sábado, 15 de junho de 2019

Sobre o sofrimento e sobre a felicidade

Acho que sabedoria é saber sofrer pelas razões certas. Quem não sofre, quando há razões para isso, está doente. Se uma pessoa querida morre e o coração não sangra, se um golpe duro da vida atinge a quem se ama e os olhos não choram, se uma desgraça cai sobre o povo e a alma não fica triste, se o fogo consome as florestas e o corpo não queima também, é porque algo está errado com a gente.
Quem é feliz e nunca sofre, padece de uma grave enfermidade e precisa ser tratada a fim de aprender a sofrer. Sofrer pelas razões certas significa que estamos em contato com a realidade, que o corpo e a alma sentem a tristeza das perdas e que existe em nós o poder do amor. Só não sofrem, quando para isso há razões, aqueles que perderam a capacidade de amar. Toda experiência de amor traz, encolhida no seu ventre, à espera, a possibilidade de sofrer. Assim, a receita para não sofrer é muito simples: basta matar o amor.
Mas que enorme seria a perda se isso acontecesse! Porque é o sofrimento que nos faz pensar. Pensamos ou para encontrar formas de eliminar o sofrimento, quando isso é possível, ou para dar um sentido ao sofrimento, quando ele não pode ser evitado. O pensamento, assim, filho da dor, está a serviço da alegria. Todas as belas conquistas do espírito humano, da poesia à ciência, nasceram assim.
Mas há outros sofrimentos que não nascem de perdas reais. A felicidade pode ser destruída por uma doença que mora em nossos olhos. O que é ilustrada por esta estorieta que gosto de contar:

***

Um homem, felizardo, encontrou uma garrafa onde morava um gênio. Libertado de sua prisão, o gênio lhe disse:
- Tenho o poder de torná-lo feliz. Atenderei a todos os seus pedidos, sem nenhum limite!
Tomado por uma onda de felicidade, o homem começou a imaginar todas aquelas coisas com que sempre sonhara e nunca imaginara poder ter. coisas que o tornariam feliz para sempre! E os seus olhos brilhavam ao contemplar os objetos dos seus desejos: casas em lugares paradisíacos, viagens por países longínquos, banquetes com comidas exóticas, carros, iates, aviões, lindas mulheres que o amariam com amor terno e fiel, um corpo eternamente jovem, belo e potente… Ah!, o que ele imaginava estava além de tudo o que sonhara, e agora seus olhos deslumbrados se deleitavam nos objetos que o tornariam feliz. Estava pronto a transformar seus sonhos em realidade e felicidade.
- Vou dizer o que desejo – disse ele ao gênio.
- Há apenas um pequeno detalhe, insignificante, que é preciso esclarecer – o gênio acrescentou.
- Pois diga – replicou o homem.
- É que tudo o que você tiver, seu inimigo terá em dobro…
Ao ouvir essas palavras, uma perversa metamorfose aconteceu com os seus olhos. Seu deleite tranquilos nos objetos do seu desejo se transformou num movimento aflito entre o que o gênio lhe daria – até aquele momento muito mais do que tudo com que jamais sonhara, mais que suficiente para a sua felicidade – e aquilo que seria dado ao seu pior inimigo. E, quando seus olhos o contemplavam e o que ele teria, como ele se sentia pobre e desgraçado! A visão da felicidade do outro estragara, para sempre, a sua própria felicidade.
- Já sei o que quero pedir – disse ele finalmente ao gênio.
- Pois faça o seu pedido! -, o gênio replicou.
- Me fure um olho!”
Rubem Alves, in A eternidade numa hora

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