domingo, 9 de junho de 2019

Deus, destronado por Maria

Quando Francisca fez amizade com Winifred, e passou a frequentar a casa com Levindo, havia momentos de conversa em que Nando via, depois, com horror, que discutira com naturalidade heresias de chocar mesmo pessoas apenas respeitadoras da religião, ou teses de violências contrárias por completo ao Sermão da Montanha. Como naquela noite em que Levindo parecia a princípio imune a todas as provocações, alheado da conversa, mãos dadas com Francisca. Tanto assim que Leslie, talvez para sacudir o tédio reinante, veio com sua estranha história do mundo criado e governado pela Virgem.
Tenho uma novidade para você, Nando — disse. — Sabe que também do ponto de vista negativo os holandeses de Nassau teriam deixado sua marca no Brasil? Há sinais de uma curiosa heresia que eles provocaram em Pernambuco e na Bahia. Uma das razões do encarniçamento do Santo Ofício sobre o padre Vieira foi talvez essa heresia, fruto do desespero de portugueses e brasileiros dominados pelos holandeses.
Que heresia era esta? — disse Nando.
Desanimados de rezar a Deus, que não parecia socorrê-los, deram uma espécie de golpe de Estado e puseram em seu lugar a Virgem Maria.
Nunca ouvi falar em tamanho disparate — disse Nando.
Pois teriam até construído capelas em que Deus, o trânsfuga que se passara para o lado dos holandeses protestantes, fora finalmente destronado por Maria que em todo o caso jamais tinha perdoado o sacrifício do filho na Cruz. Jesus devia ter sido salvo, com Isaac, e no entanto Deus o deixou morrer.
Nunca, mas nunca ouvi falar em tamanha extravagância — disse Nando.
Pois olhe — disse Leslie —, há uns trechos de Vieira bem estranhos, que parecem confirmar os indícios da heresia. Vou pegar aqui o livro dos Sermões e...
Ora, Leslie — disse Nando —, que maluquice! Um cristianismo mariano, sem o Cristo. Um marianismo, em suma. A civilização ocidental e mariana...
Espere — disse Leslie —, o livro de Vieira está...
Levindo desafundou da poltrona, o que fez Leslie parar no meio da frase. Levindo perguntou a Winifred:
O Nassau de que eles estão falando é o tal príncipe holandês que andou por aqui?
Ele mesmo — disse Winifred.
E o Nando e o Leslie estão discutindo os tempos dele e a questão de saber se a Virgem Maria era adorada assim ou assada?
Winifred riu.
É isto. É o que você está ouvindo.
Levindo bateu na perna, rindo a plenos pulmões.
Não é possível! O máximo! Me dá uma bebida dessas, dona Winifred. Vou encher a cara.
Você não diz nada e depois reclama da conversa dos outros? — disse Francisca.
Francisca, minha querida — disse Levindo —, eu sei que você não gosta dos meus maus modos. Mas eu estava em silêncio para ouvir os mestres. Brasil Holandês e Virgem Maria. Deus me proteja!
Levindo riu, aceitou o copo de uísque que Winifred lhe entregava e afundou de novo na poltrona. Leslie estava sorrindo mas o tom era ácido.
A gente pode ser revolucionário e conhecer história e religião — disse Leslie. — E, por falar em revolução. Vejamos se uma invocação da Virgem lhe diz alguma coisa. Nossa Senhora do O, por exemplo.
Já vi que está falando no Engenho, não? — disse Levindo. — O que é que tem a Nossa Senhora do O?
O que tem é que existe ali uma situação de grande miséria e de quase revolução. Vejo sempre seu amigo Januário instruindo e ajudando os camponeses, mas você nunca encontrei lá.
Hum... Não é tanto assim. Mas eu já disse ao Januário que aquele Engenho está bichado. No máximo a gente socorre lá uma ou outra pessoa mas os camponeses estão muito massacrados e temerosos.
Mas que diabo — disse Winifred —, não custa nada auxiliar gente que está sofrendo e lutando.
Atrasa, atrasa — disse Levindo. — O ruim na atitude de vocês estrangeiros é que gente faminta e maltratada faz mal a vocês. Então vocês ajudam os miseráveis que encontram e que perturbam a digestão de vocês. Eu não quero a miséria extinta no Senhora do O, do B ou do C. Quero acabar com ela toda, revoltar todo o mundo.
Só há mesmo estudantes e ex-estudantes, como Levindo, pensando em alterar as coisas erradas do país — disse Leslie. — Crianças brincando de revolução. Estão fazendo ao seu jeito aquilo que os pais deviam fazer. A coisa não falha: se um país tem estudantes politicamente ativos é porque os mais velhos não fazem o que devem. Os jovens agitam, em vez de estudar. Depois envelhecem ignorantes como os pais. Por isso é que o Brasil é uma eterna república de estudantes.
Quem dera que fosse, Leslie — disse Levindo. — Tem muita gente que acaba o curso e enterra o time. O que é preciso é gente nova, brasileiro novo, fazendo o Brasil.
Só brasileiro — disse Leslie —, estrangeiro não pode nem ajudar, não é?
Ajudar pode. Estrangeiro isolado, assim feito você e sua mulher.
Leslie agradeceu com a cabeça, irônico.
Mas vou lhe dizer uma coisa — disse Levindo. — Juro que prefiro uma guerra externa ao auxílio externo. Tenho vontade de vomitar quando o Nordeste recebe caixas de comida e de remédios. Eu dizia ainda ontem ao Januário. Se houver uma outra seca e vierem víveres de fora palavra que eu enveneno o que puder.
Em vez de veneno pegue em armas, então — disse Leslie.
Me ajude, padre Nando — disse Levindo. — O que eu quero dizer ao Leslie é que precisamos criar dentro do brasileiro a ajuda ao Brasil. Temos de fabricar os mitos. O pai de Francisca, por exemplo, quer que a gente vá passar a lua de mel à beira do Sena, do Tibre, do Danúbio, sei lá. Eu já disse a ele que eu e Francisca vamos passar a lua de mel à beira do Xingu.
Você se interessa pelos índios? — disse Nando.
Não — disse Levindo —, não me interesso pelo índio assim feito você, isto não. Nada de missões e parques indígenas. Só nos países onde os homens vivem direito é que jardins zoológicos podem funcionar. O índio por enquanto que se defenda.
Mas o que é que interessa a você no Xingu?
Os cafundós do Brasil — disse Levindo. — Eu estava lendo nos jornais que o Conselho Nacional de Geografia já assinalou matematicamente o Centro Geográfico do Brasil. É lá pelo Xingu. A Expedição que devia ir por terra a esse Centro foi adiada indefinidamente, como tudo no Brasil. Por falta de pessoal, de dinheiro, sei lá. Isto, por exemplo, eu gostava de fazer. Assinalar na terra o lugar do coração do país. E trazer terra do Centro para cá, para o Sindicato de Palmares, por exemplo. Para fincar a bandeira diante do Sindicato.
De volta ao mosteiro, e tentando em vão conciliar o sono, Nando procurou as razões de sua inquietação na violência enunciada por Levindo. Mas não eram os argumentos de feroz alegria que o perturbavam e o faziam rolar no leito: era por trás dele a voz de Leslie com seu sotaque protestante, era aquela inominável história do mundo não mais sob a doce intercessão de Maria mas criado e governado pela mulher.
Antonio Callado, in Quarup

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