Referindo-me
há dias a um livro curioso que li em 1939, de autor desconhecido,
rigorosamente inédito, recebi de Gilberto Freyre este pedido:
— Conte-me
isso num artigo para a Província. É o que desejamos,
descobrir valores, apresentar gente nova.
No
primeiro momento achei o programa, com franqueza, supérfluo. Tem
surgido espontaneamente nestes últimos tempos tanta gente nova de
valor discutível que me pareceu arriscado incentivar novas estreias,
estimular fracasso e desilusões. Pessimismo desarrazoado,
evidentemente. As obras ruins que inundaram o mercado no decênio
agora findo não prejudicam, ou prejudicam pouco, as boas. Aliás não
se trata dessa contribuição voluntária, dos cavalheiros tipo
Orante que pagam para ser literatos: invadem certas sociedades de
letras mundanas, financiam edições, derramam-se nas dedicatórias,
mendigam uns elogios pingados no rodapé, cavam pistolões para meter
colaborações gratuitas nos suplementos dominicais. A revista
pretende é desentocar os sujeitos que por aí vivem, no interior, no
subúrbio, na capital de segunda classe, estudando, examinando,
anotando, e um dia se resolvem a jogar no papel fatos e ideias,
arranjam coisas que o nosso público, encharcado de traduções
cinematográficas, recebe com desconfiança. Em geral esses homens
não têm nenhum desejo de celebrizar-se: leem, combinam observações
próprias com observações alheias, porque o natural deles é isto,
ler, combinar, mas não fazem questão de conservar-se anônimos. São
indiferentes à pequena fama que obtemos, escondem-se tímidos,
receosos talvez de, caindo na livraria e no jornal, perturbar o
trabalho paciente e desinteressado a que se dedicam. O urso que
mencionei a Gilberto Freyre deve ocultar-se por orgulho. Mandou, há
dois anos, quinhentas folhas datilografadas ao concurso de contos da
livraria José Olympio, foi até o fim do julgamento em companhia de
Luís Jardim, perdeu por um voto. E amoitou-se, naturalmente
indignado; maldizendo o júri, pelo menos parte dele, até certo
ponto com razão. Nada mais precário que essas escolhas por
sufrágio. Não existe um critério, há critérios, e isto ocasiona
desordem. Um jurado embirra com um concorrente porque tem opiniões
políticas diferentes das dele, outro porque a adjetivação lhe
desagrada. Impossível estabelecer-se harmonia. Mas o autor vencido
tem um recurso: levanta os ombros, considera os juízes uns idiotas,
continua a escrever e publica a obra derrotada, para demonstrar que
houve injustiça. O contista referido tomou o pinhão na unha e
conservou-se incógnito, não obstante várias pessoas se terem
esforçado por conhecê-lo, até indivíduos que votaram contra ele.
Usou o pseudônimo de Viator, tem jeito de médico, mora, ou morou,
na roça. É o que sabemos. Ignoramos dele a idade, a cor, a índole.
Contudo nesse calhamaço de quinhentas folhas, lido por meia dúzia
de pessoas e logo recolhido avaramente, há coisas ótimas. Se
quisermos ser honestos, devemos dizer que há outras muito ruins, e
isto nos desconcerta: os amores piegas dum engenheiro com uma
professorinha de grupo escolar, a morte inverossímil de um médico
transformado, por desgostos excessivos, em trabalhador de enxada,
algumas páginas de mau gosto que chegam à declamação, à
propaganda, ao arrazoado. Numa delas quase nos avisa de que aquilo
não é anúncio de soro antiofídico. Mordeduras de consciência,
precisão de desfazer passagens que só se desfariam se o autor
tivesse tido a coragem de rasgar papel escrito. Junto a isso certa
preciosidade de linguagem e certa monotonia, cadência de embalo da
rede. Num período longo sucedem-se dezoito ou dezenove versos de
seis sílabas, rigorosamente medidos. Estes reparos são uma
impertinência, é claro. Ninguém tem o direito de fazer restrições
a um trabalho que não veio a lume. O meu intuito, porém, é,
exibindo defeitos, pôr em evidência as qualidades boas do livro,
que sobe muito ou desce demais, nunca sendo medíocre. Foram
provavelmente esses altos e baixos que o prejudicaram. Como é
enorme, ainda ficaria de tamanho considerável se o expurgassem da
professora, do engenheiro, do médico, da advocacia mais ou menos
clara. Teríamos uma excelente coleção de contos — a história
humana de Lalino, as viagens complicadas de dois criminosos que se
procuram e evitam no sertão, o admirável fim do compadre Joãozinho
Bembem, uma conversa de bois, caso sério, dos mais sérios levados a
efeito por estas latitudes. O diálogo vivo, a descrição exata, a
narrativa segura. Conhecimento perfeito do meio e dos assuntos
tratados. Estamos longe do sertão falso, apresentado por cidadãos
que dele não tinham nenhuma notícia. Nada de transplantação, de
adaptação forçada. Não temos aqui um drama chegado pelo correio
e, traduzido convenientemente, posto em cena com atores escolhidos na
população dos nossos cafundós. Tudo real, nacional e bárbaro.
Além de conhecer bem os homens e a terra, esse Viator é um
animalista notável. Certo os seus animais são criaturas humanas,
como os de numerosos escritores que se ocupam de bichos falantes e
pensantes; a cobra que aparece de pele nova é parente da Kaa de
Kipling . 7 Isto não lhes tira a verossimilhança. Essas figuras
convencionais — os bois, um burro que atravessa um rio cheio e
salva o cavaleiro bêbado — estão admiravelmente fixadas e
comovem. Vem-me de novo a ideia de que estes ligeiros comentários
são, até nos elogios, inconvenientes e indiscretos. Não há,
porém, outro meio de revelar a existência dum escritor macambúzio,
enroscado, descrente do juízo alheio, talvez do seu próprio juízo.
Lembrando-se do aborrecimento que teve em 1939, Viator algumas vezes
examinará com certeza as boas páginas que fez, julgar-se-á vítima
dum logro, prometerá não reincidir; outras vezes notará desgostoso
algumas falhas existentes, exagerá-las-á, dirá pessimista que elas
se estendem, racham toda a obra — e considerar-se-á inepto, não
terá nenhum prazer em voltar à companhia de Lalino e do compadre
Joãozinho Bembem. Enquanto se gasta nessa alternativa dolorosa,
criaturas hábeis, livres de dúvida, furam caminho, avançam,
oferecem-se descaradamente, pedem, rebaixam-se em demasia e aí
formam o pulo: quando menos esperamos, surgem lá em cima, decidindo,
uns figurões. De malabaristas semelhantes, insensíveis e sem
escrúpulos, nada esperamos. Mas Viator é uma espécie de tatu. Não
seria mau que a revista publicasse algumas linhas em tipo graúdo,
com este apelo: “Gratifica-se a pessoa que trouxer a esta redação
o conto ‘Conversa de bois’, visto por cinco ou seis literatos e
desaparecido misteriosamente há dois anos. O autor, homem esquivo,
de hábitos ambulatórios, andou pelo interior do Brasil, estudando
pacientemente brutos, cristãos e plantas. Faltam outras indicações.”
Graciliano
Ramos, in Garranchos
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