segunda-feira, 3 de junho de 2019

O paradoxo do conhecimento

A predição de que no século XXI provavelmente a humanidade visará à imortalidade, à felicidade e à divindade pode encolerizar, alienar ou amedrontar muita gente. Assim, alguns esclarecimentos são necessários.
Primeiro, não é isso que a maioria das pessoas efetivamente fará no século XXI. Provavelmente desempenharemos um papel menor, se que é teremos algum papel, nesses projetos. Mesmo que a fome, a peste e a guerra se tornem menos prevalentes, bilhões de humanos que vivem em países em desenvolvimento e em localidades esquálidas continuarão a ter de lidar com a pobreza, a doença e a violência, mesmo quando as elites estiverem em busca de juventude eterna e poderes divinos. Isso parece ser patentemente injusto. Pode-se então alegar que, enquanto uma única criança morrer de desnutrição ou um só adulto for morto na guerra do tráfico, a humanidade deve concentrar todos os seus esforços no combate a esses inimigos. Apenas quando a última espada for convertida em arado poderemos voltar nossas mentes para a próxima grande causa. Mas a história não funciona assim. A agenda dos que vivem em palácios é diferente da dos que vivem em barracos, e não é provável que isso vá mudar no século XXI.
Segundo, o que se tem aqui é uma previsão histórica, e não um manifesto político. Mesmo desconsiderando a sina dos que vivem em favelas, não estamos certos, longe disso, de que devamos visar à imortalidade, à felicidade e à divindade. A adoção desses projetos específicos pode ser um grande erro. Entretanto, a história está cheia de grandes equívocos. Considerando o que fizemos no passado e nossos valores atuais, é provável que saiamos em busca da felicidade, da divindade e da imortalidade, mesmo que isso acabe por nos matar.
Terceiro, sair em busca de uma coisa não é o mesmo que obtê-la. A história não raro é moldada por esperanças exageradas. A história da Rússia no século XX foi significativamente moldada pela tentativa comunista de superar a desigualdade, mas não foi bem-sucedida. Minha previsão está focada no que o gênero humano vai tentar alcançar no século XXI, e não no que vai conseguir alcançar. Nossa futura economia, sociedade e política serão moldadas pela tentativa de superar a morte. Daí não se segue, porém, que em 2100 sejamos imortais.
Quarto, e mais importante, essa predição é menos uma profecia e mais um modo de discutir nossas escolhas atuais. Se essa discussão nos fizer optar por algo diferente, de modo que a predição se demonstre errada, melhor ainda. De que vale fazer predições se elas não forem capazes de provocar nenhuma mudança?
Alguns sistemas complexos, como o clima, são contrários a nossas predições. O processo do desenvolvimento humano, em contrapartida, reage a elas. De fato, quanto melhores nossas predições, mais reações elas criam. Paradoxalmente, enquanto acumulamos mais dados e incrementamos nosso poder de computação, os eventos tornam-se mais desenfreados e inesperados. Quanto mais sabemos, menos somos capazes de predizer. Imagine, por exemplo, que um dia especialistas decifrem as leis básicas da economia. Quando isso acontecer, bancos, governos, investidores e clientes começarão a usar esse novo conhecimento para atuar de maneiras novas e diferentes a fim de obter vantagem sobre seus competidores. Pois para que serve um novo conhecimento se não para levar a novos comportamentos? Mas, uma vez que as pessoas mudem sua maneira de se comportar, as teorias econômicas tornam-se obsoletas. Podemos saber como a economia funcionou no passado — porém não entendemos mais como funcionam no presente, e muito menos no futuro.
Esse não é um exemplo hipotético. Em meados do século XIX, Karl Marx chegou a brilhantes insights econômicos. Com base neles, predisse a ocorrência de um conflito crescente e violento entre o proletariado e os capitalistas, que terminaria com a inevitável vitória dos primeiros e com o colapso do sistema capitalista. Marx tinha certeza de que a revolução começaria em países que tinham liderado a Revolução Industrial — como Grã-Bretanha, França e Estados Unidos — e se espalharia pelo resto do mundo.
Marx esqueceu-se de que os capitalistas sabem ler. No início, só um punhado de discípulos o levou a sério e leu seus escritos. No entanto, quando essas primeiras fagulhas socialistas ganharam adesões e poder, os capitalistas ficaram alarmados. Eles também leram atentamente Das Kapital, adotando muitos instrumentos e conceituações da análise marxista. No século XX todo mundo, de pivetes na rua a presidentes, adotou uma abordagem marxista da economia e da história. Até mesmo capitalistas empedernidos, que resistiam veementemente ao prognóstico marxista, utilizavam o diagnóstico marxista. Quando a CIA analisou a situação no Vietnã ou no Chile na década de 1960, ela dividiu a sociedade em classes. Quando Nixon ou Thatcher olhavam para o globo terrestre, perguntavam-se quem controlava os meios vitais da produção. De 1989 a 1991, George Bush acompanhou o ocaso do Império Diabólico do comunismo para nas eleições de 1992 ser derrotado por Bill Clinton. A estratégia da campanha vencedora de Clinton foi resumida no mote “É a economia, estúpido!”. Marx não teria dito melhor.
Quando adotavam o diagnóstico marxista, as pessoas, coerentemente, mudavam seu comportamento. Capitalistas em países como a Grã-Bretanha e a França empenharam-se para melhorar o quinhão dos trabalhadores, fortalecer sua consciência nacional e integrá-los no sistema político. Consequentemente, quando trabalhadores começaram a votar nas eleições e os partidos de trabalhadores ganharam poder num país após o outro, os capitalistas ainda podiam dormir um sono profundo. Em decorrência, as predições de Marx resultaram em nada. Revoluções comunistas nunca aconteceram em potências mundiais de primeira linha como a Grã-Bretanha, a França e os Estados Unidos, e a ditadura do proletariado foi consignada à lixeira da história.
Esse é o paradoxo do conhecimento histórico. Conhecimento que não muda o comportamento é inútil. Mas aquele que muda o comportamento perde rapidamente a relevância. Quanto mais dados tivermos e quão melhor compreendermos a história, mais rapidamente a história alterará seu curso, e mais rapidamente nosso conhecimento se tornará obsoleto.
Séculos atrás o conhecimento humano aumentava lentamente, e, assim, políticas e economias mudavam num ritmo também lento. Hoje o conhecimento cresce a uma velocidade vertiginosa, e teoricamente deveríamos compreender o mundo cada vez melhor. Mas acontece exatamente o contrário. Nosso recém-descoberto conhecimento acarreta mudanças econômicas, sociais e políticas mais rápidas; ao tentarmos compreender o que está acontecendo, aceleramos o acúmulo de conhecimento; o que só gera reviravoltas mais rápidas e maiores. Consequentemente tornamo-nos cada vez menos capazes de fazer uma ideia do presente ou de prever o futuro. Em 1016, era relativamente fácil predizer qual seria o aspecto da Europa em 1050. Claro, dinastias poderiam cair, invasões de desconhecidos poderiam acontecer, e desastres naturais poderiam ocorrer; mas estava claro que em 1050 a Europa ainda seria governada por reis e sacerdotes, que seria uma sociedade agrícola, que a maioria de seus habitantes seria de camponeses e que fomes, pestes e guerras continuariam a ceifar muitas vidas. Em contraste, em 2016 não temos ideia de qual será o aspecto da Europa em 2050. Não somos capazes de dizer que tipo de sistema político ela terá; como estará estruturado seu mercado de trabalho; nem mesmo que tipo de corpo terão seus habitantes.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

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