terça-feira, 23 de abril de 2019

Um jogo de cartas por um velório

[…] Além das elucubrações sobre possíveis transferências e mudanças no departamento, resultantes da morte de Ivan Ilitch, a simples ideia da morte de um companheiro tão próximo fazia surgir naqueles que ouviram a notícia aquele tipo de sentimento de alívio ao pensar que “foi ele quem morreu e não eu”.
Agora era ele quem tinha de morrer. Comigo vai ser diferente – eu estou vivo”, pensava cada um deles, enquanto as pessoas mais próximas, os assim chamados amigos, lembravam que agora teriam de cumprir todos aqueles cansativos rituais que exigiam as normas de bom comportamento, assistindo ao funeral e fazendo uma visita de condolências para a viúva.
Fiodr Vassilyevich e Piotr Ivanovich tinham sido seus amigos mais próximos. Piotr Ivanovich fora seu colega na Escola de Direito e lhe devia obrigações.
Em casa, depois de contar para a esposa sobre a morte de Ivan Ilitch, e sua esperança de que talvez conseguisse a transferência de seu cunhado, Piotr Ivanovich abriu mão de sua sesta habitual, vestiu o casaco e saiu.
Do lado de fora da casa de Ivan Ilitch havia uma carruagem e dois trenós de aluguel. Encostado na parede do hall, ao lado do porta-chapéus, via-se a tampa de um caixão coberta por um manto em cujas franjas haviam acabado de borrifar um pó dourado. Havia duas mulheres de preto recolhendo os casacos, e uma delas, a irmã de Ivan Ilitch, Piotr Ivanovich já conhecia, mas a outra era-lhe totalmente estranha.
Seu colega Schwartz já estava descendo, mas ao ver Piotr Ivanovich parou no topo da escada e deu uma piscada, como quem diz: “Veja só que confusão foi arrumar nosso amigo Ivan Ilitch – tão diferente de nós!”.
O rosto de Schwartz, com aquelas costeletas, sua figura esguia naquele casaco, tinham como sempre, um ar elegante e solene que contrastava com sua natureza jovial, mas que nessa situação parecia a Piotr Ivanovich adquirir um tempero todo especial.
Piotr Ivanovich deixou que as duas mulheres passassem e as seguiu. Schwartz não fez menção de descer e Piotr Ivanovich sabia por quê: certamente queria combinar o local do whist naquela noite. As mulheres subiram para falar com a viúva, enquanto Schwartz, com os lábios cerrados, mas um olhar malicioso, indicava a Piotr Ivanovich o quarto à direita onde estava o corpo. Piotr Ivanovich entrou, em dúvida, como as pessoas sempre se sentem nessas ocasiões, quanto à melhor atitude a tomar ali dentro. A única coisa que lhe ocorria era que fazer o sinal-da-cruz nunca vinha mal nessas horas. Mas como não tinha certeza se era necessário curvar-se ou não, optou por um meio-termo: ao entrar no quarto, começou o sinal-da-cruz e fez um movimento que lembrava vagamente uma inclinação; ao mesmo tempo, tanto quanto o permitiram os movimentos de mão e de cabeça, deu uma checada no ambiente em volta. Dois rapazes, um deles estudante, que deviam ser sobrinhos, vinham saindo do quarto fazendo o sinal-da-cruz e ele aproveitou e fez o mesmo. Uma senhora de idade estava parada, enquanto uma outra com as sobrancelhas arqueadas cochichava-lhe alguma coisa. Um membro da igreja lia em voz alta, com sinceridade e determinação e uma expressão que não admitia discordâncias. Gerassim, o criado, caminhando com seu passo suave em frente a Piotr Ivanovich, espalhava alguma coisa pelo chão. Ao ver isso, Piotr Ivanovich sentiu imediatamente um cheiro de corpo em decomposição. Na sua última visita a Ivan Ilitch, Piotr Ivanovich vira Gerassim no quarto, fazendo as vezes de enfermeiro, e percebia-se que Ivan Ilitch gostava muito dele.
