terça-feira, 21 de maio de 2019

Os deuses do planeta Terra

Ao buscar a felicidade e a imortalidade, os humanos estão na verdade tentando promover-se à condição de deuses. Não só porque esses atributos são divinos, mas igualmente porque, para superar a velhice e o sofrimento, terão de adquirir primeiro um controle de caráter divino sobre o próprio substrato biológico. Se algum dia detivermos o poder de excluir a morte e a dor de nosso sistema, esse poder provavelmente será suficiente para estruturar nosso sistema do jeito que quisermos e para manipular nossos órgãos, emoções e inteligência de várias maneiras. Seria possível adquirir a força de Hércules, a sensualidade de Afrodite, a sabedoria de Atena ou a loucura de Dioniso, se esse fosse o seu desejo. Até agora, aumentar o poder do homem consistiu principalmente em aprimorar suas ferramentas externas. No futuro, pode tratar-se mais de aprimorar o corpo e a mente humanos ou de nos fundirmos diretamente com nossas ferramentas.
A elevação dos humanos à condição de deuses pode seguir qualquer um dentre estes três caminhos: engenharia biológica, engenharia cibernética e engenharia de seres não orgânicos.
A engenharia biológica começa com a noção de que estamos longe de constatar todo o potencial dos corpos orgânicos. Durante 4 bilhões de anos, a seleção natural vem fazendo ajustes e correções nesses corpos, de modo que passamos de amebas a répteis, a mamíferos e a Sapiens. Contudo, não há motivo para pensar que Sapiens seja o último estágio. Mudanças relativamente pequenas em genes, hormônios e neurônios foram suficientes para transformar o Homo erectus — que não conseguiu produzir algo mais impressionante do que facas feitas de lascas de pedra — em Homo sapiens, que produzem espaçonaves e computadores. O que resultaria de mais algumas pequenas mudanças em nosso DNA, no sistema hormonal ou na estrutura do cérebro? A bioengenharia não vai ficar esperando pacientemente a seleção natural realizar a sua mágica. Bioengenheiros vão pegar o velho corpo do Sapiens e reescrever intencionalmente seu código genético, reconectar seus circuitos cerebrais, alterar seu equilíbrio bioquímico e até mesmo provocar o crescimento de novos membros. Disso resultarão novas entidades divinas que poderão ser tão diferentes de nós Sapiens quanto somos diferentes do Homo erectus.
A engenharia cibernética dará um passo a mais, ao fundir o corpo orgânico com dispositivos não orgânicos, como mãos biônicas, olhos artificiais ou milhões de nanorrobôs que navegarão na corrente sanguínea com o propósito de diagnosticar doenças e corrigir danos. Um ciborgue poderia dispor de capacidades muito além daquelas comuns a qualquer corpo orgânico. Por exemplo, para funcionar, todas as partes de um corpo orgânico têm de estar em contato direto umas com as outras. Se o cérebro de um elefante está na Índia, seus olhos e orelhas na China, e suas patas na Austrália, provavelmente se trata de um animal morto e, mesmo que, em algum misterioso sentido, esteja vivo, não poderá ver, ouvir ou andar. Um ciborgue, em contrapartida, poderia existir em vários lugares ao mesmo tempo. Uma médica ciborgue poderia realizar cirurgias de emergência em Tóquio, em Chicago, numa estação espacial em Marte, sem jamais sair de seu consultório em Estocolmo. Ela precisaria apenas de uma conexão rápida de internet e alguns pares de olhos e mãos biônicos. Pensando melhor, por que pares? Por que não quartetos? De fato, mesmo estes são na realidade supérfluos. Por que uma médica ciborgue deveria ter um bisturi na mão, já que poderia conectar sua mente diretamente ao instrumento?
Isso pode soar como ficção científica, mas já é realidade. Recentemente, macacos aprenderam a controlar mãos e pés biônicos desconectados do corpo por meio de eletrodos implantados no cérebro. Pacientes com paralisia são capazes de movimentar membros biônicos ou de operar computadores apenas com a força do pensamento. Se você quiser, poderá controlar remotamente dispositivos elétricos em sua casa usando um capacete elétrico capaz de “ler a mente”. O capacete não requer implantes cerebrais, uma vez que seu funcionamento depende da leitura dos sinais elétricos que passam no couro cabeludo. Se quiser acender a luz na cozinha, apenas coloque o capacete, imagine algum sinal previamente programado (movimentar a mão direita, por exemplo), e o interruptor é acionado. Pode-se comprar um capacete desses on-line por meros quatrocentos dólares.
No início de 2015, centenas de trabalhadores no centro de alta tecnologia Epicenter, em Estocolmo, na Suécia, tiveram microchips implantados nas mãos. Com o tamanho aproximado de um grão de arroz, esses chips armazenam informações de segurança personalizadas que permitem aos trabalhadores abrir portas e operar fotocopiadoras com um movimento das mãos. Espera-se que em breve seja possível fazer pagamentos da mesma maneira. Um dos cérebros por trás dessa iniciativa, Hannes Sjoblad, explicou: “Nós interagimos com tecnologia o tempo todo. Hoje em dia há alguma confusão com códigos PIN e senhas. Não seria mais fácil então usar as mãos?”.
