A metade
do mundo está escondida. Tudo o que vemos, vemos pela metade. A
outra metade permanece no escuro – só a imaginação completa a
forma dos objetos. Muitos acreditam que a imaginação é o oposto da
verdade; que é sua inimiga. Mas ela é seu complemento. Sem a
imaginação, não podemos ter certeza de que a xícara que levamos à
boca tem um lado de trás. Sem ela, não podemos estar certos de que,
sob as dobras de uma colcha, se escondem os pés traseiros da cama.
Sem a
imaginação, não podemos saber que o automóvel estacionado à
nossa frente tem um outro lado. Sem a imaginação, enfim, a verdade
não existe, pensa Lynn Zapatek, a protagonista de A camareira,
romance do alemão Markus Orths (L&PM, tradução de Mário Luiz
Frungillo). Obcecada por limpeza, Lynn se emprega como camareira no
Hotel Eden. Embora não receba horas extras, trabalha sempre até
tarde. Ama o que faz: limpar. Nada lhe escapa: as frestas ínfimas
entre os objetos, o espaço secreto entre o carpete e o chão, as
bordas negras dos sanitários.
Lynn tem
consciência de suas limitações. “Nós nos arrancamos para dentro
de nós todos os dias. Todos os dias fazemos algo que não funciona.”
Só porque conhece as falhas que definem o humano, ela nunca está
satisfeita. Sabe que continuará a falhar, sabe que algo sempre lhe
escapará, mas vai até o fim, mesmo que seja para se defrontar com a
derrota.
Leva uma
vida metódica: telefona para a mãe, frequenta um terapeuta, nunca
sabe como preencher a folga semanal. Até que descobre um prazer que
desregula, mas ilumina sua vida: passa a se esconder sob a cama dos
hóspedes para acompanhar, secretamente, suas noites. O hábito, que
a princípio lhe parece insano, expande sua imaginação. É obrigada
a ver sem usar os olhos. Fantasia – e com isso Lynn se apossa de
seu lado escuro. Aprende a imaginar quando não pode ver. Entende o
lado fantasioso da verdade.
Até a
noite em que Ludwig Maurer, o hóspede do quarto 304, recebe uma
mulher. Chiara, ela se chama. Enquanto os dois se amam, e embora Lynn
não possa vê-los, começa a ver quem realmente são. Depois que se
despede da mulher, Ludwig toma banho, borrifa um perfume, seca os
cabelos. Desolada, conclui Lynn: “Vai fazer tudo e ser novamente
quem ele não é”.
Enquanto
o hóspede toma banho, ela aproveita para anotar o telefone de
Chiara, deixado em um cartão. Sabe que, se o discar, tudo mudaria.
“O que Lynn não sabe é se quer isso.” Entraria na fantasia do
outro, provaria do suco sangrento do real. Não resiste e agenda um
encontro com a prostituta. Não sabe se, com isso, acerta ou erra.
Lembra da mãe, que lhe dizia que as conchas da praia “prendiam o
mar” e lhe roubavam o som. Acreditou nisso por anos a fio, até o
dia em que, por acaso, colocou um copo sobre o ouvido e ouviu
exatamente o mesmo murmúrio. Jogou a concha fora, “porque tinha de
repente pressentido que tudo na vida é um engano”.
Não é
fácil admitir que a vida é feita, em grande parte, de ficções.
Para testar os limites da fantasia, Lynn passa a se encontrar com
Chiara e a fazer sexo com ela. Nas quartas-feiras, tem sua folga
semanal. Nas quintas, telefona para a mãe. Nas sextas, vai à
terapia. Nos sábados, Chiara. O mundo fosco e regular de Lynn
esconde, em suas frestas, um grande brilho. Ele se parece com a luz
que ela arranca do chão depois de escovar os assoalhos.
O patrão
diz que Lynn trabalha demais, mas ela precisa trabalhar demais: só o
trabalho a entorpece, só ele estanca o turbilhão de fantasias.
Limpa com vigor porque imagina com vigor: antes de limpar, já “vê”
o brilho que irá encontrar. O que pode se esconder sob um carpete?
Que nódoa se refugia no vão da banheira? Que partes escuras o mundo
lhe nega?
Um dia,
deitada sob a cama em que Chiara e Ludwig se amam, seu segredo se
revela. Alguma coisa cai no chão e a prostituta, embora não
demonstre isto, a vê. Aprecia a delicadeza de Chiara e, pouco
depois, resolve perseguir Ludwig Maurer. “Algo a obriga a isso.
Algo que tem a ver com a grande palavra verdade.” Postada em um
beco – “uma caverna, a boca de uma baleia” –, Lynn vê quando
Ludwig sai do hotel. Pega um táxi e o segue até o subúrbio, onde
vive com a mulher, Silvia. Agora tem um trunfo – limpou, clareou
uma verdade –, mas não sabe de que isso serve. Precisa, mais uma
vez, imaginar: só a fantasia completa o sentido precário das
coisas.
Pensa em
procurar Silvia Maurer e lhe revelar o segredo do marido. Mas que
insignificância têm os fatos diante das fantasias! Seu terapeuta,
Wilhelm Schlick, reage a seus relatos com o mesmo tique. Ela inventa
sonhos que não teve, fala de coisas que não viveu, só para vê-lo
balançar a cabeça. A imaginação move o mundo. Lynn quer ter o que
não tem – quer ter a parte escura. Quer Chiara e, por isso, decide
agir. Procura Silvia Maurer, a mulher traída, e arranja uma desculpa
para usar seu banheiro; obsessiva, em vez de pensar, desanda a
limpá-lo. Por acaso, descobre que também Silvia tem um amante. Lynn
entende, enfim, que a dureza do real quase nada diz a respeito da
verdade. Limita-se a exibir verdades amputadas, verdades parciais.
Sem a imaginação, Lynn pensa, o mundo não existe.
Entende
Lynn, agora, por que gosta de se esconder sob as camas dos hóspedes.
“Lá, embaixo da cama, você vê coisas que nunca viu, lá, embaixo
da cama, se revela o avesso do mundo”. Lá, no escuro, você vê
melhor. Faz, enfim, seu belo “monólogo sobre as coisas” (pág.
103). “As coisas, ela diz, têm personalidade própria.” A metade
das coisas sempre está escondida. Uma garrafa de refrigerante, um
lápis, um abajur, só os vemos pela metade. Conclui Lynn: “As
coisas verdadeiras, perfeitas, estão sempre no escuro”.
Quando
observamos uma casa, apenas imaginamos seus fundos. Pensa Lynn: “Eu
apenas imagino o lado de trás. Eu o fantasio. Eu simplesmente parto
do princípio de que ele existe”. Sem a fantasia, as coisas nos
escapam. Sem a imaginação, o mundo não passa de uma borra, como as
nódoas de sujeira que Lynn, com sua escova, arranca do fundo dos
ralos. Nem sempre consegue limpar tudo – e só lhe resta imaginar
como isso seria.
José
Castello, in Sábados inquietos
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