segunda-feira, 8 de abril de 2019

O direito à felicidade (trecho final)

[...] Por gerações incontáveis nosso sistema bioquímico adaptou-se à necessidade de aumentar nossas probabilidades de sobrevivência e reprodução, não de promover nossa felicidade. O sistema bioquímico recompensa ações que levam à sobrevivência e à reprodução com sensações agradáveis. Mas se trata apenas de um artifício efêmero de venda. Nós nos esforçamos para ter comida e um parceiro ou parceira a fim de evitar sensações desagradáveis de fome e de usufruir sabores agradáveis e orgasmos prazerosos. Mas sabores agradáveis e orgasmos prazerosos não duram muito tempo, e se quisermos tornar a senti-los teremos de sair em busca de mais comida e de parceiros ou parceiras.
O que aconteceria se uma mutação rara resultasse na criação de um esquilo que, após comer uma única noz, se tornaria capaz de desfrutar de uma sensação perene de felicidade? Tecnicamente, isso poderia ser feito mediante novas ligações no cérebro do esquilo. Quem sabe isso aconteceu realmente com algum esquilo sortudo milhões de anos atrás? Mas, se foi assim, o tal esquilo teve uma vida extremamente feliz e extremamente curta, e esse foi o fim da mutação rara. Pois o feliz animalzinho não teria se dado o trabalho de buscar mais nozes, muito menos um parceiro ou parceira. Os esquilos rivais, que sentem fome cinco minutos depois de terem comido uma noz, apresentariam mais possibilidades de sobreviver e de transmitir seus genes à geração seguinte. Pela mesma razão, as nozes que nós humanos buscamos reunir — empregos lucrativos, casas espaçosas, parceiros ou parceiras de boa aparência — raramente nos satisfazem por muito tempo.
Alguns dirão que isso não é ruim, porque não é o objetivo que nos torna felizes — é a jornada. Escalar o monte Evereste é mais prazeroso do que ficar de pé em seu topo; o flerte e as preliminares são mais excitantes do que o orgasmo em si; e conduzir experimentos inovadores em laboratórios é mais interessante do que receber prêmios e reconhecimento. Mas isso quase não modifica o quadro. Indica apenas que a evolução nos controla com uma grande abrangência de prazeres. Às vezes ela nos seduz com sensações de felicidade e tranquilidade, enquanto em outras ocasiões nos empurra adiante com eletrizantes sensações de júbilo e excitação.
Quando um animal está em busca de algo que aumente suas probabilidades de sobrevivência e reprodução (por exemplo, alimento, parceiros ou status social), o cérebro produz sensações de vigilância e de excitação que o impelem a fazer esforços ainda maiores, pois elas são muito agradáveis. Num experimento famoso, cientistas conectaram eletrodos ao cérebro de ratos, os quais permitiam aos animais criar sensações de excitação simplesmente apertando um pedal. Quando se ofereceu aos ratos a opção entre ganhar uma comida saborosa ou apertar o pedal, eles preferiram o pedal (algo similar à preferência das crianças em jogar video game a descer para jantar). Os ratos pressionavam o pedal sem parar, até desabarem de fome e exaustão. 36 Humanos também preferem a excitação da corrida ao descanso nas láureas do sucesso. Mas o que faz a corrida tão atraente são os estimulantes que a acompanham. Ninguém escolheria escalar montanhas, jogar video game ou marcar um encontro às cegas se essas atividades fossem acompanhadas apenas de sensações desagradáveis de estresse, desespero ou tédio.
No entanto, as sensações de excitação da corrida são tão transitórias quanto as sensações jubilosas de vitória. O Don Juan que aproveita a empolgação de um encontro, o homem de negócios que rói as unhas enquanto observa os altos e baixos do índice Dow Jones, e o jogador de games que curte a matança de monstros que está promovendo na tela do computador — nenhum deles vai sentir alguma satisfação com o ato de relembrar as aventuras já vividas. Como os ratos que apertam o pedal repetidas vezes, os galanteadores, os magnatas dos negócios e os jogadores de video game precisam ter novas sensações todos os dias. Pior: nesses casos, as expectativas se adaptam às condições, e os desafios de ontem tornam-se, rápido demais, o tédio de hoje. Talvez a chave para a felicidade não seja nem a corrida nem a medalha de ouro, e sim a combinação de doses certas de excitação e tranquilidade; mas a maioria das pessoas tende a saltar toda a distância que vai do estresse ao tédio e, ao fim, segue descontente com um e com o outro.