Piotr Ivanovich continuou fazendo o sinal-da-cruz e inclinando a cabeça numa direção intermediária entre o caixão, o orador e as imagens sobre a mesa do canto. Em seguida, quando achava que o sinal da cruz já havia durado tempo suficiente, parava e punha-se a olhar para o defunto.
O morto jazia, como os mortos sempre jazem, pesadamente, seus membros endurecidos afundados dentro do caixão, a cabeça recostada eternamente no travesseiro, sua testa de cera amarelada, com sulcos acima das têmporas afundadas, sobressaía-se, como acontece nos mortos, e o nariz proeminente parecia pressionar fortemente o lábio superior. Estava bastante diferente e ainda mais magro do que da última vez que o vira, mas, como sempre acontece com os mortos, o rosto estava mais bonito e principalmente mais expressivo do que quando vivo. A expressão do rosto parecia dizer que tudo o que podia ter sido feito fora feito e da melhor maneira possível. Havia também reprovação nessa expressão e uma espécie de advertência para os vivos, advertência esta que parecia completamente sem propósito para Piotr Ivanovich, ou, pelo menos, não ser dirigida a ele. Teve uma sensação desagradável e, mais do que depressa, fez outro sinal-da-cruz e, ainda que lhe parecesse depressa demais e incompatível com a ocasião, virou as costas e saiu. Schwartz o esperava de pé no corredor, com as pernas afastadas e as duas mãos mexendo no chapéu às suas costas. A simples visão daquela figura leve e jovial reanimou Piotr Ivanovich. Sentia que Schwartz estava acima desse tipo de acontecimento, que jamais se deixaria dominar por qualquer ambiente depressivo. Seu olhar dizia que o mero incidente de um velório para Ivan Ilitch não poderia, em hipótese alguma, constituir motivo suficiente para interromper o curso natural das coisas – em outras palavras, nada poderia interferir no desembrulhar e cortar de um novo pacote de cartas naquela mesma noite. Na verdade, não havia razão alguma para supor que este simples contratempo os impediria de passar uma noite tão agradável quanto as outras.
Absolutamente – cochichou Schwartz para Piotr Ivanovich que passava, propondo que se encontrassem para um joguinho na casa de Fiodr Vassilyevich.
Mas pelo jeito não era o destino de Piotr Ivanovich jogar naquela noite. Praskovya Fiodorovna, uma mulher de estatura baixa, gorda, que apesar de todos os esforços em contrário continuara a alargar resolutamente dos ombros para baixo, toda de preto, com um véu cobrindo-lhe a cabeça, as sobrancelhas tão arqueadas quanto as da mulher ao lado do caixão, saiu do seu quarto com outras senhoras e, conduzindo-as até a porta do quarto onde estava o morto, falou: “A cerimônia já vai começar. Entrem, por favor”.
Schwartz, inclinando-se levemente, lembrou de onde estava, sem obviamente aceitar ou declinar do convite. Praskovya, reconhecendo Piotr Ivanovich, suspirou, aproximou-se dele, pegou sua mão e falou: “Eu sei o quanto vocês eram amigos...!” e fixou-o esperando uma resposta adequada ao que acabava de dizer. Piotr Ivanovich sabia que, assim como minutos antes, naquela mesma sala, adequado era se benzer, agora fazia-se necessário apertar a mão da viúva, suspirar e dizer: “Sim, é verdade!”. E foi o que fez, sentindo que alcançava o resultado esperado: ambos estavam comovidos.
Venha – disse a viúva. – Eles ainda não começaram. Preciso falar com você. Me dê o braço.
Piotr Ivanovich ofereceu-lhe seu braço e saíram em direção a um apartamento interno passando por Schwartz, que piscou solidário. “Tudo acertado para o nosso jogo. Não reclame se arrumarmos outro parceiro. Talvez você possa se juntar a nós quando conseguir escapar!,” dizia seu olhar provocador.
Leon Tolstoi, in A Morte de Ivan Ilitch

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