de Nando, abriu-a, aninhou na palma a coronha, fechou os dedos em torno. Nando cerrou a mão instintivamente, enfiou o indicador na alça do gatilho.
Está carregado?
Até o pescoço — disse Hosana.
Hosana retomou a arma, empurrou o fecho lateral e fez saltar o tambor. Girou-o para mostrar a Nando as balas douradas nos nichos negros. O revólver parecia um bicho vivo e palpitante na mão de Hosana.
Hosana, eu quero o teu revólver.
Só se for para matar o inglês.
Não estou de mangação, Hosana. Me dê o revólver ou sou obrigado a ir falar ao Superior.
Nando. Um pouco de honra comum cabe numa batina, sabe?
Pois então me dê também sua palavra de homem. Jure que não vai matar Deolinda nenhuma.
Está bem — disse Hosana de repente calmo. — Eu dou a palavra. Mas uma vingança do barbaças eu tiro. Você sabe que tem um repórter aí que já ouviu falar com belos detalhes do túnel?
Hosana, você...
Vai, vai dizer a ele que fui eu o informante. Duvido, Nandinho. Você vai ficar entre os dois deveres, de lealdade ao barbaças e a mim. Ai! A virtude é cômica.
Antonio Callado, in Quarup

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