sábado, 11 de maio de 2019

Bartolomeu em seu barco

Viver é legendar o mundo, diz o narrador sem nome de Vermelho amargo, novela feroz e sedutora de Bartolomeu Campos de Queirós (Cosac Naify). “Viver exigia legendar o mundo. Cabia-me o trabalho exaustivo de atribuir sentido a tudo.” A literatura é isto: uma legenda. Sem ela, o real se torna ilegível. Leio o comovente relato de Bartolomeu e penso em Arthur Bispo do Rosário, artista e esquizofrênico, que carregou a missão de enquadrar os objetos existentes para, só assim, salvá-los do grande dilúvio. Bispo os acumulou em imensos painéis, presos em frágeis molduras de madeira. Sua arte era reter o que, sem a moldura, se perderia.
Bartolomeu repete, com as palavras, o esforço de Bispo. Seu anti-herói, cuja aventura é sobreviver em um mundo que se desmancha, pensa: “Dar sentido é tomar posse dos predicados. Trabalho incessante, este de nomear as coisas. Chamar pelo nome o visível e o invisível é respirar consciência”. Fala de sua luta para tomar posse da língua, mas aponta também para a literatura, que, sem ser algema ou estaca, ainda assim prende e sustenta, em um delicado fio de palavras, aquilo que, de outra forma, se perderia. Mais ainda: aquilo que, sem o contorno de um nome, não chegaria a existir.
Dar nome ao real que mora escondido na fantasia é clarear o obscuro”, continua o desolado narrador. Que ele não tenha um nome já é, por si, a marca do que lhe falta. Tudo – mesmo os sentimentos mais remotos e obscuros – precisa de uma forma. Em seu amargo relato, a forma que dá corpo ao sofrimento é a de um prosaico tomate. O fruto vermelho que a madrasta, com precisão e ódio, reparte em lâminas finas, para depois coroar os pratos de comida com que alimenta a família, neles assinando sua presença.
Desde a morte da mãe, o menino sofre da falta de amor. A mãe partiu de repente, sem ser avisada. “A mão da morte soterrou até sua sombra.” Só há uma coisa que não se deixa escrever: a morte. Escrevemos a palavra, “morte”, mas ela não passa de uma casca. Sem uma palavra que corresponda ao que perdeu, o menino arrasta sua alma como carga. Ela só deixará de pesar no dia em que, enfim, for escrita. A mãe morta ressurge, como fantasma, nas panelas, nos armários, nas flores. Falta-lhe, porém, uma palavra, que “é flecha para sangrar o abstrato morto”. Uma vez fisgado pela língua, o objeto morto encontra, enfim, seu destino: um nome. Palavras só falam de ausências. O real é aquilo que não se pega.
Entre a ausência da mãe e o ódio sangrento da madrasta, o menino se descobre no exílio. “A cidade partida me fazia, sempre, um morador do outro lado. Não havia opção: em qualquer lugar eu estaria em outra margem.” Defronta-se, assim, com a condição do humano, que é estar deslocado de seu centro. Somos, todos, descentrados; fomos, todos, expulsos do paraíso. O sentimento de exílio se radicaliza quando ele se vê deslocado também de seu corpo. “Sempre sou um outro morando em mim.” Descobre, desolado, que o sentido é mais uma pergunta do que uma resposta. Aproxima-se, de novo, da literatura que, sem pretender explicar o mundo, ou dele dar conta, contenta-se em acariciá-lo.
Sempre achei que a literatura é uma carícia. Ela nos oferece um caminho de delicadeza – o mais próximo do humano que já conheci. Lendo a bela narrativa de Bartolomeu, sinto isso de novo. Para fugir de um tomate que é “só cor e cólera”, o menino se apega à fantasia. Dizendo melhor: descobre que precisa encobrir o real com o manto das palavras. O real, sim, é o fantasma, pois só o vemos quando aparece envolto em um lençol branco. Ainda assim, o que vemos é o lençol, e não ele; sua forma apenas se insinua, nada mais. Também o menino, com a morte da mãe, aprendeu a “ler na ausência”. Lemos um lençol que nos sobrevoa e pensamos: “fantasma”. Mas o que ele esconde não sabemos.
Retida nas iras terrenas, amarrada a pequenos ódios, a madrasta, mais ácida, prefere conversar com o fogo. Apega-se a seu fogão: “Atiçava, e as chamas ressuscitavam, estralando em suspiros”. Enquanto ela assa seu rancor, a mãe morta dorme no Nada. No fundo, onde está agora, “o peso da terra é definitivo véu”. Nem a luz das palavras desfaz o breu da morte. “No bem fundo, não há palavra capaz de soar.” A morte é a morte da palavra. O que se enterra não é o corpo, mas a língua.
Ampara-se o menino em seus irmãos. No mais velho, que leva pedaços de vidro nos bolsos e, escondido, os mastiga. É o irmão que, com sua boca sangrenta, sabe ler: “Decifrava as palavras e seus escuros”. Observando-o, descobre que, mesmo distantes das coisas, as palavras o ajudam a existir. “Escrevia, por isso pensava – suspeitei.” Admira os irmãos de longe, sem ilusões, pois sabe que o coração do outro “é uma terra que ninguém pisa”. Sente, ao contrário, o coração pisado pelo amor. Está apaixonado. Mas um homem só pisa em si mesmo. O outro é sombra.
Também sem nome, a irmã mais nova, que adotou um gato mudo, passa a miar. A mais velha, que gostava de bordar, depois de casar-se abandona sua arte. Antes, com uma agulha muito fina, passava as tardes a desenhar o mundo. Mesmo a fantasia, porém, precisa de um trinco, uma aldrava, um fecho – ou tudo se perde. “Quando a linha estava por terminar, ela dava um nó forte para não deixar fugir sua imaginação.” Caso contrário, a fantasia se desmancha. É como a língua, que precisa da pontuação, ou sufocamos nas palavras.
Conforme os irmãos partem, as fatias do tomate engrossam – pois a madrasta só corta um tomate por dia. O menino adota o fruto amargo como seu calendário. Comer um tomate é ter um tomate a menos para comer; é abrir espaço para a invenção. Só quando chega à escola, descobre o poder da língua. “As palavras eram meus barcos. Com elas atravessaria as ondas, venceria as calmarias, aportaria em outra terras.” Não é que a palavra fixe; ao contrário, ela empurra e descentra. Seres deslocados, precisamos de um mundo que se mova também. O ranger do tranco entre palavra e coisa é o que chamamos vida. Dar nomes às coisas, legendar o real, é no fim nosso pequeno destino.
José Castello, in Sábados inquietos

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