Mas mesmo a engenharia cibernética é relativamente conservadora, ao assumir que os cérebros orgânicos continuarão a ser os centros de comando e controle da vida. Uma abordagem mais ousada dispensa totalmente as partes orgânicas, com a expectativa de dominar a engenharia de seres completamente não orgânicos. Redes neurais serão substituídas por softwares inteligentes, que poderiam surfar em mundos virtuais e não virtuais, livres das limitações da química orgânica. Depois de 4 bilhões de anos perambulando no reino dos compostos orgânicos, a vida eclodirá na vastidão do reino inorgânico e assumirá formas que não podemos vislumbrar mesmo em nossos sonhos mais loucos. Afinal, esses sonhos ainda são produto da química orgânica.
Sair fora do reino orgânico poderia permitir que a vida finalmente saísse do planeta Terra também. Durante 4 bilhões de anos a vida permaneceu confinada a este minúsculo fragmento de planeta porque a seleção natural fez todos os organismos serem totalmente dependentes de condições exclusivas desta rocha voadora. Nem mesmo as bactérias mais resistentes podem sobreviver em Marte. Uma inteligência artificial não orgânica, em contraste, vai achar que é muito mais fácil colonizar outros planetas. A substituição da vida orgânica por seres inorgânicos pode portanto ser a semente de um futuro império galáctico, governado por símiles de Mr. Dados e não por Darth Vader.

Não sabemos para onde esses caminhos podem nos levar, nem que aparência terão nossos descendentes divinoides. Predizer o futuro nunca foi fácil, e biotecnologias avançadas podem dificultar essa empreitada. Por mais difícil que seja prever o impacto de novas tecnologias em campos como transportes, comunicação e energia, tecnologias para o aprimoramento de seres humanos representam um tipo de desafio totalmente distinto. Como podem ser usadas para transformar mentes e desejos humanos, pessoas que têm mentes e desejos atuais não podem, por definição, compreender suas implicações.
Por milhares de anos reviravoltas tecnológicas, econômicas, sociais e políticas fizeram parte da história. Mas algo permaneceu constante: a humanidade em si mesma. Nossos instrumentos e instituições atuais são muito diferentes daqueles dos tempos bíblicos, mas as estruturas mais profundas na mente humana não se alteraram. Por isso ainda conseguimos nos reconhecer nas páginas da Bíblia, nos textos de Confúcio ou nas tragédias de Sófocles e Eurípides. Esses clássicos foram criados por humanos como nós, e sentimos que eles falam a nosso respeito. Em produções teatrais modernas, Édipo, Hamlet e Otelo poderiam vestir jeans e camisetas e ter contas no Facebook, mas seus conflitos emocionais seriam os mesmos dos da peça original.
No entanto, assim que a tecnologia permitir a reengenharia das mentes humanas, o Homo sapiens vai desaparecer, a história humana caminhará para seu fim, e um tipo de processo completamente novo vai surgir, incompreensível para pessoas como você e eu. Muitos estudiosos tentam prever qual será o aspecto do mundo em 2100 ou em 2200. É uma perda de tempo. Qualquer previsão, para ser válida, deve levar em conta a capacidade de reengenharia das mentes humanas, e isso é impossível. Há muitas respostas sensatas para a pergunta: “O que pessoas com mentes como as nossas fariam com a biotecnologia?”. Porém, não há boas respostas para esta: “O que seres com um tipo diferente de mente fariam com a biotecnologia?”. Tudo o que podemos dizer é que pessoas como nós provavelmente usariam a biotecnologia na reengenharia das próprias mentes e que nossas mentes atuais não conseguem captar o que pode acontecer depois.
Mesmo que os detalhes sejam obscuros, podemos ter uma noção correta da direção geral da história. No século XXI, o terceiro grande projeto da humanidade será adquirir poderes divinos de criação e destruição e elevar o Homo sapiens à condição de Homo deus. Esse terceiro projeto obviamente engloba os dois primeiros e é por eles alimentado. Queremos ter a capacidade de fazer a reengenharia de nosso corpo e mente acima de tudo para escapar à velhice, à morte e à infelicidade, mas, uma vez dispondo disso, o que mais poderíamos fazer com tal capacidade? Assim, bem podemos pensar que a nova agenda humana na realidade consiste em um só projeto (com muitos ramos): alcançar a divindade.
Se isso não soa científico ou se parece totalmente excêntrico, é porque com frequência as pessoas entendem mal o sentido da divindade. Divindade não é uma vaga qualidade metafísica. E não é o mesmo que onipotência. Quando se fala em elevar humanos à condição de deuses, a ideia diz mais respeito aos deuses gregos, ou aos devas hindus, do que a um pai celestial bíblico e onipotente. Nossos descendentes ainda teriam seus pontos fracos, suas imperfeições e limitações, assim como Zeus e Indra tiveram os seus. Mas seriam capazes de amar, odiar, criar e destruir numa escala muito maior do que a nossa.