Se a ciência está certa e nossa felicidade é determinada por nosso sistema bioquímico, então a única maneira de assegurar um contentamento duradouro é equipar esse sistema. Esqueça o crescimento econômico, as reformas sociais e as revoluções políticas: para elevar os níveis globais de felicidade, precisamos manipular a bioquímica humana. E é exatamente isso que começamos a fazer durante as últimas décadas. Cinquenta anos atrás, as drogas psiquiátricas carregavam em seu bojo um grave estigma. Hoje esse estigma foi quebrado. Para o bem ou para o mal, uma porcentagem crescente da população toma remédios psiquiátricos regularmente, não apenas para curar doenças mentais debilitantes, mas também para enfrentar depressões mais corriqueiras e melancolias ocasionais.
Por exemplo, um número crescente de crianças em idade escolar toma estimulantes como a Ritalina. Em 2011, 3,5 milhões de crianças americanas tomaram medicamentos para o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). No Reino Unido, o número se elevou de 92 mil crianças em 1997 para 786 mil em 2012. O objetivo original consistia em tratar distúrbios de atenção, mas hoje crianças totalmente saudáveis ingerem esses remédios para melhorar o desempenho e atender às crescentes expectativas de pais e professores. Muitos se opõem a isso e alegam que o problema está no sistema educacional e não nas crianças. Se existem alunos que sofrem de transtornos de atenção e de estresse e tiram notas baixas, talvez a culpa deva ser atribuída aos métodos de ensino antiquados, às classes lotadas e a um ritmo de vida que não é natural. Talvez devamos modificar as escolas, e não as crianças. É interessante ver como esses argumentos evoluíram. Os métodos educacionais têm sido motivo de discussão há milhares de anos. Tanto na China como na Grã-Bretanha vitoriana, cada um tinha um método de sua preferência e se opunha veementemente às alternativas existentes. Mas há um ponto com que todos sempre concordaram: para poder melhorar a educação, era preciso mudar as escolas. Hoje, pela primeira vez na história, algumas pessoas pensam que seria mais eficaz mudar a bioquímica dos alunos.
Com os exércitos acontece o mesmo: 12% dos soldados americanos no Iraque e 17% dos soldados americanos no Afeganistão tomavam ou pílulas para dormir ou antidepressivos como recurso para lidar com a pressão e a angústia provocadas pela guerra. Medo, depressão e trauma não são causados por tiros, armadilhas explosivas ou carros-bombas. São causados por hormônios, neurotransmissores e redes neurais. Dois soldados podem estar ombro a ombro em uma tocaia — um vai ficar paralisado pelo terror, perder a noção do que está acontecendo e ter pesadelos durante anos depois do ocorrido e o outro vai avançar corajosamente e ganhar uma medalha. A diferença está na bioquímica dos soldados. Se encontrarmos um modo de controlá-la, de um só golpe produziremos soldados mais felizes e exércitos mais eficazes.
A busca bioquímica da felicidade é também a principal causa do crime no mundo. Em 2009, metade dos internos em prisões federais nos Estados Unidos estava nessa condição por causa de drogas; 38% dos prisioneiros na Itália foram condenados por crimes relacionados com drogas; 55% dos presos no Reino Unido relataram ter cometido seus crimes em conexão com o consumo ou o tráfico de drogas. Um relatório de 2001 revelou que 62% dos condenados na Austrália estavam sob influência de drogas quando cometeram o crime pelo qual estavam encarcerados. 42 Pessoas consomem bebidas alcoólicas para esquecer, fumam baseados para se sentirem em paz, fazem uso de cocaína e metanfetaminas para ficarem espertas e confiantes, enquanto o Ecstasy proporciona uma sensação de êxtase, e o LSD faz o usuário ir ao encontro de Lucy in the sky with diamonds. O que algumas pessoas esperam alcançar estudando, trabalhando ou criando uma família, outras tentam obter muito mais facilmente por meio da dosagem correta de moléculas. Essa é uma ameaça existencial à ordem social e econômica, motivo pelo qual os países estão travando uma obstinada, sangrenta e desesperada guerra contra o crime bioquímico.
O Estado espera poder regular a busca bioquímica da felicidade separando as manipulações “ruins” das “boas”. O princípio é claro: as manipulações bioquímicas que fortalecem a estabilidade política, a ordem social e o crescimento econômico são permitidas e até mesmo estimuladas (como aquelas que acalmam crianças hiperativas na escola ou empurram soldados ansiosos para a batalha). Manipulações que ameacem a estabilidade e o crescimento são banidas. Mas a cada ano surgem novas drogas nos laboratórios das universidades, companhias farmacêuticas e organizações criminosas, e as necessidades do Estado e do mercado também continuam mudando. À medida que se acelera, a busca bioquímica da felicidade reconfigura a política, a sociedade e a economia. E fica cada vez mais difícil mantê-la sob controle.
