segunda-feira, 20 de maio de 2019

Quinta razão — A necessidade de contrariar os excessos do realismo

Vivíamos em Moçambique e em Angola a aplicação esforçada do modelo estético e literário do realismo socialista. Nós mesmos fomos autores militantes, a nossa alma tomou partido e tudo isso nos parecia historicamente necessário. Mas nós entendíamos que havia uma outra lógica que nos escapava e que a literatura tinha razões que escapavam à razão política.
A leitura de Rosa sugeria que era preciso sair para fora da razão para se poder olhar por dentro a alma dos brasileiros. Como se para tocar a realidade fosse necessário uma certa alucinação, uma certa loucura capaz de resgatar o invisível. A escrita não é um veículo para se chegar a uma essência, a uma verdade. A escrita é a viagem interminável. A escrita é a descoberta de outras dimensões, o desvendar de mistérios que estão para além das aparências. É Rosa quem escreve: “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”.
Há aqui um posicionamento político nunca enunciado mas inscrito no tratamento da linguagem. É na recriação da linguagem que ele sugere uma utopia, uma ideia de futuro que está para além daquilo que ele denuncia como uma tentativa de “miséria melhorada”. Esta linguagem mediada entre classes cultas e os sertanejos quase não existia no Brasil. Através de uma linguagem reinventada com a participação dos componentes culturais africanos também nós em Angola e Moçambique procurávamos uma arte em que os excluídos pudessem participar da invenção da sua História.
Mia Couto, in Encontros e encantos — Guimarães Rosa

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