quarta-feira, 22 de maio de 2019

Agora é que são elas - Capítulo 3

3

Faltava um quilômetro para chegar na casa, quando senti um problema no carro. Parei. Conferi tudo, nada. O sacolejo que eu tinha sentido era meu próprio coração batendo do lado de dentro, louco para sair.
Lembrei (maldita memória!) que Propp tinha um conselho para ocasiões em que o herói se encontra numa situação como esta. Mas não consegui lembrar do conselho, maldito Propp, o tratamento estava começando a fazer efeito.
Engoli, mandando meu coração voltar para as profundezas donde tinha emergido, que lugar de coração é lá embaixo.
Fiz a curva para entrar no caminho que levava até a porta da frente da casa.
Não gostei do que vislumbrei. A casa, completamente às escuras. Um pedaço de treva mais escura contra a treva ligeiramente mais azul, depois da passagem de um dos relâmpagos tardios da tempestade que se afastava.
A tempestade apagou a luz, pensei.
Mas cadê aquela multidão de carros estacionados em frente?
Apagou a luz e todo mundo fugiu para suas casas, me reconfortei. Ainda bem que o professor Propp sempre me alertou, a lógica não passa de uma média estatística, uma probabilidade: não era provável que eu estivesse nesta festa, que passasse por Norma e quase não a visse, que recebesse aquele telefonema, e saísse, e chovesse, e não tivesse fósforos, e eu voltasse, não era provável que eu saísse do carro, fosse até a porta e batesse.
Bati uma vez. Esperei. Na orelha esquerda, nada. Na direita, nada.
Mas será possível que não sobrou ninguém? Alguém deve ter ficado.
Bati de novo. A chuva voltou a cair imediatamente, como se quisesse levar aquela casa a nocaute no segundo round, meu coração batia, punch, jab, cross, direto.
Bati de novo. E de novo. Até que ouvi aquela voz maravilhosa de um trinco se abrindo numa porta que você quer abrir.
O velho criado pôs a cabeça na fresta da porta entreaberta.
Está perdido, cavalheiro?
Não lembra de mim? Acabo de sair daqui.
Perdão, senhor?
Eu acabo de sair da festa. Mas voltei.
Que festa?
A festa que estava havendo aí quando eu saí.
Mas, senhor, a festa vai ser amanhã à noite.
Nessa hora, um relâmpago estralou como um ovo que cai na frigideira. Fiquei ali, anulado, esperando o trovão passar e ir fazer barulho lá na puta que o pariu.
O criado me trouxe de volta à vida:
Mas se o senhor quiser, está chovendo tanto, as estradas estão perigosas, se o senhor quiser passar a noite aqui, tenho certeza que meu patrão terá o maior prazer em hospedá-lo, senhor?
Disse meu nome e entrei, tirando o casaco molhado.
A casa estava completamente às escuras.
Deixe-me acender alguma luz, o criado ouviu meus pensamentos.
Fiquei ali, no escuro, aquela vergonha de perguntar o óbvio.
Uma luz se fez. Outra. Velas acendiam velas. Candelabros arreganhavam as dentaduras pela sala. Nada. Nenhum sinal de festa, havida ou por haver.
Segurei.
Muita gente na festa amanhã?, perguntei.
Ah, senhor, isso ninguém pode dizer.
Enquanto o criado acendia luzes e mais luzes, dei um passeio pela sala. Estava tudo lá, a poltrona-hipopótamo, a cabeça de javali na parede, a mesa, o piano. Me aproximei. Sobre o piano, as fotos de gente cujas caras não me diziam nada.
E, de repente, AQUILO!
Pensei que já tinha visto tudo, mas aquilo tinha passado dos limites.
Era um escândalo, um insulto à realidade, à santíssima lógica das coisas, e eu explodi:
Mas o que é isso?, gritei, agarrando a foto com uma mão e com a outra o pescoço do criado.
Isso o quê?, meu senhor?
Esta foto.
É apenas a foto de uma festa.
Quando foi essa festa?
Não sei, meu senhor.
Larguei o criado, que se afastou alisando o pescoço.
Olhei bem para a foto, à luz de todos os candelabros.
Não havia a menor dúvida. Era a foto que tinha sido tirada na festa, da qual eu tinha acabado de sair e, agora, não existia mais.
Quer comer alguma coisa antes de subir a seus aposentos, senhor?
Nem ouvi a pergunta. Fiquei ali, estarrecido diante daquela foto.
Só que olhei um pouco mais atentamente. E descobri. Norma. Norma está nesta foto. E eu não estou.
A vertigem subiu pelas minhas pernas como uma câimbra.
Eu estava certo. Não podia mais haver engano. A verdade me atingiu no meio da testa. TUDO TINHA MUDADO.

4

Quanto tempo dormi na cama onde o criado praticamente me jogou, depois do meu choque com a foto, depois que minha consciência colidiu com aquela imagem, como um avião se choca contra uma montanha?
Voltei a mim dentro da noite total. O quarto, treva pura.
Mais treva não seria, se eu tivesse ficado cego.
E daí comecei a ouvir aquele som, uma coisa doce vinda de algum lugar e de toda parte ao mesmo tempo, uma voz, sim, era uma voz, uma voz de mulher, em algum lugar no espaço e no tempo, uma mulher cantava, e coisas além do meu entendimento queriam que eu estivesse ali, escutando, como se ouvir aquela voz pudesse ser a razão de ser de toda uma vida, aquela voz doce que parecia iluminar a meia-noite com todas as vias lácteas de que o céu é capaz.
Paulo Leminski, in Agora é que são elas

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