No decorrer da história acreditou-se que a maioria dos deuses não era onipotente, mas possuía supercapacidades específicas, tais como a de projetar e criar seres vivos; transformar o próprio corpo; controlar o meio ambiente e o clima; ler mentes e se comunicar à distância; movimentar-se a velocidades muito altas e obviamente escapar da morte e viver infinitamente. Os seres humanos estão tratando de adquirir todas essas capacidades, e outras mais. Certas aptidões tradicionais, que durante milênios foram consideradas divinas, tornaram-se tão comuns que quase não pensamos nelas. Hoje, uma pessoa mediana se move e se comunica a grandes distâncias com muito mais facilidade do que antigos deuses gregos, hindus ou africanos. Por exemplo, o povo Igbo da Nigéria acredita que no início Chukwu, o deus da criação, quis fazer as pessoas imortais. Ele mandou um cão dizer aos humanos que deveriam borrifar o corpo dos mortos com cinzas, e com isso o corpo voltaria à vida. Infelizmente, o cão estava cansado e demorou-se no caminho. O impaciente Chukwu enviou então uma ovelha, dizendo-lhe que se apressasse em levar essa importante mensagem. Mas, quando chegou a seu destino, a ofegante ovelha confundiu as instruções e disse aos humanos que enterrassem seus mortos; por essa razão, a morte tornou-se permanente. Por isso, até hoje nós humanos temos de morrer. Se Chukwu, em vez de se valer de cães morosos ou ovelhas obtusas para transmitir suas mensagens, ao menos tivesse uma conta no Twitter! Em antigas sociedades agrícolas, a maioria das religiões não girava em torno de questões metafísicas e do pós-vida, mas da mundana questão de aumentar a produção agrícola. Assim, o Antigo Testamento nunca promete nenhuma recompensa ou punição após a morte. Em vez disso, diz ao povo de Israel: “Se vocês cumprirem rigorosamente os mandamentos que lhes estou dando […] Eu enviarei chuva sobre a terra em sua estação […] e vocês colherão grão, vinho e óleo. Eu lhes proverei pasto nos campos para seu gado, e vocês comerão e se fartarão. Tenham cuidado! De outro modo, seus corações os enganarão e vocês se voltarão para servir outros deuses e os cultuar. A ira de Deus arderá contra vocês de tal modo que ele conterá os céus e não choverá. A terra não concederá seu produto e vocês serão rapidamente desprovidos da boa terra que o Senhor está prestes a lhes dar” (Deuteronômio 11,13-17). Atualmente os cientistas podem fazer muito melhor do que o Deus do Antigo Testamento. Graças a fertilizantes artificiais, inseticidas industriais e safras geneticamente modificadas, a produção agrícola hoje ultrapassa as mais altas expectativas que os antigos agricultores tinham de seus deuses. E o ressecado Estado de Israel não teme mais que alguma divindade irada contenha os céus e detenha todas as chuvas — pois os israelenses construíram recentemente uma imensa usina de dessalinização na costa do Mediterrâneo, de modo que já podem extrair água potável do mar.
Até agora estávamos competindo com os deuses da Antiguidade na criação de ferramentas cada vez melhores. Num futuro não tão distante poderíamos criar super-humanos capazes de exceder os deuses antigos não em suas ferramentas, mas em suas faculdades corporais e mentais. Se e quando chegarmos lá, no entanto, a divindade terá se tornado tão corriqueira quanto o ciberespaço — uma maravilha das maravilhas que já consideramos como certa.
É certo que os humanos se esforçarão para atingir a divindade, pois têm muitos motivos para querer essa atualização e muitos caminhos para consegui-la. Mesmo que um caminho promissor se revele um beco sem saída, rotas alternativas permanecerão abertas. Por exemplo, talvez descubramos que o genoma humano é complicado demais para ser manipulado com seriedade, mas isso não impede o desenvolvimento de interfaces entre cérebro, computador, nanorrobôs ou inteligência artificial.
Não é preciso entrar em pânico, contudo. Pelo menos não imediatamente. A elevação do Sapiens a um nível superior será mais um processo histórico gradual do que um apocalipse hollywoodiano. O Homo sapiens não vai ser exterminado por um levante de robôs. É mais provável que sua atualização ocorra passo a passo, fundindo-se no processo com robôs e computadores, até que nossos descendentes olhem para trás e se deem conta de que não são mais o tipo de animal que escreveu a Bíblia, construiu a Grande Muralha da China e riu das graças de Charles Chaplin. Isso não vai acontecer em um dia nem em um ano. Na verdade, já está acontecendo neste momento como resultado de inúmeras ações cotidianas. Todo dia milhões de pessoas decidem dar a seu smartphone um pouco mais de controle sobre suas vidas, ou experimentam uma droga antidepressiva nova e mais eficaz. Na busca de saúde, felicidade e poder, os humanos modificarão primeiro uma de suas características, depois outra, e outra, até não serem mais humanos.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

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