sábado, 6 de abril de 2019

Reino da fantasia

A metade do mundo está escondida. Tudo o que vemos, vemos pela metade. A outra metade permanece no escuro – só a imaginação completa a forma dos objetos. Muitos acreditam que a imaginação é o oposto da verdade; que é sua inimiga. Mas ela é seu complemento. Sem a imaginação, não podemos ter certeza de que a xícara que levamos à boca tem um lado de trás. Sem ela, não podemos estar certos de que, sob as dobras de uma colcha, se escondem os pés traseiros da cama.
Sem a imaginação, não podemos saber que o automóvel estacionado à nossa frente tem um outro lado. Sem a imaginação, enfim, a verdade não existe, pensa Lynn Zapatek, a protagonista de A camareira, romance do alemão Markus Orths (L&PM, tradução de Mário Luiz Frungillo). Obcecada por limpeza, Lynn se emprega como camareira no Hotel Eden. Embora não receba horas extras, trabalha sempre até tarde. Ama o que faz: limpar. Nada lhe escapa: as frestas ínfimas entre os objetos, o espaço secreto entre o carpete e o chão, as bordas negras dos sanitários.
Lynn tem consciência de suas limitações. “Nós nos arrancamos para dentro de nós todos os dias. Todos os dias fazemos algo que não funciona.” Só porque conhece as falhas que definem o humano, ela nunca está satisfeita. Sabe que continuará a falhar, sabe que algo sempre lhe escapará, mas vai até o fim, mesmo que seja para se defrontar com a derrota.
Leva uma vida metódica: telefona para a mãe, frequenta um terapeuta, nunca sabe como preencher a folga semanal. Até que descobre um prazer que desregula, mas ilumina sua vida: passa a se esconder sob a cama dos hóspedes para acompanhar, secretamente, suas noites. O hábito, que a princípio lhe parece insano, expande sua imaginação. É obrigada a ver sem usar os olhos. Fantasia – e com isso Lynn se apossa de seu lado escuro. Aprende a imaginar quando não pode ver. Entende o lado fantasioso da verdade.
Até a noite em que Ludwig Maurer, o hóspede do quarto 304, recebe uma mulher. Chiara, ela se chama. Enquanto os dois se amam, e embora Lynn não possa vê-los, começa a ver quem realmente são. Depois que se despede da mulher, Ludwig toma banho, borrifa um perfume, seca os cabelos. Desolada, conclui Lynn: “Vai fazer tudo e ser novamente quem ele não é”.
Enquanto o hóspede toma banho, ela aproveita para anotar o telefone de Chiara, deixado em um cartão. Sabe que, se o discar, tudo mudaria. “O que Lynn não sabe é se quer isso.” Entraria na fantasia do outro, provaria do suco sangrento do real. Não resiste e agenda um encontro com a prostituta. Não sabe se, com isso, acerta ou erra. Lembra da mãe, que lhe dizia que as conchas da praia “prendiam o mar” e lhe roubavam o som. Acreditou nisso por anos a fio, até o dia em que, por acaso, colocou um copo sobre o ouvido e ouviu exatamente o mesmo murmúrio. Jogou a concha fora, “porque tinha de repente pressentido que tudo na vida é um engano”.
Não é fácil admitir que a vida é feita, em grande parte, de ficções. Para testar os limites da fantasia, Lynn passa a se encontrar com Chiara e a fazer sexo com ela. Nas quartas-feiras, tem sua folga semanal. Nas quintas, telefona para a mãe. Nas sextas, vai à terapia. Nos sábados, Chiara. O mundo fosco e regular de Lynn esconde, em suas frestas, um grande brilho. Ele se parece com a luz que ela arranca do chão depois de escovar os assoalhos.
O patrão diz que Lynn trabalha demais, mas ela precisa trabalhar demais: só o trabalho a entorpece, só ele estanca o turbilhão de fantasias. Limpa com vigor porque imagina com vigor: antes de limpar, já “vê” o brilho que irá encontrar. O que pode se esconder sob um carpete? Que nódoa se refugia no vão da banheira? Que partes escuras o mundo lhe nega?
Um dia, deitada sob a cama em que Chiara e Ludwig se amam, seu segredo se revela. Alguma coisa cai no chão e a prostituta, embora não demonstre isto, a vê. Aprecia a delicadeza de Chiara e, pouco depois, resolve perseguir Ludwig Maurer. “Algo a obriga a isso. Algo que tem a ver com a grande palavra verdade.” Postada em um beco – “uma caverna, a boca de uma baleia” –, Lynn vê quando Ludwig sai do hotel. Pega um táxi e o segue até o subúrbio, onde vive com a mulher, Silvia. Agora tem um trunfo – limpou, clareou uma verdade –, mas não sabe de que isso serve. Precisa, mais uma vez, imaginar: só a fantasia completa o sentido precário das coisas.
Pensa em procurar Silvia Maurer e lhe revelar o segredo do marido. Mas que insignificância têm os fatos diante das fantasias! Seu terapeuta, Wilhelm Schlick, reage a seus relatos com o mesmo tique. Ela inventa sonhos que não teve, fala de coisas que não viveu, só para vê-lo balançar a cabeça. A imaginação move o mundo. Lynn quer ter o que não tem – quer ter a parte escura. Quer Chiara e, por isso, decide agir. Procura Silvia Maurer, a mulher traída, e arranja uma desculpa para usar seu banheiro; obsessiva, em vez de pensar, desanda a limpá-lo. Por acaso, descobre que também Silvia tem um amante. Lynn entende, enfim, que a dureza do real quase nada diz a respeito da verdade. Limita-se a exibir verdades amputadas, verdades parciais. Sem a imaginação, Lynn pensa, o mundo não existe.
Entende Lynn, agora, por que gosta de se esconder sob as camas dos hóspedes. “Lá, embaixo da cama, você vê coisas que nunca viu, lá, embaixo da cama, se revela o avesso do mundo”. Lá, no escuro, você vê melhor. Faz, enfim, seu belo “monólogo sobre as coisas” (pág. 103). “As coisas, ela diz, têm personalidade própria.” A metade das coisas sempre está escondida. Uma garrafa de refrigerante, um lápis, um abajur, só os vemos pela metade. Conclui Lynn: “As coisas verdadeiras, perfeitas, estão sempre no escuro”.
Quando observamos uma casa, apenas imaginamos seus fundos. Pensa Lynn: “Eu apenas imagino o lado de trás. Eu o fantasio. Eu simplesmente parto do princípio de que ele existe”. Sem a fantasia, as coisas nos escapam. Sem a imaginação, o mundo não passa de uma borra, como as nódoas de sujeira que Lynn, com sua escova, arranca do fundo dos ralos. Nem sempre consegue limpar tudo – e só lhe resta imaginar como isso seria.
José Castello, in Sábados inquietos

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