Encontrar
Hosana naqueles dias era para Nando um tedioso suplício. Todos no
mosteiro achavam Hosana um cacete. O pobre André era laboriosamente
evitado quando entrava em crise exaltada demais a propósito da
Segunda Vinda, mas, fora da sua obsessão, era homem de temperamento
manso e cordato, amigo de ajudar os outros. Hosana era o contrário,
e como considerava todos os demais padres imbecis completos, com
exceção de Nando, era Nando quem mais o sofria. Antigamente aturar
Hosana constituía para Nando uma caridade razoável, até
interesseira: diante das blasfêmias e dos crus pecados de Hosana
qualquer um ficava sofrível aos olhos de Deus. Mas agora, com os
ingleses e com Francisca a lhe darem tanto trabalho mental, Nando
precisava de todas as suas forças para si próprio. Hosana era um
barulho à flor d’água enquanto Leslie e Winifred eram às vezes
pequenos abalos subterrâneos e Francisca um cardume a remexer o
tempo todo o fundo de limo e noite.
— Eu
creio em tudo aquilo que aprendi e que prego — disse Nando.
— Não
existe ninguém — disse Hosana — que acredite em tudo aquilo que
aprendemos e que devemos pregar. Ouça direito: ninguém!
— Há
sempre andaimes em algum ponto interno ou externo da Basílica de São
Pedro — disse Nando. — É preciso não confundi-los com a
construção.
— Não
vem com imagem de sermão para cima de mim não. Deus já desembarcou
aqui morto da silva. Sua carne de adorar vinha tão podre no
crucifixo quanto as carnes de comer vinham podres no porão do navio.
Mas o Brasil está até hoje vendo se digere aquele Deus decomposto.
Para serem tragáveis as carnes do porão eram esfregadas com canela,
pimenta, açafrão. O método permanece. Como Deus hoje começa a
estrebuchar nas salas de visita, volta agora pelas cozinhas, fedendo
a alho: Oxum, Ogã, Iansã.
— Hosana,
você não choca mais ninguém. Esgotou os recursos da blasfêmia.
— Enquanto
você se diverte com a ruiva e a Chiquinha.
— Não
vejo por que você só considera a mulher como objeto de pecado —
disse Nando. — A companhia de Winifred e de Francisca me dá
prazer, sim. São ambas obras de Deus justas e bonitas e delas podem
resultar coisas boas para o mundo.
Hosana
ficou violento, punhos cerrados sobre a mesa.
— Nando,
você fala de mulher como quem fala do Plano de Obras Contra as
Secas. Mas agora escuta. A Deolinda, sabe, minha prima, tem outro
amante. Por quê? Quem é que arranjou o amante para ela? O bode, o
Anselmo. Me proibiu de ir lá e Deolinda não vive sem homem.
Deolinda é mulher-mulher, não tem brio não, só tem cio. Nada de
construtivo ali, nada de coisas boas. Da última vez trepei nela de
noite no quintal. Ela gania feito uma doida debaixo dum luar de
bronze. Eu vou matar Deolinda, Nando.
Hosana
retirou um punho de cima da mesa. Sacou do bolso da batina um
revólver.
— Smith
& Wesson, calibre 32. Jeitosinho e maneiro como você, Nando.
Segura ele. Segura mesmo.
— Não!
— Ah
— disse Hosana —, você está sentindo essa volúpia de homem por
pistola. A morte compacta. Está vibrando de amor à primeira vista
mas não ousa. Toma. Pega no revólver.
Hosana
segurou a mão direita de Nando, abriu-a, aninhou na palma a coronha,
fechou os dedos em torno. Nando cerrou a mão instintivamente, enfiou
o indicador na alça do gatilho.
— Está
carregado?
— Até
o pescoço — disse Hosana.
Hosana
retomou a arma, empurrou o fecho lateral e fez saltar o tambor.
Girou-o para mostrar a Nando as balas douradas nos nichos negros. O
revólver parecia um bicho vivo e palpitante na mão de Hosana.
— Hosana,
eu quero o teu revólver.
— Só
se for para matar o inglês.
— Não
estou de mangação, Hosana. Me dê o revólver ou sou obrigado a ir
falar ao Superior.
— Nando.
Um pouco de honra comum cabe numa batina, sabe?
— Pois
então me dê também sua palavra de homem. Jure que não vai matar
Deolinda nenhuma.
— Está
bem — disse Hosana de repente calmo. — Eu dou a palavra. Mas uma
vingança do barbaças eu tiro. Você sabe que tem um repórter aí
que já ouviu falar com belos detalhes do túnel?
— Hosana,
você...
— Vai,
vai dizer a ele que fui eu o informante. Duvido, Nandinho. Você vai
ficar entre os dois deveres, de lealdade ao barbaças e a mim. Ai! A
virtude é cômica.
Antonio
Callado, in Quarup
Nenhum comentário:
Postar um comentário