Depois
da Guerra vão nascer lírios nas pedras, grandes lírios cor de
sangue, belas rosas desmaiadas. Depois da Guerra vai haver
fertilidade, vai haver natalidade, vai haver felicidade. Depois da
Guerra, ah meu Deus, depois da Guerra, como eu vou tirar a forra de
um jejum longo de farra! Depois da Guerra vai-se andar só de
automóvel, atulhado de morenas todas vestidas de short.
Depois da Guerra, que porção de preconceitos vão se acabar de
repente com respeito à castidade! Moças saudáveis serão vistas
pelas praias, mamães de futuros gêmeos, futuros gênios da pátria.
Depois da Guerra, ninguém bebe mais bebida que não tenha um
bocadinho de matéria alcoolizante. A coca-cola será relegada ao
olvido, cachaça e cerveja muita, que é bom pra alegrar a vida!
Depois da Guerra não se fará mais a barba, gravata só pra museu,
pés descalços, braços nus. Depois da Guerra, acabou burocracia,
não haverá mais despachos, não se assina mais o ponto. Branco no
preto, preto e branco no amarelo, no meio uma fita de ouro gravada
com o nome dela. Depois da Guerra ninguém corta mais as unhas, que
elas já nascem cortadas para o resto da existência. Depois da
Guerra não se vai mais ao dentista, nunca mais motor no nervo, nunca
mais dente postiço. Vai haver cálcio, vitarnina e extrato hepático
correndo nos chafarizes, pelas ruas da Cidade. Depois da Guerra não
haverá mais Cassinos, não haverá mais Lídices, não haverá mais
Guernicas. Depois da Guerra vão voltar os bons tempinhos do carnaval
carioca com muito confete, entrudo e briga. Depois da Guerra,
pirulim, depois da Guerra, vai surgir um sociólogo de espantar
Gilberto Freyre. Vai se estudar cada coisa mais gozada, por exemplo,
a relação entre o Cosmos e a mulata. Grandes poetas farão grandes
epopeias, que deixarão no chinelo Camões, Dante e Itararé. Depois
da Guerra, meu amigo Graciliano pode tirar os chinelos e ir dormir a
sua sesta. Os romancistas viverão só de estipêndios, trabalhando
sossegados numa casa na montanha. Depois da Guerra vai-se tirar muito
mofo de homens padronizados pra fazer penicilina. Depois da Guerra
não haverá mais tristeza: todo o mundo se abraçando num geral
desarmamento. Chega francês, bate nas costas do inglês, que convida
o italiano para um chope Alemão. Depois da Guerra, pirulim, depois
da Guerra, as mulheres andarão perfeitamente à vontade. Ninguém
dirá a expressão ‘mulher perdida”, que serão todas achadas sem
mais banca, sem mais briga. Depois da Guerra vão se abrir todas as
burras, quem estiver mal de cintura, logo um requerimento. Os
operários irão ao Bife de Ouro, comerão somente o bife, que ouro
não é comestível. Gentes vestindo macacões de fecho zíper
dançarão seu jiterburgue em plena Copacabana. Bandas de música
voltarão para os coretos, o povo se divertindo no remelexo do samba.
E quanto samba, quanta doce melodia, para a alegria da massa comendo
cachorro-quente! O poeta Schmidt voltará à poesia, de que anda
desencantado e escreverá grandes livros. Quem quiser ver o poeta
Carlos criando, ligará a televisão, lá está ele, que homem magro!
Manuel Bandeira dará aula em praça pública, sua voz seca soando
num bruto de um megafone. Murilo Mendes ganhará um autogiro, trará
mensagens de Vênus, ensinando o povo a amar. Aníbal Machado estará
são como um perro, numa tal atividade que Einstein rasga seu
livro. Lá no planalto os negros nossos irmãos voltarão para os
seus clubes de que foram escorraçados por lojistas da Direita (rua).
Ah, quem me dera que essa Guerra logo acabe e os homens criem juízo
e aprendam a viver a vida. No meio tempo, vamos dando tempo ao tempo,
tomando nosso chopinho, trabalhando pra família. Se cada um ficar
quieto no seu canto, fazendo as coisas certinho, sem aturar desaforo;
se cada um tomar vergonha na cara, for pra guerra, for pra fila com
vontade e paciência - não é possível! Esse negócio melhora,
porque ou muito me engano, ou tudo isso não passa, de um grande, de
um doloroso, de um atroz mal-entendido!
Vinicius
de Moraes, in Prosa
Nenhum comentário:
Postar um comentário