E as drogas são só o começo. Em laboratórios de pesquisa, especialistas já estão trabalhando no desenvolvimento de métodos mais sofisticados de manipular a bioquímica humana, com o envio de estímulos nervosos diretamente aos pontos específicos no cérebro, ou com o uso da genética para projetar a planta do corpo. Independentemente de qual seja o método correto, alcançar a felicidade por meio de manipulação biológica não será fácil, pois requer a alteração dos padrões fundamentais da vida. Tampouco foi fácil vencer a fome, a peste e a guerra.

Estamos longe da certeza de que a humanidade deve investir tanto esforço na busca bioquímica da felicidade. Haverá quem diga simplesmente que a felicidade não tem importância e que é um engano considerar que a satisfação individual é a meta mais elevada da sociedade humana. Outros talvez concordem com a máxima de que a felicidade é realmente o bem supremo, mas vão discutir a definição biológica da felicidade como o ato de desfrutar sensações prazerosas.
Há cerca de 2300 anos, Epicuro advertiu seus discípulos de que a busca sem moderação do prazer provavelmente os faria infelizes, e não o contrário. Alguns séculos antes, Buda fez uma declaração ainda mais radical, ao ensinar que a busca de sensações prazerosas é com efeito a verdadeira raiz do sofrimento. Essas sensações são apenas vibrações efêmeras e inexpressivas. Mesmo quando as experimentamos, não reagimos a elas com contentamento; em vez disso, ansiamos por mais. Não importa, portanto, quantas sensações de bem-aventurança ou excitação alguém possa experimentar — elas sempre serão insuficientes.
Se eu identificar felicidade com sensações prazerosas passageiras e ansiar por experimentá-las mais e mais, não terei escolha senão a de buscá-las constantemente. Quando afinal as tenho, elas desaparecem rapidamente; porém, como a mera lembrança de prazeres passados não me satisfazem, tenho de começar novamente. Ainda que continue essa busca durante décadas, ela nunca será uma conquista duradoura; pelo contrário, quanto mais eu ansiar por sensações prazerosas, mais estressado e insatisfeito vou ficar. Para alcançar a felicidade real, os humanos têm de desacelerar, e não acelerar, em sua busca por sensações prazerosas.
Essa visão budista da felicidade tem muito em comum com a visão bioquímica. Ambas concordam com a noção de que as sensações prazerosas desaparecem tão rapidamente quanto emergem e que, enquanto as pessoas ansiarem por sensações prazerosas sem de fato as experimentar, elas permanecerão insatisfeitas. No entanto, esse problema comporta duas soluções diferentes. A solução bioquímica consiste em desenvolver produtos e tratamentos que vão oferecer aos humanos um fluxo sem fim de sensações prazerosas — assim eles sempre desfrutarão da certeza de tê-las. Buda sugeriu que reduzíssemos nosso anseio por sensações prazerosas e não conferíssemos a elas o controle de nossa vida. Segundo Buda, podemos treinar nossas mentes a observar cuidadosamente como surgem e passam todas as sensações. Quando a mente aprende a enxergar nossas sensações tais como elas são — ou seja, vibrações efêmeras e inexpressivas —, perdemos o interesse em persegui-las. Pois qual o sentido de correr atrás de algo que desaparece tão rápido quanto surge?
Atualmente, a humanidade tem muito mais interesse na solução bioquímica. Não importa o que dizem os monges em suas cavernas no Himalaia ou os filósofos em suas torres de marfim: para o rolo compressor capitalista, felicidade é prazer. Ponto. Cada ano que passa diminui nossa tolerância em relação às sensações que não oferecem prazer e aumenta nossa ânsia por sensações que o provocam. Tanto a pesquisa científica como a atividade econômica estão engrenadas para atingir esse fim, e a cada ano se produzem analgésicos mais potentes, novos sabores de sorvetes, colchões mais confortáveis e mais jogos viciantes para nossos smartphones a fim de que não tenhamos um só momento de tédio enquanto esperamos o ônibus.
E tudo isso não será suficiente, é claro. Como a evolução não adaptou o Homo sapiens a experimentar um prazer constante, e se é isso que, mesmo assim, a humanidade deseja, sorvete e smartphone não vão fornecer o prazer procurado. Será necessário mudar nossa bioquímica e fazer a reengenharia de nosso corpo e mente. Estamos trabalhando nisso. Pode-se discutir se isso é bom ou ruim, mas parece que o segundo grande projeto do século XXI — assegurar a felicidade total — vai envolver a reengenharia do Homo sapiens para que possa usufruir de um prazer perpétuo.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: uma breve história do amanhã

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