domingo, 16 de junho de 2019

Agora é que são elas - Capítulo 4

1

Um dia, ainda vai ser conhecida a verdadeira natureza das minhas relações com o professor Propp. Até hoje não sei como tantas intrigas puderam se tecer em torno de alguém com uma biografia tão exata quanto ele, figura dedicada, de corpo e alma, à ciência, para ele, a rabínico-cossaco-prussiana disciplina do pensamento e da vida se organizando em esquemas.
Propp escrevia seco, mas muito bem. Seu principal romance, porém, que merda!, ainda não saiu à luz. Esse escafandrista das profundezas humanas, discípulo direto de Freud, que discutiu, como ele invoca, com Reich, Férenczi e Jung, ele deixou uma história que, se ainda houver um resquício de luz e amor na humanidade, um dia, vai ser publicada.
É a Morfologia do Conto Maravilhoso, admito, um nome um pouco abstrato para uma obra de ficção. O singular no caso foi o uso que ele fez desse seu romance no tratamento de gente como eu, como nós, nós, que frequentamos a caverna de Propp, e perguntamos:
Tem jeito?
E ele diz:
Diga A.
E nós todos dizemos, ah, hoje não vai dar.
Com o perdão das senhoras presentes, me estendo um pouco mais sobre esse romance que viria a ter um papel tão, tão, tão, como direi?, em minha vida, por puro medo de que essa história nunca venha a ser publicada, privando a espécie de uma de suas obras mais, mais e mais, daquelas que dá pra segurar na mão e brandir para as estrelas dizendo: vocês não perdem por esperar.
Nada poderia ser mais estranho para o leitor habitual de fábulas, ávido por emoções fáceis, detalhes picantes ou registros agudos do cotidiano, arquiteturas redondas e enredos envolventes.
Não Propp.
Seu romance é abstrato. Quer dizer, um romance feito de todos os romances, seus personagens são todos os personagens possíveis.
Como isso foi possível, só o gênio do professor explica, e o gênio é inexplicável, como nós todos, seres gasosos dos pantanais de Canópus, sabemos.
O fato é que descobriu que todas as histórias, no fundo, constituem UMA SÓ HISTÓRIA. E aplicou-se a descobrir a cadeia de constantes, a lei lógica e matemática que rege a geração dos enredos, o vertiginoso movimento das constelações que constituem uma intriga.
Todo entrecho, para ele, reduz-se à combinação de algumas funções básicas (trinta e uma, se não me engano: um dia, perguntei por que um número tão quebrado, por que não trinta ou quarenta, e ele me respondeu com uma frase latina, saiam da frente, Virgílios e Cíceros, algo assim como “nummerus impar deis placet”, aos deuses agradam os números ímpares, e rematou dizendo que, por mais que a gente tentasse reduzir a realidade e a vida aos números pares, elas sempre seriam ímpares, os pares não passando de uma mera fantasia humana, o médico e o monstro, o casal perfeito, Sansão e Dalila).
Em nosso último encontro, fantasiava uma psicanálise do ímpar.
Ménage à trois, professor?
Claro, o romance de Propp não era, apenas, mais uma dessas obras destinadas, apenas, a proporcionar prazer a um leitor eventual.
Propp não. Ele era médico. Queria curar. Quer dizer, dizer NÃO ao real, que quer a doença. Não à inexorável lógica última e suprema de todas as coisas e de todos os processos, aquela coisa que quer que a pedra caia quando jogada pra cima, o que quer que seja que quer que as flores nasçam na primavera e no inverno a gente tenha que usar cinco (ímpar!) roupas sobre o peito.
De Propp, fica esta ideia, tenho certeza. A saúde através daquilo que ele chamava Funções dos Personagens, e suas cambiáveis, mas previsíveis combinações.
Não ficava perguntando se você já tinha alguma vez tido a vontade de chupar a buceta de sua mãe para voltar ao útero, e, mamando, acabar com tudo isso, de uma vez por todas. Ou se você tinha fantasiado ver o saco do seu pai servido num prato ao molho pardo.
Grande diretor de cena, em um minuto, você já estava passando da Função 1 para a 4, da 3 para a 7, da 6 voltando à 2, uma máscara atrás de outra máscara atrás de.
Cada uma das Funções, até 31, tinha um nome e uma definição precisas (uns dois anos para decorá-las todas, no rigor da sua ordem: enquanto isso, quem vai ter tempo para ter problemas psíquicos).?)
O sucesso obedecia ao seguinte esquema, este é o esquema do fracasso do herói. A felicidade, lembro, seguia o esquema, personagem sai de casa, enfrenta os perigos do mundo, personagem volta pra casa.
Nesse meio-tempo, eu, você, Hércules, Ulisses, Kennedy, Alice, Fausto, Adão, Guilherme Tell, Robin Hood, Frankenstein, o herói, enfim, passava, a gente passava por certas peripécias básicas, sempre as mesmas, só mudava a ordem.
Era confortador. E era apavorante. Gostoso saber que você pertencia a uma lógica maior que você, um fundo contra o qual tua figura se projetava. Mas eu me cagava de medo de saber que viver, então, era isso, e assim, e não de outra forma.
Preparava, pouco antes do seu trágico desaparecimento, uma retórica do desejo, que o tempo não permitiu acabar. Da “Retórica do Desejo”, guardo ainda algumas notas, pepitas de ouro recolhidas nas enxurradas da vida.

2

Acreditem ou não, era nele e seus esquemas que eu pensava, deitado lá dentro daquele quarto escuro, ouvindo aquela voz, aquela voz única, no fundo, a única que eu ouvia desde que tinha chegado naquela festa, festa, aliás, que não houve, ou não tinha havido, ou, enfim, tinha caído num número ímpar qualquer, como o professor Propp tinha previsto. Ou qualquer coisa assim.
Paulo Leminski, in Agora é que são elas

Nenhum comentário:

Postar um comentário