Se
existem homens felizes nesta terra, por que eles não gritam, por que
eles não descem para as ruas a fim de proclamar sua alegria? Por que
tanta discrição, tanta reserva? Se eu sentisse em mim uma alegria
permanente, uma irresistível propensão à serenidade, eu faria com
que todos os homens conhecessem-na, eu daria vazão a toda esta
euforia.
Se
a felicidade existe, devemos comunicá-la. Mas talvez os indivíduos
verdadeiramente felizes não tenham consciência disto. Se assim for,
nós poderíamos oferecer-lhes uma parte da nossa consciência em
troca de uma parte da inconsciência deles. Por que a dor tem somente
lágrimas e gritos, enquanto o prazer apenas frissons? Se o homem
tomasse tanto consciência do prazer quanto da dor, ele não teria
que compensar suas alegrias. A repartição das dores e dos prazeres
não seria incomparavelmente mais justa?
Se
as dores não se deixam esquecer, é porque elas invadem
desmesuradamente a consciência. Assim, aqueles que têm muito a
esquecer não são outros senão os mesmos que muito sofreram.
Somente as pessoas normais não têm nada a esquecer.
Enquanto
as dores têm um peso e uma individualidade, os prazeres desfazem-se
e fundem como formas de contornos mal definidos. Evocar um prazer e
suas circunstâncias é, com efeito, extremamente difícil para nós,
pois mesmo a sua mais tênue lembrança vem reforçar a das dores.
Certamente, os prazeres não são esquecidos por completo - de uma
vida de prazeres, guardar-se-á apenas uma leve desilusão, enquanto
o homem que muito sofreu chega, na melhor das hipóteses, a uma
resignação amarga.
É
um vergonhoso preconceito afirmar tanto que os prazeres são egoístas
e apartam o homem da vida, quanto pretender que as dores prendem-nos
ao mundo. A frivolidade destes preconceitos revolta e sua origem
livresca revela a nulidade de todas as bibliotecas aos olhos de uma
experiência vivida até o fim.
A
concepção cristã que faz do sofrimento um caminho para o amor,
senão sua principal porta de acesso, é fundamentalmente errônea.
Mas seria este o único campo em que o cristianismo engana-se?
Fazendo do sofrimento o caminho para o amor, ignora-se toda a sua
essência satânica. Os degraus do sofrimento não se elevam - eles
descem; eles não conduzem ao céu, mas ao inferno.
O
sofrimento separa, dissocia; força centrífuga, ele nos desliga do
nó da vida, do centro de atração do mundo, lugar em que todas as
coisas tendem à unidade. O princípio divino caracteriza-se por um
esforço de síntese e de participação na essência do todo. De
maneira contrária, um princípio satânico habita o sofrimento -
produzindo desarticulação e trágica dualidade.
As
diversas formas de alegria fazem-nos participar inocentemente do
ritmo da vida; nós o fazemos, ainda que de maneira inconsciente, em
contato com o dinamismo da existência, cada uma das nossas fibras
ligada às pulsações irracionais do Todo. Isto vale não somente
para a alegria espiritual, mas também para todas as formas de
prazer.
O
distanciamento do mundo, responsável pelo sofrimento, conduz a uma
interiorização excessiva e, paradoxalmente, aumenta o grau de
consciência - tanto que o mundo inteiro, com seus esplendores e
trevas, torna-se exterior e transcendente. Neste ponto de separação,
assim que, irremediavelmente só, tem-se o mundo diante de si, como
poder-se-ia esquecer o que quer que seja? Sente-se então a
necessidade de esquecer somente as experiências que fizeram sofrer.
Ou, devido a um paradoxo dos mais impiedosos, desaparecem as
lembranças daqueles que gostariam de se lembrar, enquanto fixam-se
as reminiscências dos que gostariam de tudo esquecer.
Os
homens dividem-se em duas categorias: aqueles a quem o mundo oferece
ocasiões de interiorização e aqueles para quem ele permanece
exterior e objetivo. Para a interiorização, a existência objetiva
não é nada mais do que um pretexto . Assim, somente ela pode tomar
uma significação, pois uma teleologia objetiva funda-se e
justifica-se em meio a certas ilusões, que têm por defeito o fato
de que um olhar penetrante pode desmascará-las facilmente. Todos os
homens veem fogos, tempestades, desmoronamentos ou paisagens; mas
quantos veem chamas, relâmpagos, vertigens ou harmonias? Quantos,
vendo um incêndio, pensam na graça e na morte? Quantos trazem em si
uma beleza longínqua que tinge sua melancolia? Para os indiferentes,
a quem a natureza não oferece nada além de uma imagem insossa e
glacial, a vida é, ainda que ela os preencha, uma soma de ocasiões
perdidas.
Independentemente
de quão profundos tenham sido meus tormentos, ou de quão grande
tenha sido minha solidão, a distância que me separou do mundo
somente fez com que este se tornasse mais acessível para mim. Ainda
que eu não possa encontrar-lhe nem sentido objetivo, nem finalidade
transcendente, a multiplicidade das formas da existência não se
constituiu para mim em menos ocasiões permanentes de tristeza e de
encantamento. Conheci momentos em que a beleza de uma flor justificou
a meus olhos a ideia de uma finalidade universal, assim como a menor
das nuvens soube clarear momentaneamente minha visão sombria das
coisas. Os fanáticos da interiorização são capazes de extrair, do
aspecto mais insignificante da natureza, uma revelação simbólica.
É
possível que eu arraste atrás de mim tudo aquilo que nunca vi?
Assusto-me com a ideia de que tantas paisagens, livros, horrores e
visões sublimes possam ter se concentrado num pobre cérebro. Tenho
a impressão de que eles se transpuseram em mim como realidades e de
que eles pesam em meus ombros. Eis, talvez, o motivo para que eu me
sinta às vezes oprimido até o ponto de querer tudo esquecer. A
interiorização conduz ao colapso, pois o mundo penetra-nos e
mói-nos com uma força irresistível. O que há de surpreendente,
assim sendo, que as pessoas tentem recorrer a qualquer coisa - desde
à vulgaridade até à arte - com o único fim de tudo esquecer?
***
Eu
não tenho ideias - mas obsessões. Ideias, todos podem tê-las. Mas
ideias nunca provocaram o colapso do que quer que seja.
Emil
Cioran, in Nos cumes do desespero
Nenhum comentário:
Postar um comentário