Retrato de Graciliano Ramos (1937), por Cândido Portinari
— Você
vai trazer-me os seus livros, disse-me Portinari ao almoço. Quero
guardar os livros dos meus amigos. Talvez não tenha tempo de ler
tudo, mas quero guardar. Você sabe como é que é. Só tenho tempo
de ler isto.
Abriu
volumes pesados, técnicos e álbuns preciosos. Em seguida, fomos ao
“atelier” e o trabalho recomeçou, numa conversa meio monologada,
que longos silêncios interrompiam. Às cinco horas julguei que a
cabeça estivesse pronta: certamente não era preciso acrescentar-lhe
um cabelo ou uma ruga. Portinari examinou-a, virou-a, mediu-a,
murmurando frases soltas, repetindo uma que se ia tornando
estribilho:
— Eles
não sabem como é que é.
Tive
de lá voltar. Da cadeira onde me imobilizava, conseguia, entortando
um pouco os olhos, avistar um pedaço do S. João, que ocupava uma
parede da sala pequena. Tinham-me aparecido fotografias desse quadro
um ano antes, no jornal. Estava então findo, mas a composição
continuava. Fora colorido, branco e negro, novamente colorido, e
tinha experimentado numerosas transformações. Corrigira-se o
molequinho que sobe na palmeira; uma lata d’água mudara de
tamanho; o pixaim da mulata vistosa, penteado, estirado com esmero,
muito se diferençava da carapinha original. O que me preocupava
nessas devastações e renascimentos eram uns anjinhos mestiços que
avultam à direita, admirável tríade onde se concentram, depois de
excessivos retoques, os sentimentos bons e os sentimentos puros da
favela. No grupo, as minhas simpatias se fixavam na cabrochinha mais
taluda, viva, iluminada por um sorriso encantador.
— Ô
Portinari, você ainda vai mexer com esta inocente?
— Não.
Acho que está acabada. Respirei, com agradecimento e alívio. Mas,
na outra visita que fiz ao pintor, encontrei a minha amiga triste e
desfeita: uma sombra perturbara o sorriso maravilhoso. Com certeza
essa luz destoava do conjunto.
Homem
estranho, Portinari, homem de enorme exigência com a sua criação,
indiferente ao gosto dos outros, capaz de gastar anos enriquecendo
uma tela, descobrindo hoje um pormenor razoável, suprimindo-o
amanhã, severo, impiedoso. Dessa produção contínua e contínua
destruição ficou o essencial, o que lhe pareceu essencial.
Não
é arte fácil: teve um longo caminho duro, impôs-se a custo nestes
infelizes dias de logro e charlatanismo, de poemas feitos em cinco
minutos. E até nos espanta que artista assim, tão indisposto a
transigências, haja alcançado em vida uma consagração. Devemos,
porém, levar em conta as opiniões que não se manifestam porque
seria feio discordar da crítica dos Estados Unidos. Embora
considerem disforme o pé do cavador de enxada, cavalheiros prudentes
o elogiam. Isto não tira nem põe. Insensível agora às lisonjas,
como foi insensível aos ataques naqueles princípios ásperos, o
trabalhador honesto continua a aperfeiçoar seus meios de expressão,
alheio às coisas que não lhe impressionem o olho agudo. Tudo
sacrifica à ocupação que o domina, o tiraniza. Só assim poderá
realizar obras que não lhe desagradem. Porque o seu público é ele
mesmo. Naturalmente. Encolhe os ombros a certas admirações:
— Eles
não sabem como é que é.
Graciliano
Ramos, in Garranchos
Nenhum comentário:
Postar um comentário